“Ela tem uma má reputação, ninguém se aproxima muito.
Todos os meus amigos já a viram nua, ou é assim que a história vai.
Erros todos nós cometemos, mas eles não vão deixar pra lá, porque ela tem uma má reputação”.
Segundo o dicionário, “Reputação” é o nome dado ao conceito obtido por uma pessoa a partir do público ou da sociedade em que vive, logo, “minha reputação sempre chega antes de mim” e está, acredite, o precede. Os dedos lhes são apontados por qualquer que seja o seu público, a sua ação, à quem quer que seja você.
No dito auge do século 21, estando neste o “autoproclamado” apogeu das fake news, o malfadado “num mundo de cegos quem tem olho é rei”, se torna prece e tolos são aqueles que das fontes desdenham. "O ser humano é empático", defende Black Mirror. Não nessa era, rebato. Não quando títulos e reputações são postas à mesa.
1
São Francisco, Califórnia, 7:43 am, 1 de setembro de 2020.
Já era a terceira vez que ela tentava ignorar os incansáveis gritos de seu velho despertador, estava acordada antes mesmo do primeiro. Se atrasaria no primeiro dia do novo semestre. Não pegaria bem, sabia disso. Tinha consciência plena que seus “colegas” de turma estariam a postos assim que posasse seus pés naquela faculdade, mais que prontos para iniciar uma gostosa sessão de mexericos entre si, sobre a vida de Elsa. Não importava o que fizesse, não fariam diferente. Já tentará. Aqueles abutres. Riu sem humor de sua própria piada.
Tentando ganhar coragem, rolou o peso de seu corpo para o outro lado da espaçosa cama. Sentiu o calor dos lençóis e o cheiro de suor mesclado com perfume masculino que eles exalavam. Adorava este cheiro. A noite não havia sido ruim, estava satisfeita. Aster havia deixado sua cama no primeiro toque do despertador. Nem se despediu, ela pensou. Ele sabia que ela estava acordada, e ela sabia que ele sabia, e tudo bem. O fato é que, já estavam nesse jogo a tempo demais para discutirem as saídas nada discretas dele com o nascer do sol. Não importava, ela não se importava.
Estava exausta. Não de Aster, ele era um… “Cara Legal?”, e - o elefante na sala! - casado. Não era um problema. Bom, para a esposa dele devia ser. Mas para a Outra, esta, Elsa, não. Homens casados guardam seus problemas para suas esposas, e isso era um prêmio. Encarou a cabeceira e viu que ele tinha esquecido o relógio caro, que - pasmem, era um presente da esposa - ele mesmo havia dito. Será que ele estava querendo marcar algum tipo de território ou era apenas um menino distraído e bobo? Gargalhou com esse pensamento.
Oito horas. Se deu por vencida, não dava mais para enrolar, juntou todas as forças e partiu para uma ducha rápida. Iria de cabelos molhados hoje. Não se importava com os fru-frus do primeiro dia de aula, estava velha para isso. Elsa gostava de dizer que aos 24 não importa mais se você escova o cabelo ou não, os caras legais já estão comprometidos e o resto… o resto não se importa.
- Anna? - chamou a irmã enquanto saía apressada de seu quarto jogando as coisas na bolsa - Anna, você já saiu? Não vou poder te dar carona, mas passo na loja à noite… - seguiu falando.
Ao chegar na cozinha se deparou com um bilhete de sua irmã avisando que dormiria na casa do namorado. Pôs comida na tigela do gato e o chamou, logo o vendo correr em sua direção e se enroscar em suas pernas. Pegou para si um pacote de bolachas e uma caixinha de suco infantil - velha demais para secar o cabelo, mas não o bastante para sucos de caixinha - seu desjejum seria no carro hoje.
Tinha menos de vinte minutos para estar oficialmente atrasada no primeiro dia. Chegar até o campus de Stanford levaria no mínimo 36 minutos, segundo o gps.
- Talvez seja um sinal divino - disse pra si mesma, de boca cheia.
Elsa irrompeu pela porta da sala de Literatura Ocidental as não tão exatas 9:21 am. Não havia como ignorar os quase trinta pares de olhos curiosos sobre si. Mas, ainda assim, seu cinismo falará mais alto. Agiu como se nada estivesse acontecendo, abaixou a cabeça e apenas seguiu rumo a terceira fileira onde avistou uma carteira livre.
- Srta. Snow… - proferiu Breu Black, o professor. - Apesar de seu condenável atraso, fico contente que tenha se juntado a nós esse semestre. Bem vinda! - Concluiu com um sorriso caloroso, enquanto Elsa, se ajeitava na cadeira pequena demais para ela.
