Os trovões rugiam ferozmente, o céu noturno enegrecia ainda mais ao sustento das grossas nuvens de chuva, que ocultavam a luz da lua enquanto derramavam friamente uma chuva torrencial. A carruagem balançava bastante, mérito das estradas em péssimas condições e da lama que dificultava o caminho — cada minuto que se passava era o suficiente para afundar a Phantomhive em ansiedade e preocupação. Um raio caiu a poucos metros da estrada, os cavalos se assustaram um pouco — nada que o cacheiro não pudesse dar conta — enquanto isso, Astra se mantinha impassível do lado de dentro.
Sebastian havia lhe contado que, assim que chegou no sobrado abandonado ele notou que algo estava errado: não havia ninguém, a porta estava escancarada e o local tinha sinais de luta por todo o canto. Havia encontrado a pelúcia — violentamente esfaqueada — em um dos móveis, e não pensou duas vezes ao ver o bilhete dentro do recheio.
Os fios azulados caíam feito um cortina nos olhos da Phantomhive, que agora mantinha suas mãos sobre o colo, tentando controlar os espasmos nervosos que lhe acometiam. Ergueu a cabeça novamente, fitando o mordomo do outro lado do veículo, analisando as sobrancelhas negras franzidas enquanto o mesmo mirava os orbes avermelhados num ponto distante; pensativo.
— Ela, — murmurou Astra, fazendo Sebastian olhar parar si. — Lilith. Tem a ver com ela, não?
O mordomo assentiu para sua senhora, que trincou os dentes, enraivecida feito um cachorro. O estrépido dos cavalos cessou, bem como a carruagem que parou bem em frente a mansão Phantomhive. Astra não esperou por Sebastian, abriu a porta da carruagem ela mesma e saltou do veículo — não se importando com as gotas frívolas que caíam do céu feito canivetes. Engoliu em seco, haviam cerca de três carruagens com o selo da Scotland Yard paradas ali, bem como uma outra, que Astra deduziu ser a carruagem dos Midford.
Os pingos consistentes de chuva caíam do céu e transpassavam as roupas de Astra, sua pele estava úmida e fria, suas mãos tremiam conforme ela atravessava o pátio, subindo as escadas de pedra rumo à porta. Parou, encarando as grandes portas com certo receio. Seu lábio inferior tremeu, lembrando da última vez que havia sentido aquele arrepio gelado e desconfortável em seu ventre: medo, genuíno e puro.
Sebastian, igualmente encharcado como sua senhora parou ao lado dela, em silêncio ele apenas limitou-se a captar as sensações negativas que acometiam a garota, bem como as gotas frívolas que pingavam do queixo dela. O cabelo azulado colava-se ao rosto juvenil, os ombros dela tremiam por conta do vento cortante e Sebastian forcou-se a gravar aquela imagem em sua memória, sentindo que, jamais veria Astra Phantomhive com a mesma postura arrogante e roupas masculinas de sempre. Com um maneio de cabeça a menina ordenou silenciosamente para que o mordomo abrisse as portas, e assim ele fez.
As portas rangeram conforme foram abertas, e Astra — cética de qualquer superstição — adentrou o local com o pé esquerdo, assim como havia feito no dia que retornara para a mansão. Mal seus saltos bateram contra o piso e ela, juntamente com seu mordomo foram obrigados a parar.
— Scotland Yard! Parados!
Astra sofreu um sobressalto ao dar de cara com vários policiais, erguendo as mãos em sinal de rendição assim como Sebastian — que como sua senhora, não parecia nada contente. Astra mirou o único homem que não estava fardado, reconhecendo-o logo em seguida, assim como ele.
— Conde Phantomhive? — Aberline pareceu bem perdido no meio daquela situação, não entendendo mais nada. — Abaixem as armas!
E assim os policiais obedeceram a ordem de seu superior, fazendo com que Astra e Sebastian voltassem à suas posições iniciais. Bem ao lado de uma pilastra encontravam-se o marquês e marquesa de Midford, que pareciam tão aturdidos quanto o próprio inspetor.
— Está encharcado, o que fazia lá fora? — perguntou, preocupado. — Aliás, como conseguiu sair sem que...
O som seco de sapatos de salto alto ecoaram pelo ambiente, Sebastian arrepiou-se por inteiro ao sentir a áurea maligna da criatura que, elegantemente descia à escadaria principal. Olhou fixamente para a mulher altiva, nunca havia visto Lilith tão comportada em vestes tão condizentes à época — sem tecidos de seda negra, sem vestidos de fenda — naquele momento ela não era Lilith, era Meredith, a antiga governanta.
