"Talvez algum dia, em algum lugar, numa ocasião menos triste,
nós vamos nos encontrar outra vez."
(Lolita)
Clara ainda podia sentir o pesado corpo do homem desconhecido sobre ela, sentia ele dentro dela e a dor era dilacerante. A garota caída no chão de um beco comum era segurada por um homem enquanto outro a violava cruelmente, Clara ainda tentava gritar mas sua voz havia desaparecido com os socos na barriga, ela havia desistido de lutar ainda que as lagrimas continuassem saindo desesperadamente de seus olhos. O único lugar que ela podia olhar era para o céu estrelado, a única forma de não encarar o que faziam com o seu corpo.
A garota impossível se perguntou: como havia chegado até aquele dia? O que a fizera sair durante a noite para buscar informações de uma anciã? Infelizmente Clara sabia a resposta: três semanas antes estava na biblioteca pública de Buenos Aires e quando se levantou para devolver o livro que consultava, um homem passou por ela correndo. Esse homem usava sobretudo bege, cabelos negros e terno azul; possuía trejeitos muito empolgados embora seus olhos fossem na verdade velhos e Clara ao vê-lo soube que ele era seu destino, seu irrefreável destino e perguntou se o estranho desejava ajuda. O viajante nada disse, apenas assentiu seriamente como se fosse incapaz de reconhecer a beleza, a inocência e a empolgação de uma jovem mulher.
O viajante queria ajuda para encontrar um livro, ele sussurrou o nome para Clara que encontrou o exemplar facilmente em seguida ele agradeceu, disse adeus e fugiu da biblioteca em disparada carregando o livro. Clara não sabia mas aquela era a Décima Regeneração do Doctor e mais uma vez ele não havia notado a garota impossível. Desde esse momento a jovem procurou por informações sobre o homem, encontrou um jornal antigo, cruzou referencias e então soube que uma velha anciã na cidade o conhecera. A anciã marcou o encontro para aquela noite e Clara foi até ela, falaram por muito tempo e a garota pôde ouvir sobre algumas das aventuras do estrangeiro, quando Clara perguntou a anciã qual era o nome do viajante a mulher respondeu que ele se chamava “morte”. Depois disso a garota decidira voltar para casa, caminhou pelas ruas escuras até que aqueles dois terríveis homens a assediaram, bateram e a arrastaram para aquele local terrível.
Clara não sabia quanto tempo estava deitada na sarjeta de um beco qualquer, contudo pareciam dias, a dor era grande demais e toda a luta que travava para se libertar daqueles seres humanos vis fora inútil. A garota ainda chorava, ainda olhava para as estrelas e ainda sentia a humilhação e a dor do abuso daqueles homens quando um estranho barulho se fez no local, quando uma luz azulada irrompeu fazendo um dos homens recuar.
-Polícia! Polícia - Disse um deles fazendo o outro sair de dentro de Clara e fugir em disparada.
O Doctor em sua décima regeneração abriu a porta carregando o livro que dias antes havia pegado, estava decidido a devolver para a biblioteca agora que era seguro. Era uma intenção ingênua deixar a Tardis segurando um livro, contudo o que ele testemunhou em seguida não foi fácil: uma jovem mulher com roupas completamente rasgadas estava caída no chão, ela tremia, sangrava e tinha as pernas levemente abertas. O Doctor compreendeu imediatamente o que havia ocorrido, compreendeu que havia espantado os agressores daquela jovem e então sentiu raiva, vergonha e ódio pela humanidade.
Muitas vezes pensara nas crianças mortas, mas poucas vezes pensara nas crianças violadas.
A garota estirada no chão tinha no máximo dezessete anos e havia tido o pior da humanidade. O Doctor se odiou, se odiou por salvar a humanidade, se odiou por ter intervido tantas vezes por uma raça que era capaz de fazer tamanha crueldade com um semelhante. O Senhor do Tempo estava prestes a voltar para TARDIS, mudar a história e o tempo para salvar aquela garota evitando que os homens a encontrassem quando algo o impediu.
-Ajuda, por favor - A voz da jovem era um sopro de sofrimento e dor.
Ela ainda olhava para cima como se buscasse uma salvação vinda dos ceús. O Doctor soube que poderia mudar o passado depois, deveria ajuda-la antes, deveria amparar aquela garota, deveria se lembrar dos motivos pelos quais salvar a humanidade ainda valia a pena. O Senhor do Tempo tirou o sobretudo e se aproximou de Clara.
-Posso colocar isso em você? - Perguntou o Doctor muito baixo, temendo não poder tocar na garota.
Clara assentiu e o Doctor a ajudou a se sentar, envolveu o sobretudo no corpo da garota a protegendo da ausência de roupas, ele a deixou sentada e recostada na parede do beco e em seguida se sentou ao lado dela. Clara tremia copiosamente embora fizesse calor naquela noite, ela tremia porque o trauma era grande demais e seus olhos devastados permaneciam cheios de lagrimas que não paravam de cair em cachoeiras.
-Obrigada - Disse ela ainda tremendo, ainda chorando e agora consciente que o homem ao lado dela era o Doctor.