- Desculpe, Sr. Black. Não vai mais acontecer. - disse ainda de cabeça baixa.
Ouviu a risada escandalosa dele em resposta, enquanto mantinha seu pequeno teatro particular, com o semblante cabisbaixo fingindo buscar seus materiais na bolsa mal arrumada. Quando julgou ser seguro erguer o rosto para a lousa, lá estavam eles, seus queridos companheiros de turma, a encarando e dando risinhos, como se ela fosse uma macaca de circo, pior, como se estivessem no ensino médio, ou sabe-se lá o quê. Rapunzel e sua trupe, como gostava de chamá-los. Realmente não entendia a razão desses acéfalos estarem em um programa de PhD. A graduação é mais que o suficiente para trabalhar no escritório do papai, não? Deu um sorriso debochado e quase maternal para Flynn, que estava ao lado da abelha rainha, Rapunzel, esta, que parou o que quer que estivesse cochichando no ouvido de um novato, para encará-la com um olhar mortal.
Bom, que os jogos comecem.
[...]
Três toques lentos na grossa porta de madeira.
- Professor Bunny? Professor, posso entrar? - uma grave voz feminina interrompeu o homem atrás do grande birô. - Ei, por quê não me responde?
- Elsa? O que está fazendo aqui? Já conversamos… - Ele disse com um tom ríspido, enquanto se levantava rapidamente e caminhava em direção a mulher que ainda estava parada na porta.
Ela apenas sorriu daquela reação exagerada.
- Ei, calma ai, bonitão. - Ela se aproximou lentamente dele - Chequei o corredor duas vezes, não tem ninguém por perto. E, não precisa ficar tão tenso, sou uma jovem aluna em uma reunião com um experiente professor. - Concluiu em um tom meigo, agora de frente para homem alto à sua frente.
- É... uma discente de Literatura sanando duvidas com o professor de cálculo 1. - Bunny respondeu ainda sério.
- Aster, qual é?
Elsa disparou impaciente. Odiava esses joguinhos de “Aluna promíscua e professor ingênuo”, como dito, já estão no mesmo jogo a bastante tempo. A parte da excitação, da sensualidade e do cortejo, se é que pode ser chamado assim, já não faz sentido, não tem mais graça.
- Desculpe. Mas você sabe que estou certo. É para nossa proteção. - Disse em um tom mais leve, agora segurando na cintura de Elsa.
- Enfim, deixou isso lá em casa - lhe entregou o relógio que esqueceu na cabeceira de sua cama, pela manhã - Não sabia quando ia aparecer lá de novo, então pensei em deixar com você aqui mesmo.
- Ah, caramba! Procurei por ele a manhã inteira… Obrigado. - Ele deu um sorriso quase galanteador. “Quase”, a magia não existe mais.
- Sério? Dormiu na minha cama e nem pensou em me perguntar algo? - sorriu divertida, o encarando de frente - Deve estar andando muito ocupado, eu e mamãe Gothel não gostamos de dividir…
- Pare com essas insinuações, e não fale assim da minha esposa. - disse num tom um tanto rude lhe dando as costas - Você não é assim... O que há? A noite não foi boa pra você? - deu uma risada indiferente.
Ela o encarou com um semblante impassível, refletindo sobre homem à sua frente. Aster Bunny era mesmo um belo homem. No auge de seus quarenta anos. Alto, um pouco demais, talvez; se exercitava com frequência e mantinha um bom físico. Tinha uma pele clara, mas um bronzeado impecável, contrastava lindamente com seus cabelos negros em sua maioria, grisalho nas laterais, um charme. Tinha um sorriso perfeito e se vestia muito bem, provavelmente não envergonha a esposa, Gothel. Todavia, todos estes atributos tinham um ‘Mas’. Aster tinha seríssimos problemas de confiança. Todos os homens tem. Mas Aster não escondia, ele quase se vangloriava dessa fraqueza.
- Não sei. - disse Elsa, por fim - Tenho tido problemas para dormir, sabe disso. Ainda não sei porquê… E também não tive uma manhã agradável. - Completou não respondendo sua última pergunta de propósito.
- Quer que eu ajude a melhorar sua manhã? - Aster se aproximou outra vez, com um olhar cheio de malícia, segurando sua cintura com força, ao mesmo tempo em que beijava pescoço de Elsa, que fechou os olhos intuitivamente. - Tenho uma hora de almoço, podemos ir naquele motel da outra vez… Disse que gostou...
