"Nas mandíbulas da Morte,
Na boca do Inferno."
Alfred Tennyson
Há muito havia parado de chover com fervor, de modo que o chuvisco tênue havia virado neve no meio do processo, salpicando de branco a vasta faixa de relva. Astra sentiu suas roupas encharcarem assim que sentou, abaixo de uma árvore opulenta que conhecia bem.
Olhando daquele jeito nem parecia o mesmo lugar, com os raios de sol escapando por entre as nuvens para banhar com sua luz os fractais de gelo, que acumulados na vegetação refletiam de forma etérea. Bem diferente da noite em que encontrara com Sebastian pela primeira vez, tanto em forma de corvo quanto apresentado em sua verdadeira forma quando a salvou para restituir o favor, bem ali contra aquela mesma árvore no qual havia sido encurralada de forma tão perversa anos antes.
Por um momento ela se pegou refletindo naquele detalhe, no quanto a existência do ser humano era curta e movida pela mediocridade. Por um momento pensou em Ciel, e seu coração se encheu de dor por seu irmão ter morrido por alguém tão egoísta como ela. Era ele quem deveria morrer num berço tão esplendoroso como aquele, e não num recinto vil banhado em sangue.
Olhou para a florzinha azul que tinha em mãos, havia arrancado-a de uma vegetação rasteira e simplória, torcendo o caule da mesma para confeccionar um anelzinho, bem como Lizzie havia lhe ensinado quando eram mais novas. Anelou-o em seu polegar, e pôs-se a admirar o artefato bucólico.
Não conhecia a espécie da diminuta, mas admirava a forma como ela e suas outras irmãzinhas sobreviveram mesmo sob a ira glacial do clima. Abandonou o anel patriarcal, nem se importou em levá-lo das mãos do tio, deixou-o para trás em meio às chamas como todo o seu passado. Olhou para Sebastian logo à frente, que lhe observava a cada ação, minuciosamente.
— Estou pronta — ela informou com frieza ensaiada. — pode vir tomar o que é seu, Sebastian.
Mesmo em seu fim continuava a portar-se como a nobre que era, tão orgulhosa e impassível que parecia não temer o que estava por fim, por mais que o brilho em seus olhos díspares dissessem o contrário. Sebastian nunca havia visto alguém reagir tão bem naquelas circunstancias, a maioria dos seus antigos mestres arrependiam-se de se entregar a ele. Astra não tinha noção de como sua alma seria separada de seu corpo, e o desconhecido lhe apavorava.
Sebastian havia dito-lhe tempos mais cedo que, geralmente eles deveriam ir à Ilha dos Mortos, onde o selo poderia se desfeito e sua alma tomada. Entretanto, sua contratante ainda estava viva, e por essa circunstância não poderia adentrar aquela dimensão.
Astra suprimiu a vontade de se afastar assim que seu antigo mordomo aproximou-se, não poderia negar aquilo a ele, mas não escondia o receio. Humanos já nascem com medo, está em seu código genético e instinto de sobrevivência, e Sebastian sabia disso.
— Creio que não posso mais chamar-te por teu nome de contrato. — e estremeceu assim que ele tocou sua mão, sentindo o calor das mãos dele já livre das luvas.
Rapidamente voltou a encará-la nos olhos, sentido o nervosismo dela, sabia que a jovem falara qualquer coisa por seu estado ansioso.
— Não. — simplesmente respondeu, para logo depois voltar sua atenção à flor anil em um dos dedos dela, prosseguindo retoricamente. — Também não te direi meu nome, é uma informação inútil para alguém nesta situação.
— Certamente. — concordou, sentindo-o levar o torso de sua mão até os lábios.
Mas não depositou um selar ali, como havia feito outras vezes em sinal de submissão. Ao invés disso Raum deslizou os lábios até os limites da palma entre o pulso dela, pressionando os dentes ali com força. Astra reclamou, mas sem muito escândalo, tentando ignorar a dor latente e a sensação quente de seu sangue a escorrer.
— Terei de matá-la. — e sorriu descaradamente, logo após sorver de algumas gotas de sangue.
Sentia-se pequena e frágil contra o demônio, que não tardou em abandonar sua mão sangria para idealizar as artérias azuladas de seu pescoço alvo. Sentia a respiração dele ali, como um animal faminto, quente e pesado contra si, cerrando os dentes ao tentar suprir a dor das garras dele afundarem em sua carne conforme a segurava, inspirando o calor e o perfume maculado pelo medo que ela exalava.
Quis gritar e quase o fez, mas para tal esforço inútil Astra não tinha força alguma. Debateu-se ao senti-lo lacerar seu pescoço, enojada pela forma como ele aparentemente estava extasiado por seu sangue, que jorrava tão abundante que chegava a manchar o tecido e a neve sob si.
Foi o suficiente, o demônio apenas afastou-se para encará-la, lambendo os beiços embebidos em vermelho como uma besta. Quase sorriu ao ver a raiva transparecer nas íris heterocromáticas, disse que quando as almas eram devoradas a inexistência era seu destino, entretanto não disse que seria doloroso.
Astra tinha esperanças de uma morte indolor, mas nem isso pôde se dar ao luxo. Num canto afastado de sua mente nublada pelo desespero, a jovem até achou melhor assim, a dor sempre estivera consigo e nada mais justo do que estrelar o seu fim com sofreguidão, abatida como um animal qualquer. Marcada pela dor até na alma.
Não demorou muito para sentir os efeitos da baixa pressão sanguínea, a frivolidade e formigamento de seus membros, chegando até mesmo a engasgar com o sangue que inundara suas vias respiratórias por conta das lacerações. A Phantomhive sentiu um formigamento assim que os dedos do demônio tocaram seu rosto, forçando-a à olhar para si, tão maleável quanto uma boneca de pano ela apenas obedeceu.
Raum pode notar o selo aos poucos se tornando mais tênue, e isso lhe agradou o bastante para que perdesse o controle, quase já sentindo a amargura daquela alma. Afundou mais as garras contra os pulsos dela, inclinando-se o suficiente para alcançar o líquido rubro que escorria dos lábios da jovem, sorvendo da flor sangria de sua boca, sedento e selvagem, beijando-a com mais violência ao sentir a alma dela ficar disponível para si, tomando-a de seus lábios com fervor.
Era mais que suficiente, mais que deliciosa, um âmago perverso recheado com toda a sorte de males que havia cultivado. Extasiou-se, seu estado afetado pela qualidade altíssima daquela alma tão cheia de desassossegos. Estalou a língua em irritação assim que percebera o que fizera. Fora com tanta sede ao pote que acabou por esvaziá-lo, por assim dizer. Desejou ter sido mais vagaroso, saboreá-la com mais lentidão, mas tudo que restava sob si naquele momento era um cadáver ainda quente.
Fechou os olhos dela com indiferença, mordendo o próprio lábio inferior ao ainda sentir o gosto dela em sua boca. Queria mais, mesmo que estivesse satisfeito pelos próximos anos, a gula lhe consumia. Mas se deu por vencido, afinal nunca mais acharia uma alma como a daquela jovem.
Nunca mais.
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