Giulia encolheu as pernas, trazendo-as para junto do peito, apertando-as com os braços e apoiando o queixo nos joelhos.
Aquela era mais uma das noites em que não conseguia dormir. Em que não podia dormir.
Porque os pais estavam brigando outra vez.
Ok, tudo bem, eles não estavam exatamente brigando. Não haviam vozes alteradas ou coisas sendo arremessadas, não como Giulia já havia presenciado acontecer com seus vizinhos.
Mas, talvez, as vozes baixinhas e sérias, tão sussurradas que Giulia não conseguia saber quais palavras formavam, fossem muito piores do que qualquer grito.
Talvez fosse porque mesmo que ela não pudesse entender as palavras, sabia perfeitamente do que estavam conversando. Os sinais eram claros: a maneira como seus pais já não mais sorriam apaixonadamente um para o outro, não mais se abraçavam com alegria ou cozinhavam juntos, que era algo que eles gostavam muito de fazer.
Que não mais se amavam, não como antes.
Giulia só não entendia o porquê.
Eles funcionavam tão bem juntos! Eram um casal bonito, e não apenas porque eram os pais dela. Eles realmente se amavam e faziam de tudo um pelo outro, Giulia enxergava isso!
Era isso, então? Eles não enxergavam mais que eram um casal perfeito? Que eles eram tudo para ela e ela não queria que se separassem?
Ela escondeu o rosto nos braços, sentindo a garganta apertar e o peito doer. De seu esconderijo na árvore, com as luzes apagadas e sendo iluminada apenas pela lua, Giulia pensou o que poderia fazer para mostrar aos pais que eles não precisavam se separar.
Foi quando o murmúrio baixinho de vozes se silenciou no andar de baixo e Giulia apurou os ouvidos, escutando o som abafado das escadas rangendo e a porta de seu quarto abrindo, logo antes da janela ser aberta também.
— Giulli? — chamou a voz cansada porém suave de sua mãe, e Giulia ergueu os olhos para ela.
Elisa sorriu tristemente, o tipo de sorriso que denuncia um coração partido. Giulia se perguntou se ela estava sorrindo daquela maneira por vê-la triste ou pela conversa que acabou de ter com Massimo.
Talvez fosse pelas duas coisas.
— Venha cá — chamou, erguendo a mão, e Giulia não hesitou antes de pular no lugar, andando cuidadosamente no galho longo e entrando no quarto.
A mão carinhosa de Elisa passeou pelos cabelos ruivos da filha, tão parecidos com os próprios, e ela suspirou antes de se sentar na cama, puxando Giulia consigo.
— Giulli, eu preciso ter uma conversa muito importante com você. Seu pai e eu...
— Vocês vão se separar? — cortou-a, falando apressada, a tristeza e o desespero nítidos em sua voz. — A senhora e o papa... Vocês não se amam mais, é isso?
O rosto bonito de Elisa se retorceu em dor, mas ela suspirou outra vez e olhou profundamente nos olhos de Giulia.
— Jamais pense que eu não amo vocês, Giulli. Porque eu amo, muito. Amo você mais do que amo qualquer coisa, e amo o seu pai também. Nunca se esqueça disso.
— Mas então... Então por que...?
— Você é nova demais para entender, querida...
— Não sou, mamãe. Eu já estou grandinha. Já tenho seis anos! Estou aprendendo várias coisas nos livros que a vovó trouxe para mim de Genova. A senhora pode me contar!
Elisa sorriu outra vez, ainda mais tristemente do que antes, pegando as mãos pequenas nas suas.
— Giulli, eu me casei com seu pai porque o amava muito. E eu ainda o amo demais, mas... Às vezes, querida, só o amor não é o bastante para manter duas pessoas unidas. Um relacionamento precisa de muitas coisas para permanecer forte e sólido, e uma dessas coisas é que ambas as partes do casal precisam estar pensando em conjunto, ter o mesmo objetivo de vida.
