O branco no chão era tão denso que as elevações do solo cobertas de neve, vistas de longe, pareciam dunas de areia marcadas por uma trilha de passos não humanos. O vento espalhava a neblina. O céu era feito de feltro branco, impenetrável para o calor. Até mesmo as árvores cinzentas dormiam durante o inveno; o imenso lago não passava agora de mais chão gelado e rígido.
Não havia única cor de tom vívido. Tudo resumia-se em azul, cinza e branco. O único tom escuro pertencia aos pelos marrons de um lobo andarilho.
Seus passos ficavam levemente registrados sobre a cobertura de neve. Ele, com sua cabeça na altura do corpo, não via nada além do gelo branco.
A seu lado um lobo cinza de passos vagarosos o seguia de perto, ambos procuravam a toca em meio a neve.
As árvores já não mais se entrelaçavam como um telhado de folhas, se olhassem para cima veriam que uma nevasca maior estava por chegar. Era mais um dia.
O alfa parou e olhou em volta, o lobo de pelo marrom o imitou. Eles se entreolharam e prosseguiram. Não era uma caçada.
Dez metros dali encontraram o que procuravam: uma toca como a de uma raposa cheia de filhotes peludos e barulhentos, pareciam uma bola atrapalhada tentando chegar ao encontro dos pais, tropeçando em seus próprios corpos.
Por conta do tamanho, a toca, aberta entre as raizes firmes de uma árvore, guardava bem o calor corporal dos filhotes e os mantinha aquecidos.
Para um casal solitário de alfa e ômega não era fácil ter que caçar e deixar os filhotes sem proteção.
Tudo podia acontecer naquele lugar, era perigoso para crias que mal podiam correr sem tropeçar e só se moviam a base de pinotes e saltinhos na neve; um tigre errante faminto, se os encontrasse, não se sacearia somente com um dos projetos de lobo feito sob medida para sua boca cheia de dentes; ou até mesmo um lobo solitário poderia devorar toda a prole. Tudo por conta da escassez de presas.
As miniaturas de lobos estavam em constante perigo. Nem seus pais poderiam garantir que todos, ou pelo menos uma parte, fosse sobreviver.
A primeira cabeça agitada saiu saltitante de dentro da toca, atrás de si os outros vinham ainda atrapalhados por andar na neve poucas vezes. Claramente felizes, quase podiam dizer com as palavras.
Eles latiam e grunhiam ao invés de falar. Outra demonstração de afeto era moder e passar suas cabeças nas pernas dos pais. Estes resolveram abaixar-se, permitindo aos filhotes pularem e brincarem livremente sobre seus corpos.
XiChen era o nome do lobo cinzento a observar o cenário palidamente mórbido a se estender até onde a névoa fria se desatava preguiçosamente pelas colinas de pontas brancas. Ao lado, seu companheiro afastava as corriqueiras preocupações enquanto lambia e dava atenção ao menores.
Em poucos minutos o ambiente alvo adquiriu sons alegres, latidos, chiados e rosnados agudos nada intimidantes comparado aos dos pais.
XiChen sabia que localizar presas no meio de um gelo anormal era o mesmo que procurar tigres em bandos. De certa forma, haviam crianças numa pequena vila ao norte, seriam possíveis presas localizadas, fáceis de capturar. Grandes filhotes indefesos.
Alguns dias atrás o casal esteve por lá.
Andaram longas distancias a procura de uma única presa.
Andavam um ao lado do outro. Primeiro o lobo marrom tentou aliviar a tensão passando carinhosamente sua cabeça na do outro no momento em que chegaram a um ponto no meio da floresta.
Eles se olharam, olhos nos olhos.
De repente ouviram, um tanto longe dali, algo como risos alegres, agudos e semelhantes ao trinar de inúmeros pássaros das áreas verdes. Seguiram o som.
Escondido, entre os troncos sem vida, estava um vilarejo. No céu se espalhava algo como uma nuvem densa que saía de dentro de alguns casebres.
O par de lobos espreitou.
