Quando crianças, nossos pais gostam de acreditar que somos especiais de alguma maneira. Não que eu ache que esses pais estejam errados, cada um de nós tem sua própria estrela, seu próprio talento, suas próprias individualidades, isso é um fato. Também não podemos negar que existem crianças no mundo que tendem a ser um pouco mais especiais do que as outras, destacando-se por suas individualidades marcantes e até meio fantásticas.
Pode parecer meio arrogante da minha parte dizer, mas eu sou uma dessas crianças.
Tá, mas o que eu tenho de tão especial assim? Realmente, se você olhasse para mim agora, veria apenas um garoto nativo americano de um metro e cinquenta e cinco de altura usando uma calça jeans desbotada, uma camiseta branca com um suéter verde meio surrado por cima, uma jaqueta xadrez azul e botas de couro marrom. Ou era assim que eu estava no dia em que meu pai revelou que tudo o que eu achava ser apenas folclore do meu povo era, na verdade, real.
Okay, talvez eu esteja exagerando um pouco... Não foi bem uma revelação, eu já sabia que as histórias eram reais, eu sempre soube, mas não pensei que fosse acontecer comigo do jeito que foi ou na minha idade atual, 11 anos, papai disse que demoraria mais tempo para acontecer. Sinceramente, pensei que ele estivesse falando da fase humana onde as pessoas não são nem adultas, nem crianças, elas ficam cheias de hormônios e os corpos começam a mudar, além de ficarem loucos pela aprovação da sociedade ou de algum grupinho social específico para sentirem que fazem parte de alguma coisa.
Acham que chamam isso de adolescência. Ou alguma coisa assim.
De qualquer maneira, nós estávamos no Texas quando coisas estranhas começaram a acontecer, eu comecei a enxergar pessoas que os outros não conseguiam, elas falavam comigo, era assustador. Meus sentidos ficaram mais apurados, eu comecei a ouvir sons a uma longa distância, sentir cheiros muito melhor do que os outros, minha visão ganhou uma longitude maior, era desorientador.
Às vezes eu acordava e via meu próprio corpo deitado na cama e gritava, ninguém podia me ouvir, eu corria e atravessa paredes como o vento, eu tentava falar com meu pai, mas ele parecia não conseguir me ver, cheguei a pensar que estava morto na primeira vez que isso aconteceu, até que o pânico se instalou e eu voltei ao meu corpo. Sem contar os sonhos e sensações estranhas que comecei a ter, na verdade, eram mais como previsões do que sonhos.
No começo pensei que estivesse ficando louco, ou que eu estivesse me transformando em algum tipo de monstro, estranho, esquisito e desconhecido, o que seria um problema já que ganhamos a vida caçando esse tipo de coisa.
É nós somos tipo caçadores sobrenaturais, que nem a família Winchester daquela séria da CW. A diferença é que eles são humanos que caçam tudo e qualquer coisa sobrenatural e nós somos seres sobrenaturais que caçam outros seres sobrenaturais, em sua maioria vampiros problemáticos, digamos que papai recebe bem por isso.
Além de que, depois da caçada, ainda podemos trocar o que sobrar dos bichos ou dos pertences deles na feira mercantil dos Irmãos Sullivan por várias outras coisas. Você pode pensar que isso é errado ou cruel de alguma maneira, mas são apenas negócios, é a sobrevivência. Por causa desse trabalho, nunca faltou nada em casa e de brinde eu ainda aprendi defesa pessoal, a usar armas, como matar várias criaturas e a ganhei proteção de bruxas também, aliás, elas são as únicas coisas que não caçamos.
Bruxas são nossas amigas.
O que é um alívio, porque eu realmente gosto muito da Saga Harry Potter.
Assim que o pânico de eu não saber o que estava acontecendo comigo passou e consegui me acalmar, corri para achar o livro de lendas Quileutes que eu tinha ganhado de Natal no meu aniversário de 8 anos. Era enorme. Para ser mais rápido, pesquisei a história conforme as habilidades recém-descobertas, buscando nas minhas lembranças algum título de alguma lenda que meu pai me contara.
Quando me lembrei de algo.
A Lenda dos Espíritos Guerreiro
No início os Quileutes eram um povo pequeno e ainda somos um pequeno povo, mas nunca desaparecemos. Isso é porque sempre houve a mágica em nosso sangue. Não era a mágica de mudar de forma - isso veio depois.
Primeiro, nós éramos espíritos guerreiros.