Ela se afastou lentamente. Homens. Odiava ter que concordar com o feminismo contemporâneo, mas eles são mesmo nojentos. Só pensam em si. Tolos, fúteis, pretensiosos e mais sensíveis que as debutantes do baile de primavera.
- Não posso. - mentiu. Queria sair dali - Terei mais horas nesse semestre, quero terminar mais cedo... e tenho os ensaios para a pesquisa da Úrsula, te falei sobre no outro dia. É… enfim, vou indo.
- Ei! - Aster a abraçou por trás, ela fechou os olhos novamente, dessa vez, um pouco enjoada, de repente. - Que é que foi? Foi algo que eu disse ou o quê?
- Não, não. Tá tudo bem - Elsa disse rapidamente lhe lançando um sorriso meigo - Só estou meio cansada, preciso de uma noite de sono.
- Ok - ele disse simples, depositando um beijo casto em seus lábios - Te mando mensagem.
Ela deu as costas para ele sem lhe responder. Saiu daquela sala mas rápido do que planejou e bateu a porta com mais força que o necessário. “Te mando mensagem”. Talvez alguém devesse lembrá-lo de que ele é um homem de quarenta anos, não um adolescente pseudo popular de dezessete. Seguiu para o banheiro mais próximo, sentia-se suja. Aster não lhe fazia bem. Era um bom parceiro para sexo casual, mas não dava conta de ser apenas isso. Tinha uma masculinidade frágil demais e gostava de se provar como macho alfa a todo o tempo… Ela não precisava disso.
Enquanto secava o rosto com calma, observou seu reflexo diante do espelho, estava mesmo péssima. Olheiras enormes repousavam como sacolas debaixo de seus olhos. Deixar o cabelo secar com o “calor da Califórnia” foi uma péssima ideia. Os fios loiros estavam tão desgrenhados que assemelhavam-se a um ninho de passarinhos. Resolveu prendê-los, sua autoestima e autenticidade, auto proclamadas, não eram capazes de suportar esta imagem. Não hoje. Passou um batom rosado e sentiu-se um pouco melhor. Era bela. Reconhecia isso. Os anos de balé e natação na infância deram ao seu corpo um formato escultural, tinha seios proporcionais, seus cabelos loiros num tom quase exótico e um rosto agradavelmente bem desenhado. Se parecia muito com sua mãe. Orgulhava-se disso. Sua mãe… Seus pais… Tinha saudades deles. Com certeza não se orgulhariam da mulher que se tornou.
- Olá, Snow… Se preparando para o… felizardo, da noite? Viu que temos um novato... - Rapunzel rompeu pela porta tal qual uma raposa dá o bote em sua presa.
- Hoje não, Rapunzel. Hoje não. - respondeu encarando a loira através do espelho.
- Ora, ora, ora, a Princesa Perdida está indisposta hoje. Vamos lá, Snow. Ânimo! - Rapunzel repousou sua mão no braço de Elsa, que a afastou rudemente
- Eu já disse que hoje não. Se afasta… - Rapunzel a encarou assustada. A recém chegada continuou a observando com curiosidade, enquanto ela seguia porta a fora.
Elsa não almoçou naquela tarde. Sentia fome, mas não o bastante para se dirigir até o restaurante do Campus. Direcionou-se para a sala, esperaria uns quarenta minutos até a próxima aula. Resolveu dar início os ensaios de Ursula, seriam apenas para daqui a seis meses, mas tudo bem se adiantar. Gostava de Literatura, gostava mesmo. Lembrava-se dos planos de seus pais para que fizesse medicina e seguisse com a “tradição da família”. E lembrava-se do quão tristes ficaram quando disse que seguiria a própria intuição. Mas, tudo bem. Ela era boa no que fazia, e isso os deixou felizes, mesmo que por um tempo. Havia se graduado com honras à dois anos, orgulhando a si mesma.
A tarde se seguiu tão enfadonha quanto a manhã. Queria ir para casa. Jantar comida chinesa, tomar um bom banho e ir para a cama. Dormiria para sempre, se pudesse. Morreria hoje, se soubesse o que a espera. Ora, mas quanto drama! Não tinha desejos suicidas, longe disso, achava a vida curiosa e fascinante. Apenas estava farta. Exausta. Não da faculdade. Ou de seu trabalho na editora. Amava o que fazia. Estava exausta de si, da sua reputação. Dos boatos e mentiras que contavam a seu respeito, e que as pessoas acreditavam facilmente apenas porque “ela já fez outras vezes, por que não de novo?”. No fundo estava triste, se sentia sozinha. Não admitiria isso jamais, eles não mereciam ver o que estava por trás da barreira. Mas era como se sentia.
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