Algumas mulheres carregavam troncos partidos para dentro dos casebres. Espalhadas, por todos os lados, estavam as crianças brincando com galhos, coisas feitas de pano e até mesmo os utensílios dos pais abandonados nos locais de trabalho.
Meng Yao, o lobo marrom, contraiu as palpebras e olhou de canto para XiChen. Naquele dia, estudaram como poderiam caçar aquelas presas inocentes e ingênuas.
XiChen percebeu que crianças um pouco maiores saíam em grupos para cortar alguns troncos mais baixos de árvore, ou então recolher aqueles que os adultos cortavam mais cedo.
Olhou para cima, não estava tão claro, nem escuro.
Os garotos brincavam e se empurravam despreocupados.
Meng Yao cautelosamente aproximou-se do bando de crianças. Os garotos não perceberam nada. Nenhum dos passos. Ou seja, não eram presas muito atentas.
Estudaram até altas horas.
Apenas com acenos de cabeça, rosnados baixos e linguagem corporal, Meng Yao e XiChen montaram uma estrategia para capturar uma das crianças no momento em que se afastasse dos pais.
Não ficaram por muito tempo para não informar a presa sobre sua presença no local.
E naquele momento, deitado na neve rodeado de pequenos lobos, XiChen percebeu a falta de escolhas.
Os pequenos habitantes do vilarejo eram presas indefesas e grandes o suficiente para sua família. Embora não costumassem se aventurar tanto, o que lhes restava era caçar os bípedes.
E esse fato em si só aumentava a vantagem sobre sua presa, pois nunca uma criança poderia correr mais que um casal de lobos famintos procurando alimentar seus filhos assim como a eles mesmos.
De todas as formas, pegariam a mais lenta.
Mas nada poderia garantir que tivessem sucesso com apenas alguns dias de analise, bom, mas eles não tinham tempo ou escolha.
O vilarejo acordava junto com o primeiro raio de sol.
Em vezes ouvia-se o uivar de lobos no fim do dia e todos dormiam com a sensação de terem a respiração do predador sobre seus cobertores poídos. Porém durante a manhã, quando todas as janelas de madeira eram abertas e portas escancaradas, nada parecia ser perigoso.
Era assim a chegada da manhã.
Nenhuma criança, homem ou mulher temia os lobos durante o dia, pois sentiam que poderiam vê-los e ouví-los quando se aproximassem do vilarejo.
Todas as velas eram acesas e o fogo era obrigado a queimar mais lenha no forno de barro do lado de fora da cabana.
Alguns cães latiam em direção da floresta.
Wen Qing puxou a corda do cão e o amarrou numa tora enfincada no chão ao lado da casa.
"Quieto", dizia enquanto pegava a vasilha metálica do canino e levava para dentro de casa.
O cão continuou latindo para as árvores.
Quem voltou para deixar os restos da refeição noturna do dia anterior, que agora jaziam dentro do recipiente, foi Wen Ning.
"Não faça barulho. Nossa mãe está trabalhando num novo conjunto de roupas para mim e não pode se distrair", o garoto não muito maior que a altura de um trinco na porta passou as mãos pequenas no pescoço do cão que chiou enquanto apontava os olhos para as árvores cinzas cobertas de neve. "São só árvores, não tenha medo de árvores"
O garoto coçou as orelhas peludas do cachorro e massageou os pêlos das costas.
Depois de um minuto sentado no degrau trocando idéias, somente lançando-as, com o cão, o garoto resolveu voltar para dentro após um chamado:
"Ning, entre logo, mamãe quer que você experimente a roupa!", Wen Qing abriu a porta apenas para falar e entrar outra vez.
Dentro, Wen Ning experimentou um casaco de couro marrom muito bonito.
Ele não sabia de qual animal era o pelo, mas era macio e quente.
A mãe ainda precisava acertar alguns pontos e terminar de alinhavar as botas, calças e chapéu.
"Ning", ela começou vendo a alegria do garoto em poder usar um casaco tão bonito e dedicadamente costurado.