A princípio, a tribo se fixou em um porto e nos transformamos em habilidosos construtores de barco e pescadores, mas a tribo era pequena e o porto era rico em peixes. Haviam outros que desejavam nossas terras, e nós éramos poucos pra enfrenta-los. Uma tribo maior se moveu contra nós e tivemos que pegar nossos barcos para escapar deles.
Kaheleha não foi o primeiro espírito guerreiro, mas nós não lembramos de outras histórias que venham antes dessa. Nós não lembramos quem foi o primeiro a descobrir esse poder ou como ele havia sido usado antes dessa crise. Kaheleha foi o primeiro Grande Espírito Chefe na nossa história. Nessa emergência, ele usou a sua magia pra defender as nossas terras. Ele e todos os seus guerreiros abandonaram os barcos - não seus corpos, mas seus espíritos.
Suas mulheres cuidaram de seus corpos e das ondas e os homens levaram seus espíritos de volta ao nosso porto. Eles não podiam tocar fisicamente a tribo inimiga, entretanto tinham outros meios. As histórias nos contam que eles podiam fazer um vento feroz soprar nos acampamentos inimigos, um vento que continha um enorme e aterrorizante grito que espantava a todos.
As histórias também nos contam que os animais podiam ver os espíritos guerreiros e compreende-los, os animais fariam sua vontade. Kaheleha levou o seu exército de espíritos e criou o caos entre os intrusos. Os invasores possuíam grandes bandos de cães grandes, furiosos que eles usavam pra puxar seus trenós no norte congelado. Os espíritos guerreiros fizeram com que os cães se virassem contra seus mestres e trouxeram uma poderosa infestação de morcegos das cavernas no penhascos.
Eles usaram o vento gritante pra ajudar os cães a confundir os homens. Os cães e os morcegos venceram. Os sobreviventes fugiram, dizendo que o porto era amaldiçoado. Os cachorros correram livres quando os espíritos guerreiros os libertaram. Os Quileute retornaram pra seus corpos e suas esposas, vitoriosos. As outras tribos vizinhas, os Hoh e os Makah, fizeram acordos com os Quileute. Eles não queriam nada com a nossa magia. Vivemos em paz com eles, e quando um inimigo vinha contra nós, os espíritos guerreiros os afastavam.
Gerações se passaram...
Então veio o primeiro Grande Espírito Chefe, Taha Aki. Ele era conhecido por sua sabedoria e por ser um homem de paz. As pessoas viviam bem e contentes sob seus cuidados. Porém, havia um homem, Utlapa, que não estava contente. Utlapa era um dos espíritos guerreiros mais fortes do Chefe Taha Aki - um homem poderoso, no entanto um homem ganancioso também. Ele achava que o povo devia usar sua magia pra expandir nossas terras, escravizar os Hoh e os Makah e construir um império.
Quando na forma de espíritos, os guerreiros podiam ouvir os pensamentos uns dos outros. Taha Aki viu com o que Utlapa sonhava e ficou muito bravo com ele, então ordenou que deixasse o povo e nunca mais voltasse a usar o seu espírito de novo. Apesar dele ser um homem forte e poderoso, os guerreiros do chefe estavam em maior número e ele não teve escolha a não ser ir embora.
O furioso e excluído se escondeu na floresta nas proximidades, esperando pela chance de se vingar de seu chefe. Mesmo em tempo de paz, o Chefe Espírito era vigilante na proteção ao seu povo. Costumava ir para um lugar secreto, sagrado, nas montanhas. Ele deixava o seu corpo para trás, escondido nesse local e andava pelas florestas e pela costa, para ter certeza de que nenhuma ameaça se aproximava.
Um dia, quando o Chefe Taha Aki saiu pra fazer o seu trabalho, Utlapa o seguiu. No início, apenas planejava matar o chefe, mas seu plano tinha suas desvantagens. Com certeza os espíritos guerreiros iriam procura-lo e destruí-lo, e eles podiam persegui-lo mais rápido do que ele podia fugir. Enquanto ele se escondia nas rochas o observava o chefe se seu povo. Então esperou até que tivesse certeza de que o chefe havia viajado certa distância com seu ser espírito.
Taha Aki soube o instante em que Utlapa se juntou a ele no mundo dos espíritos, e também soube do plano de assassinato do homem, ele correu de volta para o seu local secreto, mas mesmo os ventos não foram rápidos o suficiente pra salva-lo. Quando retornou, o seu corpo já tinha ido embora. O corpo de Utlapa estava abandonado, mas o ex-membro da tribo não o tinha deixado com uma escolha - ele havia cortado a garganta do seu próprio corpo com as mãos de Taha Aki.