— Por favor aguardem um pouco mais. — pediu a mulher, parando no meio da escadaria. — O Conde ainda está sendo ouvido pelo comissário.
Os olhos da marquesa arregalaram-se e ela por instinto — assim como o marquês e o inspetor chefe, Aberline — viraram-se para Astra, que encarava os próprios sapatos. Sebastian fulminou sua antiga companheira, controlando-se para não perder o controle da coloração de seus olhos — e nem dar início a um confronto, pois até aquele momento era o mordomo dos Phantomhive, e isso significa zelar pela residência de seu mestre — mesmo que agora, Astra Phantomhive esteja prestes a perder o título usurpado, voltando a ser a antiga Honorable Lady Phantomhive.
— Mas, — começou o inspetor. — se o Conde está conversando com o comissário lá em cima então...
Astra sentia vontade de gritar, os dentes trincados enquanto suas pálpebras tremiam levemente, sentia a garganta seca arranhar enquanto sua mente anuviava-se, suas pernas tremiam e o mordomo temeu que sua senhora pudesse perder a consciência ali mesmo, — o que de fato quase aconteceu, senão fosse pelo ecoar de passos, desta vez sem saltos, descendo as escadas.
Um sorriso falso despontou nos lábios de Meredith enquanto a mesma olhava por cima do ombro, fixando os olhos esverdeados nas duas silhuetas que vinham descendo. Astra sentiu os olhos marejarem, mas nem por isso derramou uma lágrima sequer ao ver seu irmão, que descia ao lado de Randall. A marquesa de Midford soltou um arquejo, apoiando-se em seu marido enquanto o mesmo encontrava-se tão surpreso quanto ela. Finnian já estava com os olhos completamente vermelhos, chorando no ombro de Meirin — que assim como os outros servos, mantinham feições tristes e angustiadas — tudo que queriam era poder ajudar sua senhora, mas nada podiam fazer. Ciel estava mais pálido que o normal, as orbes azuis opacas denunciavam o cansaço e o jeito que ele olhava para a irmã, dizia que ele não queria está fazendo aquilo.
— Como...? — Aberline olhou para Astra, em seguida para Ciel, que agora estava ao lado de Meredith. — Não...eram um irmão e uma irmã...?
Meredith passou um dos braços pelo ombro de Ciel, puxando-o para mais perto de si como se ele fosse um filhotinho e ela a mamãe. Astra franziu o cenho, enojada pela atitude da antiga governanta e não entendendo o motivo de Ciel estar tão maleável. Conseguia sentir o incômodo do irmão, mas ele parecia não reagir — Astra supôs que ele talvez estivesse sendo chantageado.
— Mas o que está acontecendo aqui?! — esbravejou a marquesa, já bastante agastada em respeito a situação. — Seja lá o que for, eu exijo uma explicação!
Os punhos de Astra mantinham-se cerrados ao lado do corpo, sua maior vontade era de correr dali — entretanto, jamais perdoaria a si mesma por isso, seria mais humilhante do que já estava sendo — era orgulhosa demais para isso. Ciel ergueu o indicador, apontando-o contra Astra ao longe. Naquele instante, o coração dela quebrou-se mais uma vez.
— Ela, — a voz de Ciel vacilou por um momento, mas logo foi obrigado a firmar seu tom ao sentir as unhas de Meredith machucaram sua pele. — Ela é a impostora.
Sebastian olhou de canto para Astra, esperando suas ordens — já que a mesma sempre falava em fugir — mas não, ela não esboçava nenhum resquício de que desejaria aquilo. A ordem não veio, mas mesmo assim o mordomo manteu-se a postos.
— Astra, querida, o gato comeu a sua língua? — riu a mulher, o que fez Sebastian estreitar os olhos para ela.
Astra já não mais encarava o chão, sua cabeça estava erguida e seus olhos tansbordavam firmeza, encarando Meredith de volta — desafiando Lilith sem um pingo de medo. Ao lado de Ciel, Randal se mantinha em silêncio, não por pena mas sim por vergonha — afinal, o Cão de Guarda nada mais era que uma adolescente arrogante, não somente o pequeno Yorkshire que enfrentava sua pessoa — e obtia mais êxito que ele em alguns casos.
— Honorable Lady Phantomhive, — falou ele. — a senhorita está presa por suspeita de assasinato e falsidade ideológica.
❦
As algemas tilintaram ao serem puxadas do bolso de Aberline, que meio amargurado caminhou até a Phantomhive.