-Eu sinto muito, você está em choque mas ficará bem - Respondeu o Doctor com a testa franzida e a expressão séria enquanto engolia em seco. - Precisamos ir até um hospital, ficarei com você até que esteja pronta para ir.
-Eles me violentaram, dois homens me violentaram - Disse ela olhando para o Doctor nos olhos enquanto ainda chorava - Deus…por que? - Clara chorava olhando para o céu e então completou em uma mistura de indignação e tristeza - Eu era virgem…eles tiraram isso de mim.
O Doctor passou um dos braços nos ombros de Clara e fez a garota se recostar em seu peito, daquele modo ele parecia ainda mais alto e o choro daquela pobre criança parecia ainda mais terrível. Ele sabia que não poderia dizer nada, que deveria se manter em silencio ainda que sua raiva pelos homens que aquilo fizeram crescesse mais e mais.
Agora que o Doctor a abraçava e ambos permaneciam contra aquela parede, ainda sentados, ainda em meio a luz fraca gerada pela Tardis o Senhor do Tempo pôde perceber os cortes na perna da garota, o casaco que caía levemente revelava o ombro com mais machucados enquanto era possível ver o sangue que percorria as pernas da garota.
-Eles te sodomizaram, te torturaram - Disse o Doctor ainda sentindo o corpo de Clara contra o seu, agora os olhos dele estavam cheios de lagrimas. - Preciso saber se não está muito ferida.
Clara por muito tempo não respondeu, continuou chorando no peito daquele homem que fora o motivo para tudo aquilo ter começado, continuou chorando porque haviam tirado dela mais do que poderia recuperar. Chorava porque seu corpo violado estava dolorido e porque sua alma havia sido violada.
-Qual o seu nome criança? - Perguntou o Doctor quebrando o silencio.
-Eu não quero dizer porque se eu contar meu nome enquanto sou apenas isso…é assim que irá se lembrar de mim - Disse Clara finalmente se afastando, finalmente deixando as mãos do Doctor a liberarem, agora estavam sentados lado a lado muito perto um do outro.
-Você está sangrando, eu preciso saber porque está sangrado - Explicou o Doctor agora voltando a fitar os olhos da garota, uma lágrima caiu de seus olhos castanhos já velhos. - Precisa ir a um hospital.
-Eu nunca fui beijada - Declarou Clara como se nada que o Doctor dissera importasse - Nunca nenhum homem me beijou, eu nunca senti um único toque de um bom homem.
Clara disse isso olhando para a outra parede a cinco metros dela que formava o beco e então a garota virou o rosto encontrando os olhos do Doctor. Ele tinha o rosto com duas lágrimas caídas, tinha os olhos cheios de novas lagrimas e se mantinha encostado na parede do beco ao lado de Clara porém o corpo dele estava levemente inclinado para frente porque tinha um dos braços apoiados sob a perna que estava erguida.
A garota tocou o rosto dele o surpreendendo, Clara suplicava que ele a beijasse e o Doctor tocou o rosto da garota, as testas se encontraram e em seguida o Doctor a beijou longa e delicadamente. Eles se beijaram enquanto choravam, enquanto não compreendiam e enquanto tudo parecia terrivelmente escuro e cruel.
-Foi o melhor primeiro e último beijo que eu poderia desejar - Garantiu Clara mordendo os labios.
-Não foi o último - Assegurou o Doctor ainda com a voz gentil e baixa - Seu corpo será curado e a levarei para conhecer as estrelas e…. então nos beijaremos novamente.
-E você fará amor comigo como se fosse o primeiro? - Perguntou Clara ainda chorando, ainda com a voz falhando.
-Eu serei o primeiro e tudo isso que fizeram com você não terá mais existido - O Doctor planejava apagar a memória da garota.
-Então estou pronta para ir até o hospital - Respondeu Clara fazendo o Doctor ficar de pé a ajudando a se erguer.
Nesse momento Clara compreendeu que jamais chegaria até o hospital. Se lembrou que um dos homens a esfaqueou pelas costas para que ela parasse de lutar, foi assim que eles conseguiram arrasta-la até aquele beco terrível, ela estava sangrando e o sangue perdido não era apenas da sua virtude perdida a força. Era também de um ferimento que não se mostrara para o Doctor.
A garota assim que ficou de pé caiu sobre os braços do Doctor quase inconsciente, o Senhor do Tempo a segurou em seus braços e no momento seguinte o coração da jovem parou de bater. Naquela noite em Buenos Aires o Doctor chorou pelo corpo de uma garota violentamente morta que ele jamais conhecera e naquela mesma noite ele encontrou os assassinos daquela garota e naquele momento, tanto tempo depois da Guerra do Tempo, ele se permitiu matar.
Naquele dia a décima regeneração do Doctor após ter conhecido e perdido Rose Tyler, Martha Jones e Donna Noble soube que estava condenado. Naquele estranho momento ele compreendeu que a fúria fora longe demais e que o fim estava próximo.
Naquela noite a decima regeneração do Doutor conheceu Clara.
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