Incapaz de fazer algo, o espírito seguiu o seu próprio corpo pela montanha, ele gritou, mas foi ignorado como se fosse apenas o vento, o líder observou com desespero, enquanto via seu lugar como chefe dos Quileute ser tomado. Por algumas semanas, Utlapa não fez nada além de se certificar de que todos acreditavam que ele era Taha Aki. Aí as mudanças começaram - a primeira ordem dele foi proibir que qualquer guerreiro entrasse no mundo dos espíritos.
Ele disse que tinha uma visão do perigo, quando na verdade só estava com medo, pois sabia que Taha Aki estaria esperando pela chance de contar a sua história. O próprio estava com muito medo de entrar no mundo dos espíritos, sabendo que o chefe rapidamente clamaria seu corpo. Percebendo que seus sonhos de conquista com um exército de espíritos guerreiros era impossível, ele teve que se contentar em reinar sobre a tribo.
Utlapa logo se tornou um fardo - procurando privilégios que Taha Aki nunca havia pedido, se recusando a trabalhar junto dos seus guerreiros, se casando com uma segunda jovem esposa, e depois uma terceira, apesar da primeira esposa ainda viver. Em algum lugar desconhecido da tribo, Taha Aki observou furiosamente sem poder fazer nada.
Eventualmente, Taha Aki tentou matar seu próprio corpo para salvar a tribo dos desmandos de Utlapa. Ele trouxe um lobo feroz das montanhas, mas o traidor se escondeu atrás de seus guerreiros. Quando o lobo matou um jovem que estava protegendo seu falso chefe, Taha Aki sentiu um terrível pesar. Ele ordenou que o lobo fosse embora.
Todas as histórias nos contam que não era fácil ser um espírito guerreiro. Era mais assustador do que excitante estar fora do seu próprio corpo. Por isso que eles só usavam sua magia em tempos de necessidade. As viagens solitárias do chefe pra manter guarda eram um fardo e um sacrifício. Ficar sem corpo era desorientador, desconfortável e aterrorizante. Taha Aki esteve longe de seu corpo por tanto tempo que chegou um ponto que ele sentiu agonia. Sentiu que estava sentenciado - a nunca cruzar a linha para a terra final onde todos os seus ancestrais esperavam, preso naquele nada torturante para sempre.
O grande lobo seguiu o espírito de Taha Aki que se contorcia e estorcia em agonia pela floresta. O lobo era muito grande para a sua espécie, e lindo também. Taha Aki de repente ficou com inveja do animal, pelo menos ele tinha um corpo, pelo menos ele tinha uma vida. Até a vida como um animal seria melhor do que aquela horrível consciência vazia. Foi quando Taha Aki teve a ideia que mudou todos nós.
Pediu ao lobo que dividisse o espaço com ele, para compartilharem e o lobo permitiu. Taha Aki entrou no corpo do animal com alívio e gratidão, não era o seu corpo humano, contudo era melhor do que o buraco negro do mundo dos espíritos. Para começar, o homem e o lobo voltaram à vila no porto, as pessoas correram com medo, gritando para que os guerreiros viessem. Os guerreiros correram para encontrar o lobo com suas lanças. Utlapa, é claro, ficou seguramente escondido.
Taha Aki não atacou seus guerreiros. Ele se afastou lentamente deles, falando com seus olhos e tentando uivar as canções do seu povo. Os guerreiros começaram a notar que o lobo não era um animal qualquer, que havia uma influência espiritual nele. Um guerreiro ancião, uma homem chamado Yut, decidiu desobedecer a ordem do falso chefe e tentar se comunicar com o lobo. Assim que Yut cruzou para o mundo espiritual, Taha Aki saiu do lobo - o animal esperou pacientemente pelo seu retorno - para falar com ele.
Yut compreendeu a verdade em um instante, e deu as boas vindas ao lar a seu chefe. A essa hora, Utlapa veio ver se o lobo havia sido derrotado. Quando ele viu Yut caído sem vida no chão, cercado por guerreiros protetores, ele se deu conta do que estava acontecendo, foi então que pegou sua faca e correu pra matar Yut antes que ele pudesse retornar ao seu corpo.
- Traidor! - gritou ele.
