Acordei ofegante com o pesadelo que acabara de ter. Passei a mão pela testa tentando secar o suor. Meu corpo todo suava frio. Passei no banheiro para lavar o rosto.
Desci as escadas ainda de pijama, não era nem 4:00 da manhã, e já sabia que tão cedo não conseguiria voltar a dormir.
Connie estava sentada na bancada tomando um copo de leite, cumprimentei a mulher, passando por ela e indo direto a geladeira. Tirei uma caixa de suco e sentei ao seu lado.
-Que coisa doida, né? Entrar logo para uma família de feiticeiros. – Mencionei depois de bebericar na garrafa de suco.
-Pois é. Eu não diria doido, mas fascinante. – Seus olhos brilhavam iguais aos de Sunny quando contara para ela.
-Sério? Não acha estranho? – Perguntei confusa.
-Claro que leva um tempo para se acostumar. Ninguém imagina que isso exista de verdade. Mas há mais mistérios entre o céu e a Terra do que possa supor nossa vã filosofia. – Connie mandou uma piscadela para mim e depois terminou o leite que havia em seu copo. Olhei estarrecida para a mulher que acabara de dizer a mesma frase que o assistente do Migalhovisk no conselho mágico. –Mas ainda sim acho fascinante.
A fitei por alguns segundos notando algumas semelhanças entre ela e Sunny. Eram muitas. Papai não tem a menor culpa, seria impossível resistir. Até tive vontade de comentar sobre meu lance com a Sunny, mas não tive coragem.
-Fascinante. – Sorri fraco, me despedi de Connie guardando o suco de volta na geladeira.
E subi a escada desanimada.
E assim se seguiu por algumas semanas. Sunny me evitando, pesadelos e sonhos esquisitos, nenhuma ameaça do malfeitor até então. Nada fora do normal, por assim dizer.
Aconcheguei-me no parapeito da janela, buscando um pouco de ar e tranquilidade para curtir minha melancolia, que por incrível que pareça não tinha diminuído desde que Sunny terminara comigo. Joguei a cabeça pra trás tentando engolir o choro, as lágrimas sempre vinham me perturbar nesses momentos.
Até que senti algo vibrar ferozmente em cima da cômoda, olhei para o lado temendo ser o pager mágico. E era. As palavras já começavam a flutuar para fora do pager.
Não pensei duas vezes, me joguei para fora do quarto somente com a varinha na mão, no topo da escada pude ver Sunny com os cabelos desgrenhados. Encontramo-nos assim, em silêncio no meio da escada. Fiz que fosse dizer algo, mas Sunny esgueirou-se por trás de mim tapando minha boca e me arrastou para debaixo da escada.
Ainda tendo a boca tapada pela mão de Sunny, puxei a varinha para que pudesse nos proteger.
Situação totalmente estranha, não era eu que deveria proteger a Sunny?
Olhei em volta tendo certeza de que já tivessem ido embora. Olhei assustada para a garota que estava com os olhos arregalados.
-Você está bem? – Perguntei preocupada.
-Sim, estou. Eles vieram atrás de mim, mas eu consegui perceber a presença deles e sai do quarto. – A pequena tentava recuperar o folego. –E vim atrás de você.
-Você conseguiu sentir a presença deles? Como assim?
-Não sei explicar, eu acordei e me senti mal, então vi a sombra dele perto da sua cama. Mas acho que ele estava de costas, ou não me encontrou. Porque consegui fugir.
-Sei, mas acho que agora está tudo bem. – Sunny sorriu fraco fitando o chão. –Eu acho.
-É, acho que sim. – Respondeu desanimada.
-Podemos voltar para os nossos quartos. – Conclui. Levantei do chão e dei as costas para Sunny. Mas a garota segurou meu braço me impedindo de seguir em frente. Uma onda nostálgica percorreu meu corpo, olhei para trás e vi a menina, inocente e desprotegida ainda sentada no chão. E era como se eu a pudesse ouvir claramente me pedindo para dormir comigo. Foi tão real quanto na lanchonete, na festa da namorada de Max. Quando eu estava dançando com aquele rapaz.
Apenas assenti puxando a pequena para cima. –Claro, pode dormir no meu quarto.
Foi esquisito, era como se pudéssemos nos comunicar pelo olhar. Talvez, fosse essa a definição de amor. Poder ter longas conversas sem dizer uma palavra que fosse. Apenas pelo olhar.