Oh, como ele iria mostrar para todos os garotos do vilarejo sua roupa de caçador! Era o couro que seu pai caçou há alguns anos e todos podiam ver a qualidade, além do amor de sua mãe em cada ponto.
"Ning, quando você crescer, essa roupa vai caber em você melhor. Querido, achei que seria mais proveitoso se costurasse uma roupa maior para que ainda sirva quando você crescer...", sua voz era tão calma e doce como uma canção de ninar.
Era essa a voz que Wen Ning havia herdado.
"Tudo bem, mamãe!", alçou um sorriso, "vou crescer só para caber nessa roupa. Vou ficar bem... bem alto!" O garoto sorriu ainda mais, esticando a mão para mostrar como ficaria alto.
Sua mãe, sentada em uma cadeira na frente da janela, também sorriu. "Certo, certo", ela fez um gesto de afastamento com a mão, "me dê para que eu termine logo, tudo bem?"
"Hum!", confirmou com a cabeça tão animado que chegava a parecer um pica-pau em mais um dia de trabalho.
Retirou cuidadosamente o casaco com medo de rebentar uma linha que fosse e o entregou para sua mãe.
Ele não se afastou, continuou ali observando-a enfiar a grossa agulha no couro e voltar e enfiar e tirar... enfiar e tiar, puxar três vezes até a linha sair. Tudo de novo. Enfiar e tirar.
A sala estaria silenciosa se não fosse Wen Qing na cozinha batendo em algo duro sobre a mesa, o som da panela de ferro fundido também penetrava pelas paredes gastas do casébre.
De repente Wen Ning rompeu o silêncio harmonioso e fez sua mãe parar de enfiar e puxar a agulha, "Mãe! Como são os lobos que uivam na floresta?"
Ela ficou taciturna.
Suspirou e disse, "são como cachorros, maiores e mais bravos"
"Ah... — são bonitos?"
Mais uma vez ela hesitou, "são como cães, você acha cães bonitos?"
Wen Ning não precisou pensar muito, "são! São muito bonitos. Então lobos são bonitos!"
Sua mãe sorriu baixo.
Desde bebê, Wen Ning ouvia histórias de lobos, mas não lobos como cães e sim como pessoas que falavam e levavam crianças para o meio da floresta. Mas ainda assim não pareciam pessoas, somente falavam como uma, era o que seu pai fazia questão de contar.
Sua vó lhe contava o contrário.
Numa tarde cheia de trinados de pássaros e estalos nas árvores, o pequeno estava sentado na frente da lareira de pedra onde sua vó cozinhava algo.
A mulher magra de longos cabelos brancos, presos com um grampo de pau, mexia a colher dentro da panela. Ela girava a colher e resmungava uma canção calma.
Wen Ning estava sobre um tapete de pele de tigre, com as pernas cruzadas atento aos resmungos musicais de sua vó.
De repente ouviram um uivar distante, provavelmente vindo do topo de uma rocha entre os troncos das árvores que quase abafavam sua voz.
A mulher parou de se mover e suspirou.
"Ouviu, Ning?", ela perguntou.
"Um lobo?", o garoto acompanhou confuso.
"Sim, mas não um lobo comum. Ninguém respondeu, não é? Ele está uivando sozinho...", a velha pareceu lamentar. Sua voz já rouca e enferrujada.
"Como assim não é um lobo comum?", ele ficara curioso como um gato.
"Ah, Ning. Quando eu era jovem... há muito tempo, talvez, esta velha se encontrou com um desses. Não são como lobos comuns que caçam em bandos e uivam juntos. Esse lobo está chamando de volta seu companheiro", a mulher levemente curvada mexeu para o lado contrário.
Wen Ning se levantou e olhou sua avó. Ela sabia o que ele queria perguntar.
"Uma vez eu saí de casa para buscar pão na vila vizinha. Vizinha na época significava muito longe. Ia a cavalo com meus primos. O inverno era muito mais frio e cruel. Ouvíamos todas as noites de lua cheia o chamado dos lobos, mas nunca havíamos visto um. Eu era jovem e ingênua, fiquei para trás quando estava bem longe de casa. Durante a noite eu escutei um uivo solitário, era melancólico e insistente, como se estivesse preocupado. Ninguém havia respondido"
A mulher respirou profundamente e tossiu um pouco para continuar.
