Pra não perder o costume, eu surtei.
Surtei um surto bem surtado, sabe? Desses que não deixa você dormir, revira teus estômagos, entope teus intestinos, desregula tuas ideias… Quando chega aquele ponto em que tudo é tanto de uma forma tão gigante e tão gritante que, no fim das contas, tudo parece nada, e nada parece bom. As coisas perdem as suas categorias: viram tudo uma coisa só. Desespero.
No buraco da minha irrealidade, já não tinha mais nada que eu pudesse fazer por conta própria; tinha esgotado todas as minhas alternativas. Precisava de um conselho de amigo.
Sendo assim, me sentei na mesa da cozinha, como sempre faço nas quintas-feiras mais pavorosas… como essa. Me servi uma xícara enorme e entupi a cara de café.
Freud, meu amigo de anos, sentado bem ao meu lado, virou-se para mim e disse:
— Você está neurótica, Irene. Histérica, até. Deve ser porque é mulher. Eu te receitaria uma dose de benzoilmetilecgonina.
— Eu não uso cocaína, Sigmund — respondi, paciente, porque ele precisava de um refresco na memória de vez em quando.
— Mas devia.
— Ou talvez você precise rezar mais — Durkeim, sentado do meu outro lado, opinou enquanto bebericava um pouco do seu chá.
— Achei que você fosse ateu, Emílio.
— E eu sou, mas é que você parece meio abatida… se a sua coesão social baixar demais, Ireninha, eu não sei… Na verdade, eu sei sim. Escrevi um livro sobre isso.
— E por que rezar me ajudaria? — Suspirei.
Durkheim ficou em silêncio por um tempo, refletindo.
— Ah, você sabe. — Deu de ombros o pai da sociologia. — Todo mundo que é religioso ama muito alguém, e amam muito mais quem compartilha da mesma paixão. Ou do mesmo ódio. Talvez você faça amigos lá, é o que eu queria dizer.
— Não faça sexo. — Foi o que Schopenhauer escolheu transmitir. Sentado ao lado de Durkheim, ele não parecia grande coisa, sendo bem sincera.
— Eu já não faço, Schope — respondi.
— Continue assim.
— Concordo com o colega Schopenhauer — comentou Freud, levantando sua xícara de chá para os lados do pessimista e dando uma piscadela. Schopenhauer olhou Freud de cima a baixo, meio enojado. A relação ali era um pouquinho unilateral. — Na verdade, não muito. Mas a vibe é parecida.
— Eu não preciso de drogas, nem de rezar, nem de sexo… ou de não fazer sexo — expliquei. — Eu preciso de ajuda!
Schopenhauer não olhou pra mim, porque estava muito ocupado contando as bolinhas na estampa da toalha de mesa com uma cara emburrada. Freud acariciava a barba sebosa e me olhava de soslaio, contabilizando todos os meus problemas de inconsciente mesmo sem ter uma forma de acessar o meu inconsciente. Durkheim, de repente, tirou do bolso um caderninho e ficou escrevendo sabe-se Deus o quê.
Fez-se silêncio. Ninguém dizia nada.
— O que foi, Erving? Por que você tá dando de ombros?
Goffman ergueu os olhos arregalados para mim, pego de surpresa. Ele estava depois de Freud, na outra ponta da mesa, longe da minha cadeira. Sua expressão era curiosa. Parecia estar entretido, assistindo uma peça de teatro ou algo do gênero. Típico.
— É que eu não sei se tem alguma coisa que a gente possa fazer — ele me falou, de um jeito meio despojado, mas com palavras calculadas. O que eu sei que ele queria dizer era: isso é problema seu. Mas também sei que Goffman não gostava de perturbar as conversas que tínhamos no Clube da Mesa Redonda com desavenças.
— Se me perdoa a interrupção… — Zenão, que estava entre Freud e Goffman, ergueu uma mãozinha no ar e foi logo se levantando. As pessoas bufaram, alguns encararam o teto, outros puseram a cara na mesa, mas todos compreenderam que os próximos minutos seriam excruciantes. E todos odiaram. — …mas as dificuldades são parte da vida, Irene. Estamos todos aqui pela vontade divina…
E depois de uns dez ou quinze minutos, Zenão finalmente concluiu:
— E é por isso que não devemos questionar o que nos acontece. Deus é perfeito, e ele fez o mundo perfeito. Tudo o que acontece é aquilo que tinha que acontecer desde o início.