Mas não foi como de costume, ela não sorriu contente e nem subiu triunfante comigo para o quarto. Ficou ali, cabisbaixa, fitando a paisagem. Isso me matava por dentro.
Sentei na cama, queria um assunto ou algo que quebrasse esse silencio aterrorizante. Sunny se juntou a mim, mantendo o silencio. Senti o corpo inteiro arrepiar quando nossos olhares se cruzaram em algum ponto desse terrível silencio, fazendo com que meu rosto ardesse em chamas.
-Vamos tentar dormir. – Sugeriu desconsertada.
Olhei em volta percebendo que não havia nenhuma outra cama que não fosse a minha. Suspirei cansada e puxei a varinha. Apontei para o chão e lá estava, um colchão. Sunny me olhou confusa.
-O que é? Seria tortura demais dormir na mesma cama que você.
-É, você tem razão. – Será uma longa noite.
Mas a pequena não foi se deitar, como havia sugerido. Deitou-se do meu lado na cama, fitando o teto. Eu não me pronunciei. Permaneci ao lado dela, a situação era desconcertante. Silencio perturbador. Perdi-me entre tantos pensamentos e teorias, até que me lembrei de nossas vidas passadas. Será que fora exatamente do mesmo jeito? E porque ela tem essa mania insuportável de me abandonar? Será mesmo que Sunny vai deixar essa pendencia nessa vida também? Acho que falta um pouco de coragem nela para assumir as consequências e ficar comigo. Porque essa covardia?
-Você está me culpando, não está? – Virou-se para mim. Engoli seco, do que ela estava falando? Eu nem se quer disse uma palavra.
-Quem disse? Tá maluca?
-Eu sei que você está me culpando. Posso ver nos seus olhos. Eu só queria o que era melhor para nós. – Olhei confusa para a garota que olhava fixamente nos meus olhos. Senti que ela podia ler minha alma através deles. E ficamos assim por alguns segundos, e bastaram apenas alguns segundos para que Sunny pudesse me ler completamente. Essa garota era fascinante.
-O melhor para nós? – Indaguei.
-Sim, o melhor para nós. O melhor para os demais também. Problema é que você é muito egoísta às vezes e não consegue enxergar nada além de você mesma e dos seus problemas. Existem outras pessoas com problemas também, sabia? Bem maiores que os seus.
-Do que diabos você está falando? – Perguntei confusa. Já temia que ela pudesse ler meus pensamentos e que por isso estava me dizendo essas coisas. Seria invasivo demais se ela pudesse. E confesso que às vezes tinha essa impressão.
-Eu desisti de você, porque o mundo precisa de uma feiticeira como você Alex. As coisas acontecem por um motivo. Você tem poderes incríveis e ao contrário do que você me disse, sei que seria uma terrível perda para a humanidade.
-Existem outros feiticeiros no mundo, alguém pode ter tanto ou mais poderes do que eu. Não sei por que você se preocupa tanto. – Respondi já perdendo a paciência. Sunny suspirou jogando seu corpo para o outro lado. Então me dei conta que na outra vida Sunny também desistira de mim por um bem maior, para guiar seu povo. Mas sabíamos que enquanto ela desistisse de mim, enquanto ela desistisse de ser feliz por conta de outras pessoas, nós levaríamos essa pendencia para outras vidas. Não é egoísmo nesse caso. Não é.
Sunny bufou nervosa, revirando os olhos.
-Tem uma coisa que você não me contou! – Lembrou-me posicionando-se ao meu lado.
-O que?
-Sobre a sua viagem para as vidas passadas. Prometeu que ia me contar, mas não contou. – O sorriso curioso de Sunny me fez estremecer. Era o sorriso, meu ponto fraco. Sorri de volta, tão terno quanto. Talvez não fosse tão ruim. Se o único motivo pelo qual ela desistira de mim fora os poderes que eu teria que abrir mão, poderia convencê-la a voltar para mim. Sei que poderia.
Quando me dei conta já tinha contado todos os detalhes do que descobrira em vidas passadas.
-Uma princesa? Jura? Que mágico. – Festejou.
-Pois é. – Observava a Sunny com a mesma ternura que ela me fitava. –Sunny....
-Sim? – Sua atenção toda voltada para mim, só Deus sabe o quanto é agonizante ficar ao lado dela sem poder beija-la, abraça-la.
-Não é egoísmo, é amor.