Ao seu lado Wen Ning prestava atenção de maneira devota, se tivesse orelhas de cachorro elas estariam de pé.
"Fiquei com muito medo. No meio de tantas árvores, galhos inteiros caídos e neve, eu o vi. No escuro da noite era apenas um vulto capaz de gemer, uma sombra encolhida embaixo de uma árvore, entre as raízes. Eu estava com medo, mas algo me fez aproximar, talvez os gemidos lamentáveis ou o chamado do lobo. Vi um lobo preto, que poderia dar pouco abaixo de meu peito, encolhido no chão. Fiquei com mais medo e quase fugi, mas logo vi o motivo de seus gemidos, ele estava machucado. Havia uma flecha atravessada em sua pata da frente e vários cortes pelo corpo. Me sentei ao seu lado, bom ele era um lobo e eu uma garota. Ele rosnou para mim, porém gemeu logo em seguida."
"Mesmo contra sua vontade, o ajudei a se livrar da flecha. Em poucos minutos ele entedeu que eu só queria ajudar. Rasgei até um pedaço do meu vestido para cobrir seu pior ferimento. Talvez ele desse de cara com um caçador, era bem provável; seu pelo preto era bem bonito e macio. Fiquei com ele a noite toda. Até lhe dei a comida que havia levado para a viagem. Ele se recuperou bem rápido, mas ainda andava com dificuldade. À tarde, um lobo branco nos encontrou. Ele era forte, grande e tinha olhos dourados tão gelados quanto o chão abaixo dos meus pés. Jurava que ele iria me matar e machucar o outro lobo. Mas ele não fez isso. Ning, ele apenas se aproximou do outro e eles se cumprimentaram carinhosamente. Nunca esqueci como eles pareciam tão humanos ao se reencontrarem."
"Quanto a mim, senti que não fazia mais sentido ficar ali, o lobo branco cuidaria do outro. Eu senti isso. Subi em meu cavalo e parti para tentar encontrar o caminho de volta. Voltei para casa. Eles eram como espíritos da floresta. Se você cuida da floresta, a floresta cuidará de você. Nos encontramos muitas vezes durante minha vida, e parece que ele nunca esqueceu quem eu era. Sentia isso nos seus olhos, eram tão humanos e cheios de sentimentos que... - Você está ouvindo isso, Ning?", outro uivo se propagava no ar em resposta ao anterior, "ele respondeu."
Wen Ning havia ouvido de sua vó histórias fantásticas desses lobos.
Os contos sobre como lobos matavam crianças se tornou uma projeção do temer de seu pai em sua cabeça. Sua avó o fez querer ver um desses em sua vida. Ele sentia que não podia odiá-los.
Saindo de suas memórias, Wen Ning estava cutucando um buraco na madeira do piso com um graveto fino enquanto sua mãe voltava a enfiar e tirar a agulha.
A porta da frente abriu-se e, após ouvir alguns passos pesados, a criança elevou o olhar e encontrou seu pai a abandonar as ferramentas de caça numa mesinha de madeira parcialmente deteriorada.
"Ning, meu filho, seus primos vão sair para buscar a lenha que cortamos, vá com eles, você e sua irmã, para ajudar seu tio"
Wen Ning concordou alegre.
Do meio da floresta congelada, fria demais até para as árvores, saiu um uivo distante, prolongado e insistente.
O garoto olhou para a imensidão de troncos adormecidos, um sorriso se formou em seus lábios e ele não conseguiu evitar pensar: encontre seu companheiro logo, tá bom? Hoje, mamãe disse que vai ter uma nevasca forte e muito, muito fria.
Muitos usuários deixam de postar por falta de comentários, estimule o trabalho deles, deixando um comentário.
Para comentar e incentivar o autor, Cadastre-se ou Acesse sua Conta.