— Terei de algemá-la, — murmurou. — por favor, estenda as mãos.
Astra suspirou em descontentamento e tristeza, contra sua vontade ela estendeu as mãos assim como fora pedido, engolindo em seco ao sentir os aros metálicos cingirem os pulsos, pesando-os. Sentiu-se humilhada, os diversos pares de olhos queimando contra ela em um misto de desprezo e incredulidade. Como Sebastian sempre andava com Astra — e com toda certeza era guardião do segredo —, também foi detido e devidamente algemado.
— Os senhores também deverão nos acompanhar à delegacia. — Randall se dirigiu aos servos.
— Não. — rosnou Astra, mirando o comissário. — Deixe-os, eles de nada tem culpa.
Meio desconfiado Randall lançou um olhar desconfiado para a Phantomhive, ponderando se deveria dar o benefício da dúvida para alguém que havia mentido tanto.
— Não serão detidos, entretanto, deverão depor amanhã cedo.
Dois policiais se possicionaram ao lado de Astra, que resolveu andar por livre e espontânea vontade do que ser empurrada pelos dois. Olhou por cima do ombro, lançando um último olhar para Meredith — que ainda "confortava" Ciel — iria voltar a olhar para frente, mas foi impossível ignorar os quatro servos do outro lado. A sombra de um sorriso quase inexistente surgiu nos lábios pálidos, mas logo desapareceu assim que ela foi obrigada a andar.
A chuva ainda caía forte do lado de fora, o corpo de Astra tremia por completo e seus dedos estavam dormentes por conta do frio. Marchou até uma das carruagens da Scotland Yard, e foi praticamente empurrada para dentro por um dos policiais ali. As portas de ferro maciço foram fechadas rigorosamente, provocando estalidos metálicos dentro e fora da Black Maria que, comportava Astra e Sebastian em seu interior. As mãos da menina mantinham-se em seu colo e sua cabeça estava tão baixa que chegava a afundar em seu peito, seu único olho exposto estava fechado e por seus lábios entreabertos o ar condensava toda vez que ela suspirava.
Sebastian observava sua senhora em silêncio, jamais havia lhe visto tão derrotada e abatida, de uma hora para outra ela havia desmoronado feito um castelo de cartas — suas mentiras eram como um —, pequenas e delicadas farsas que erguiam-se uma por uma, e que ruiriam assim que alguém soprasse algumas verdades contra a frágil construção.
Um murmúrio baixo inrrompeu o silêncio, um riso fraco que aos poucos tomava mais intensidade, Astra tombou a cabeça um pouco para o lado enquanto ria em puro escárnio. Os fios azulados completamente úmidos e desalinhados colavam-se ao rosto, seu pequeno corpo arqueou contra a parede de metal atrás de si. Os acarminados olhos do mordomo se encheram de surpresa, atento à íris oceânica embevecida em crueldade — ela ria como se fosse o próprio Lúcifer.
— Eles estavam um passo à nossa frente. — murmurou entre o riso, olhando fixamente para um ponto qualquer. — Um perfeito xeque-mate.
— O que devemos fazer, Milady? — instigou o mordomo.
Astra sorriu de olhos fechados, refletindo sobre sua vida daquela situação adiante — voltar a ser chamada de Lady, usar os vestidos e espartilhos novamente — ou, na pior das hipóteses não seria uma gargantilha de brilhantes que cingiria seu pescoço, mas sim uma corda — a forca seria um de seus destinos, afinal ela havia enganado até mesmo a Rainha da Inglaterra.
— Esta não é uma partida comum de xadrez, Sebastian. — falou a jovem, um relâmpago cortou os céus novamente, iluminando o interior do ambiente. — É um jogo sem regras, no qual meu inimigo e eu veremos a morte. Eu, por suas mãos ao final do contrato, e ele por minha espada. — uma expressão turpida tomou conta da jovem, que preparava-se para ditar mais uma ordem. — Ouça, Sebastian, eu quero que você...
O rugir de um trovão abafou as palavras da Phantomhive, de modo que apenas seus lábios puderam ser lidos pelo demônio. Os olhos dele tomaram uma coloração rosácea outra vez, e ele mesmo algemado realizou sua impecável reverência. Naquela noite tudo mudaria, as mentiras cairiam por terra, as verdades nuas e cruas viriam junto com as responsabilidades que ela tanto havia evitado — além da cobrança, o sangue dos culpados e inocentes que manchavam suas mãos clamavam por justiça — naquela noite, tempestuosa e fria, renasceria Astra Phantomhive.
— Yes, my Lady.
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