A pequena fechou os olhos soltando um pesaroso suspiro. –O amor não é egoísta.
-Não é egoísmo querer ficar perto de quem você ama. É instinto. – Peguei a mão da garota que descansava em cima de sua barriga. E ela não hesitou. Talvez essa fosse à deixa.
-Você e o Chad voltaram? – Certo, talvez não fosse essa a coisa certa a se dizer. Mas eu precisava saber. Desde a festa na lanchonete, não consigo tirar essa hipótese da cabeça. Sunny puxou a mão da minha, abrindo os olhos.
-Eu não quero falar sobre isso. – Me olhou sério.
Engoli seco, sentindo a angustia apertar forte contra o peito. Era o suficiente. A garota levantou-se em silêncio e foi direção ao colchão no chão. Não dissemos uma palavra. Apaguei o abajur, e permaneci ali durante alguns minutos, quieta, fitando a janela.
E foi nesse mesmo silêncio que senti o corpo quente da pequena me abraçar por trás, mantendo nossos corpos colados por baixo do edredom. E então, eu relaxei
.Acordei com o barulho da chuva batendo na janela. Apalpei o lado da cama procurando por Sunny, mas sem sucesso. Fiquei alguns minutos jogada na cama tentando puxar do fundo da memória se tudo não passara de um sonho.
E só então lembrei que tinha que ajudar na lanchonete. Acendi a luz forçando a vista para enfrentar aquela claridade incomoda que iluminava o ambiente. Então percebi que em cima do travesseiro que descansava do lado da cama em que supostamente Sunny havia dormido, tinha um bilhete.
“Obrigada por fazer cia. Obrigada por me proteger.”
Sorri abobalhada para o bilhete que estava em minhas mãos. Era o que eu precisava para começar bem o dia, não foi um sonho.
O movimento na lanchonete estava forte. Sunny servia as mesas enquanto Max cuidava dos pedidos.
-Max, onde está o papai e a Connie?
-Foram resolver alguns assuntos. – Respondeu apressado. –Isso aqui hoje está uma loucura.
-É, está mesmo! – Concordei enquanto observava assustada toda à movimentação. –Porque está assim? Algum evento nesse fim de mundo? Aqui nunca tem nada.
-Não sei por que, só sei que as mesas não irão se limpar sozinha maninha. – Max jogou um pano de prato em mim e me pediu para limpar as mesas. Revirei os olhos dando as costas ao rapaz. No fundo ele sabia que a única coisa que eu iria fazer era sentar em alguma mesa no fundo da lanchonete e folear algumas revistas inúteis. E foi exatamente o que eu fiz. Até a lanchonete fechar.
Avistei Max subir cansado sem perceber que eu não fizera nada. Suspirei aliviada mantendo minha atenção na revista que estava acabando de ler.
-Não vai limpar as mesas? – O tom suave da voz percorreu doce pelos meus ouvidos, me fazendo arrepiar.
-Claro, posso fazer em um minuto. – Puxei a varinha da bota e duas sacudidas foi o suficiente para que o lugar estivesse brilhando. Sorri maliciosa para a garota que balançava a cabeça mostrando sua reprovação.
-Você não saberia viver sem seus poderes. – Sorriu fraco para mim. Fechei os olhos tentando afastar qualquer resposta grosseira que eu poderia dar naquele momento. Mas eu já não tinha mais paciência para essas insinuações esdruxulas.
-Você não me deu o direito de escolha! – Disse a encarando seriamente.
-Como assim?
-Em momento nenhum você me perguntou se me importaria abrir mão dos meus poderes, você decidiu por mim. – Percebi que Sunny estremeceu ao ouvir minhas palavras. –E se você tivesse me perguntado eu teria respondido que abrir mão de qualquer coisa seria melhor do que ficar sem você.
Sunny fitou o chão, cabisbaixa. Não sei se isso a fez refletir ou não. Só sei que as palavras saíram como o ar.
E é mais ou menos isso, talvez eu não tenha mais paciência para ficar brincando disso. Já havia deixado claro o que eu queria, a decisão era dela. Tudo estava em suas mãos. Sunny levantou irritada, empurrando a cadeira contra a mesa. Arregalei os olhos para a garota, que agora seguia direção à cozinha. Senti raiva e indignação naquele momento, levantei por um impulso e fui atrás da garota. Eu tinha muita coisa pra dizer.
