Fechou a porta com um empurrão impaciente, fazendo a batida da madeira velha ecoar em seus ouvidos. Encostou-se na parede, os dedos trêmulos apressando-se para afrouxar a gravata. As pernas custavam a mantê-lo de pé. Inspirou fundo uma, duas vezes, antes de cambalear para o sofá mais próximo.
Ainda tinha documentos para assinar, casos que não havia terminado de analisar, deveres de casa que se empilhavam em sua mesa, esperando para serem corrigidos. Um suspiro irritado escapou por seus lábios. Ele levou uma mão à testa e descartou as luvas.
Voltou a inspirar fundo, quase como um mantra silencioso. Sabia que não adiantaria vasculhar os bolsos: o frasco dos remédios que tanto precisava não apareceria magicamente entre seus pertences de uma hora para outra. Portanto, o melhor era ficar deitado e quieto até que tudo passasse.
Se tudo passasse.
Para alguém cujo ciclo biológico era de exatos três meses, não tendo nenhum problema mesmo durante a confusão da última Guerra Santa, que participara aos dezenove anos, duas irregularidades em menos de cinco semanas chegava a ser preocupante. Uma das médicas que conseguira visitar durante a rotina conturbada havia sugerido que talvez fosse por sua idade.
“Ômegas tendem a desregular o ciclo conforme ficam mais velhos”, dissera ela, quase sem olhar para a prancheta em seu colo e muito menos para o paciente que deveria estar examinando. “É uma forma de chamar a atenção dos alfas. Acontece.”
Cerrou os dentes, e suas unhas se enterraram no estofado gasto.
— Vejo que é uma péssima hora para pedir um favor — veio a voz feminina familiar.
— Reines — resmungou. Reconheceria aquele tom presunçoso em qualquer lugar, por mais que quisesse esquecê-lo todas as vezes que ela vinha lhe empurrar mais um trabalho pela pura diversão de vê-lo atender os mais diversos casos para quitar a dívida da família. — O que veio fazer aqui?
— A senhorita Olga Marie dos Animusphere acabou de me enviar uma carta muito interessante — ele escutou o som suave do pedaço de papel sendo deslizado pela mesinha de madeira. — Ela gostaria que o Lorde El-Melloi investigasse um caso aqui em Londres.
— E por que alguém com tanto poder não pode contratar alguém de dentro da família? — virou o corpo para encará-la, afastando a longa franja do rosto com uma mão trêmula.
Reines deu de ombros e cruzou as pernas no conforto do outro sofá do recinto. Ela carregava consigo o pesado cheiro da chuva e fumaça de Londres e trajava o conjunto azul-escuro que costumava usar apenas em ocasiões especiais ou em uma tarde de compras. O elegante guarda-chuva ainda úmido ao seu lado reforçava a segunda opção, e ele decidiu que não faria perguntas.
— Creio que tudo ficará claro ao ler isto — ela bateu o indicador no papel antes de se recostar em seu assento. — Ela parecia ansiar por sua reação.
— Mande um pedido de postergação do prazo — expirou ele com força, e voltou a fechar os olhos.
— Gostaria de lembrá-lo que você não tem direito a isso, mas… — Reines suspirou, apoiada no braço do sofá — eu odiaria ver meu querido irmão morto antes de minha cerimônia da maioridade. Abrirei uma exceção desta vez.
Ele bufou, escondendo um leve acesso de tosse. Engoliu todas as reclamações que queria disparar à figura da futura líder da família, e apenas assentiu uma vez.
— Quanto ao que você me pediu, aqui está — Reines puxou um diminuto livro de sua bolsa, depositando-o sobre a carta de Olga Marie. — Foi o único exemplar que Kairi Sisigou conseguiu recuperar nas bibliotecas de Londres.
— Ótimo — respondeu ele, ainda imóvel. Resistiu à vontade de levar as mãos à boca, tentando controlar a própria respiração em pequenos suspiros.