— E vocês não tem isso?
— Não, não mais. Você sabe porquê nós moramos aqui em Portorosso, não sabe?
Giulia balançou a cabeça em concordância, tentando entender onde a mãe queria chegar.
— Sim, vocês já me contaram. O papai queria uma vida tranquila trabalhando com pesca, então se mudaram para cá.
— Isso. Ao mesmo tempo em que eu pensei que um lugar calmo e pacífico seria o ideal para me dedicar à minha arte, e foi por isso que eu concordei em vir. Nós tínhamos o mesmo objetivo de vida, e por isso deu certo.
— Mas e agora?
— Agora... Eu não sinto mais que este é o meu lugar, Giulli. Eu preciso de novos ares e novas inspirações para minha arte e... É por isso que nós vamos voltar para Genova.
— O quê?! — Giulia gritou, arregalando os olhos, e Elisa suspirou de novo. — Mas essa aqui é nossa casa! E... E o papai? Nós vamos deixar ele aqui? Sozinho?
A menina sentia seus olhos prestes a transbordar em lágrimas, a visão meio turva focando apenas no semblante triste da mãe. Começou a balançar a cabeça para os lados.
— Não podemos fazer isso! — exclamou, levantando da cama. — Não é justo! O papai vai ficar triste se a gente for embora, mamãe! Eu vou ficar triste!
— Eu sei, meu amor, eu sei. Todos nós estamos tristes, essa não foi uma decisão fácil. Mas... Giulli, há momentos em nossas vidas em que é preciso seguir o coração, não importa o quão difícil isso seja. Porque o nosso coração sempre sabe o que é melhor para nós, então se ele pede para você ir, você deve ir, mesmo que queira muito ficar.
Giulia soluçou e Elisa a puxou para os braços, aninhando-a em seu colo e começando a fazer carinho em seus cabelos.
— Nós vamos voltar para Genova e você vai pra uma escola de verdade, vai fazer novos amigos e aprender muito mais. Vai poder falar com o papai todos os dias pelo telefone e todos os feriados pode vir visitar ele, e todas as férias de verão pode vir passar aqui. E todos nós vamos ficar bem, meu amor, eu prometo.
E Giulia sabia que sua mãe estava certa, porque ela sempre estava.
Mas, naquele momento, ela apenas se sentia triste e amedrontada.
Quando Elisa a deitou na cama para dormir e a deixou sozinha, Giulia pensou em como seria sua vida dali em diante. Pensou em como ela sentiria saudades de seu pai, e pensou em como ele lidaria ao ficar em Portorosso sozinho a maior parte do tempo.
Foi quando ouviu um barulho na janela e ergueu a cabeça do travesseiro. Levou um pequeno susto ao notar que o barulho foi na verdade um filhotinho de gato pintado que havia pulado no parapeito, e então saltado para o chão, começando a brincar com os livros que estavam espalhados por ali.
Giulia sorriu abertamente quando o gatinho virou para ela e pôde perceber que a pelagem do focinho dele era muito parecida com o bigodão grosso de seu pai. Ela se moveu calmamente para não assustá-lo, esticando a mão para fora do lençol.
O bichano se achegou com desconfiança, cheirando-a de longe antes de se dar por vencido e esfregar a cabeça nos dedos dela, que logo se puseram a acariciá-lo.
— Oi, amiguinho — ela murmurou, sorrindo ao ouvir o gatinho ronronar. — Você está perdido? Ou não tem uma casa para morar?
Ele soltou um miado agudo e Giulia pôde jurar que estava verdadeiramente falando com ela.
— Não tem uma casa, né? Quer morar aqui? Eu acho que você vai ser uma boa companhia para o papa quando eu for embora. Você vai gostar dele. Ele parece ser um homem durão e carrasco, mas é uma manteiga derretida por dentro.
O gatinho miou outra vez, e Giulia voltou a sorrir.
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