-Qual o seu problema? Você nunca tem coragem de encarar os problemas de frente. Fica se munindo de desculpas para se afastar de mim. Sempre foi assim. – Apontava pateticamente o dedo para a pequena que se encolhia perto da pia da cozinha da lanchonete.
-Como assim sempre? Eu te conheço não faz nem um ano!
-Foi exatamente a mesma coisa na outra vida. E você vai cometer o mesmo erro nessa vida! E quantas vidas teremos que viver para você finalmente ter coragem o suficiente para ter um final feliz comigo? – Conclui a frase com o tom de voz alterado. Sunny ficou em silencio, me olhando assustada.
-Que droga Sunny... – Reclamei com a voz chorosa, as lágrimas já escorriam sem piedade pelo rosto. -Que direito você acha que tem de chegar aqui, me devolver toda a felicidade que eu achei que tinha perdido pra sempre e toma-la de volta assim, tão cruelmente? – Sem perceber eu já estava em prantos.
Abaixei a cabeça deixando que as lágrimas escorressem sem ter que encara-la. E então senti seus braços me envolverem docemente. Uma súbita onda de tranquilidade percorreu o meu corpo. Meus pensamentos se mesclaram magicamente. Apenas relaxei em seus braços.
Ficamos longos minutos abraçadas, sem dizer nada.
-Só deixa rolar, Alex. – Sussurrou no meu ouvido. –Deixa rolar, é só agir naturalmente.
Não sei dizer se isso era bom ou ruim. Só sei que toda dor, tristeza, melancolia e raiva desaparecia sempre que ela me tocava.
E eu deixei rolar, agi naturalmente como ela havia me aconselhado. A dor diminuiu talvez pela presença mais frequente da pequena, embora em quartos separados. Já que em diversas noites, ficamos até altas horas conversando, rindo, brincando. Doía demais ter que agir como se não houvesse nada entre nós, mas era melhor que nada. O pouco de Sunny que eu tinha já me ajudava a seguir em frente.
-Quer um copo de suco? – Ofereci educadamente para a pequena que descansava no sofá da sala.
-Ah, seria agradável! – Aceitou piscando para mim. Joguei o suco que havia na caixa dentro do copo e levei para Sunny, devolvendo a piscadela.
Max se jogou no sofá entre nós duas. –Alex, o meu amigo Jordan não para de falar de você! – Disse passando o braço em volta do meu pescoço. –Disse que você é linda, encantadora.
-Quem é Jordan? – Perguntei confusa.
-É o rapaz que você beijou na festa da minha namorada.
-Ah sim.. – Alisei os cotovelos enquanto fitava o chão, me lembrando daquela cena patética.
Sunny bufou desconsertada revirando os olhos.
-Posso dar seu telefone para ele, maninha? – Perguntou inocente. Mas algo me dizia que havia alguma intenção em Max. Percebi que a pequena tentava disfarçar o descontentamento em vão, pois era evidente que ela ficou com ciúme. O que, confesso, encheu meu peito de alegria. Puxei o rapaz para o terraço, questionando sua atitude.
-Porque você está dizendo essas coisas na frente dela?
-Vai funcionar, ela ficou com ciúme. Quem sabe assim ela não acorda? – Concluiu triunfante.
-Alex, você precisa tomar uma atitude. Eu já tive várias conversas com a Sunny e sei que ela ainda gosta de você. Ela só não quer que você perca seus poderes, ela acredita que isso é um dom precioso e que seus poderes podem proteger o mundo, assim como você a tem protegido. – Pensando por esse lado, era doce o pensamento de Sunny.
-Mas eu já tentei Max, e já deixei claro que quero ficar com ela e não me importo em perder meus poderes.
-Então tente mais, seja mais convincente. Cabe a você lutar por aquilo que quer. – Max deixou o terraço, me largando ali. Fiquei imóvel tentando absorver tudo o que ele me dissera. Max era incrível, com poucas palavras ele conseguia me fazer tomar decisões com clareza.
E ele tinha razão, o que eu fiz na outra vida? Assenti a partida de Rosalinda sem nem se quer lutar por ela. E nessa vida? Aceitei sua decisão sem nem se quer lutar por ela. Claro que deixei evidente minha indignação e meus sentimentos, mas não era o suficiente. Preciso de um caminho, preciso mostrar para Sunny que nosso amor é mais importante que os meus poderes. Que talvez existam outros jeitos de proteger a humanidade sem ser um feiticeiro.
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