— Você sabe que isso não vai adiantar, não sabe? — perguntou ela após uma longa pausa, franzindo a testa para a capa remendada do livro. — Não que eu esteja reclamando dos métodos antigos, mas vários documentos foram perdidos com o passar do tempo, e isso não é só uma coincidência bizarra. Eles quiseram afastar pessoas como você do caminho da magia durante séculos.
— O receio dos antigos foi fundamentado durante um longo tempo, Reines — disse, lembrando-se da aula que dera há poucas semanas em sua turma. — Eles temiam que a magia da família fosse roubada por terceiros, caso confiada a…
— Ômegas? — interrompeu a garota.
— Exatamente. Vários povos antigos documentaram pesquisas para suprir a diferença entre os gêneros, mas os magos acabaram optando pela saída mais fácil — ergueu a mão em um floreio desajeitado, uma imitação mal sucedida do gesto que direcionara a Luvia ao obter a resposta correta da aluna. — No fim, varrer para debaixo do tapete se tornou a prioridade. As famílias sem os herdeiros considerados corretos estariam fadadas à extinção.
Reines apoiou o queixo na palma. Os olhos azuis pareciam pescar uma memória distante.
— O professor Kayneth também compartilhava dos mesmos ideais — assentiu ele, permitindo-se transportar para as aulas de seu antigo tutor. — Manter a tradição era o mais importante para ele.
— De fato — respondeu Reines, sem parecer estar realmente prestando atenção no irmão. — Talvez aquela cabeça dura tenha sido a causa mais provável para a sua morte, mesmo que certos ladrões de artefatos pareçam achar o contrário.
— Mas…
— Não importa mais agora — Reines levantou-se, agarrando o guarda-chuva e se dirigindo à saída. — Estes não são os tempos antigos, e você é o lorde da família El-Melloi. Meu estimado irmão.
Ele apenas encolheu-se um pouco no sofá e voltou a enterrar a face nas longas mechas maltratadas. A garota franziu a testa, seus olhos desviando-se momentaneamente para a pequena caixa no centro da escrivaninha bagunçada. A tampa entreaberta a preocupava, principalmente considerando o estado atual do mais velho, mas ela decidiu ignorar. Não era um assunto que cabia a si.
— Descanse bem — continuou ela, girando a maçaneta velha com um pouco de dificuldade. — Ainda preciso de você vivo para conseguir a recompensa dos Animusphere. Boa noite.
Ele mordeu os lábios, contendo todas as reclamações e xingamentos que queria cuspir fora. De qualquer forma, nada disso adiantaria para quitar sua dívida ou recolocá-lo em mais uma Guerra Santa.
Agarrou o casaco, desfazendo desajeitadamente os botões. Desistiu na metade do torso ao sentir um deles escapar dos fios gastos e se perder no chão, e limitou-se a cobrir o abdômen com os braços trêmulos. Mais uma tentativa desesperada de puxar o ar, os pulmões gritando em protesto. As lágrimas começavam a se acumular no canto dos olhos ressecados, e sabia que em breve a garganta em chamas começaria a implorar por líquido. Qualquer um.
“Vejo que está com problemas, garoto”, escutou a voz grossa, sem que tivesse forças para encarar de frente o fruto de suas ilusões.
— Rider — conseguiu suspirar, estendendo a mão a esmo e esperando encontrar o calor que o havia mantido aquecido há tempos.
Sabia que não era real, que a palma calejada que agora entrava em contato com a sua era apenas uma manifestação de suas memórias e do que havia desejado obter anos atrás. Mas a voz fantasmagórica, tão nostálgica, impedia-o de pensar com clareza e calava seus discursos sobre o lógico.
— Não é tão diferente daquele dia — balbuciou. Seus dedos se fecharam, um por um, em torno da mão enorme. — Vai me fazer companhia de novo?
“Mas é claro”, veio a resposta, junto a uma risada que quase o fez sorrir também. Sentiu o frio do inverno soprar-lhe a face e, em seus sonhos, encarava novamente o céu estrelado.
“Eu estarei sempre com você, garoto”, disse a voz, e Waver visualizou a figura do Rei dos Conquistadores ao seu lado, sorrindo para a noite com um olhar sonhador. “E um dia estaremos juntos, lado a lado. Como deve ser”.
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