Os guerreiros não sabiam o que fazer. O Chefe havia proibido viagens espirituais, e era a decisão do chefe como punir aqueles que desobedecessem. Yut pulou de volta para o seu corpo, mas Utlapa estava com a faca em seu pescoço e com uma mão em sua boca. O corpo de Taha Aki era forte, e Yut era fraco com a idade, ele nem sequer pôde dizer uma palavra pra alertar os outros antes que Utlapa o silenciasse para sempre. Taha Aki observou enquanto o espírito de Yut ia embora para as terras finais das quais Taha Aki havia sido barrado para sempre.
Com isso, sentiu uma grande raiva nascer em si, mais poderosa do que qualquer coisa que ele já havia sentido. Entrou no lobo novamente, com a intenção de rasgar a garganta de Utlapa, mas enquanto ele se juntava ao lobo, uma grande mágica aconteceu. A raiva de Taha Aki era a raiva de um homem, o amor que ele tinha pelo seu povo e o ódio que ele sentia pelo seu opressor era vasto demais para o corpo do lobo, humano demais. O lobo estremeceu, e - diante dos olhos dos guerreiros chocados e de Utlapa - ele se transformou em homem.
O novo homem não se parecia com o corpo de Taha Aki. Ele era muito mais glorioso. Aquela era uma interpretação fresca do espírito de Taha Aki. Os guerreiros o reconheceram imediatamente, no entanto, pois eles conheciam o espírito de seu verdadeiro chefe. Utlapa tentou correr, mas Taha Aki tinha a força de um lobo em seu novo corpo, agarrou o ladrão e arrancou o espírito dele antes que ele pudesse pular do corpo roubado.
As pessoas ficaram muito felizes quando se deram conta do que estava acontecendo. Taha Aki rapidamente arrumou as coisas, trabalhando novamente com o seu povo e devolvendo as jovens esposas às suas famílias. A única mudança que ele não desfez foi a proibição das viagens espirituais. O líder sabia que isso era muito perigoso, agora que a ideia de roubar uma vida estava por ali. Os espíritos guerreiros já não existiam.
Desse ponto em diante, Taha Aki era muito mais do que apenas um lobo ou um homem. O chamavam de O Grande Lobo. Por muito e muitos anos, foi ele quem liderou a tribo, pois não envelhecia, quando o perigo ameaçava, ele reassumia seu eu lobo para lutar ou assustar o inimigo. As pessoas viviam em paz.
Taha Aki foi pai de muitos filhos, e alguns deles descobriram que, depois que eles atingiam a maturidade, também podiam se transformar em lobos. Cada lobo era diferente, pois eram espíritos lobos e refletiam o que o homem era por dentro. Alguns dos filhos se tornaram guerreiros com Taha Aki, e não envelheceram mais. Os outros, que não gostaram da transformação, se recusaram a se juntar ao bando de homens lobos. Esses começaram a envelhecer novamente, e a tribo descobriu que os homens lobo podiam envelhecer como qualquer outra pessoa, se desistissem de seus espíritos guerreiros.
Taha Aki viveu o tempo de vida de três homens. Ele havia se casado com uma terceira esposa depois da morte das duas primeiras, e encontrou nela a sua verdadeira esposa espiritual. Apesar dele ter amado as outras, essa era algo a mais. Ele decidiu desistir de seu espírito lobo para morrer quando ela morresse.
Fechei o livro com admiração assim que terminei de ler, agora tudo fazia sentido, eu sabia o que eu era e sabia que meu pai era como eu. Por alguns segundos, me lembrei de vezes em que vi meu pai fazer coisas incomuns, às vezes em que o vi usar seus poderes. Foram poucas, ele não gostava de usar os poderes, mas quando usava era simplesmente incrível e agora eu podia fazer essas coisas também, já que esse era um dom passado de geração em geração. Eu me perguntei se havia mais de nós.
Teria que perguntar a ele para saber.
Uma noite, eu parei e contei ao meu pai o que estava acontecendo, ele não ficou muito feliz, mas, ao mesmo tempo, parecia orgulhoso e surpresa. Só sei que deu dois dias e nós deixamos o Texas, indo direto para Nova Orleans, na Louisiana. O deslocamento não foi difícil, nós vivemos rodando a América do Norte, nosso velho trailer que ele apelidara de "Violet" no estilo motor home sabe? Vamos para onde tiver caça ou algum artefato mágico e antigo que possa render uma boa grana.
Só que dessa vez era diferente, nós não estávamos nos mudando por conta de alguma caçada ou algo do tipo, estávamos indo embora por minha causa.
Isso me deixava curioso.
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