— Sim, e como é que isso aí faz sentido com aquele seu papo de ter pensamento crítico? — interpelou George Herbert Mead, que tomava conhaque às nove da manhã.
— Pensamento crítico? — Zenão coçou a cabeça. — Eu nunca disse isso!
— Acredito que ele se refere àquela coisa com o hegemonikon — Freud elucidou, baforando um cachimbo que tinha surgido do nada. Assustada e tossindo, mandei o velho ir apagar o cachimbo no lugar que ele mais adora; aquele em que o sol não brilha.
— O hegemonikon é o que devemos usar para tomar boas decisões — Zenão retomou.
— Mas se as minhas decisões não importam porque Deus planejou tudinho… — começou Durkheim, mas Zenão o cortou antes que ele terminasse:
— Não é bem assim!
— É bem assim sim, foi o que você disse!
— Silêncio! — gritei. Todos ficaram, de fato, em silêncio. Zenão, lentamente, sentou-se na cadeira outra vez. — Eu tô vendo que eu vou morrer sem conseguir fazer alguma coisa. Vocês não ajudam!
— Você quer fazer o quê? — perguntou aquele ao qual eu não consigo me referir sem escrever o nome completo, George Herbert Mead.
— Eu não sei… — confessei.
— Então como é que nós vamos saber? — Schopenhauer resmungou. — Garota chata.
— Olhe, Irene, eu já disse que não me importo de ter essas conversas com você — Freud relatou. — Me fascina, a sua presença…
— …tenho até medo do que isso quer dizer…
— …mas por que nos requisitar tanto se você nunca ouve nossos conselhos?
— É, por que você não escuta o pervertido aí e vai dar uma cheirada? — Goffman alfinetou. Todos riram, menos Freud, que era o alvo da zombaria, e Schopenhauer, que não ria de nada. — Desculpa, desculpa — o antropólogo pediu, segurando a risada com as mãos. — Deixei a máscara cair por um segundo. Não quis te ofender, Sigmund.
— Não é como se você tivesse mentido, Erving — George Herbert Mead, que sentava ao lado de Goffman, respondeu. Os dois deram risadinhas juntos como duas amiguinhas na hora do recreio.
O primeiro psicanalista, então, se enfureceu com as piadinhas dos dois, dando início a uma discussão generalizada. Eu, que mal pude explicar minha situação, quem dirá conseguir algum conselho útil, só pude abaixar a cabeça e chorar. Não tinha nada ali pra mim!
O barulho das vozes diminuiu devagarzinho, como gelo derretendo, enquanto eu chorava. Uma mão tocou o meu ombro com alguma delicadeza: era Erikson. Ao seu lado, estava Piaget.
Quando me virei para eles, os dois psicólogos se entreolharam, mas não me dirigiram a palavra.
— É alguma crise psicossocial mal resolvida — opinou Erikson.
— Eu não saberia dizer. — Piaget deu de ombros.
— É, é sim. — E Erikson virou-se para mim. — Me diga, querida, você tem quantos anos?
— Vinte.
— Já casou?
— …não.
— Mas vai casar?
— Por que isso importa?
Erikson fez uma cara. Olhou para Piaget, que me encarava, meio perdido.
— O quê? — perguntou Piaget, ao reparar que o psicanalista o fitava. — Eu não sou muito de estudar adultos. Quer que eu faça o quê? Descubra se ela já tem pensamento formal?
Erikson estalou a língua e meneou a cabeça. Voltou a olhar pra mim, com alguma pena, dessa vez. Não disse mais nada, mas eu acho que consegui compreender o que ele quis me dizer. Isso era problema meu.
Os cientistas tinham se levantado da mesa do Clube da Mesa Redonda que, ironicamente, era retangular. Estavam beliscando a comida que eu tinha arrumado pra eles, num papo tão tranquilo que não dava pra adivinhar que, há alguns minutos, estavam se descabelando por aí, quase saindo no tapa.
Eu solucei, limpando as lágrimas. Não tentei parecer forte, porque eu sabia que eles não se importavam com a minha situação. Apesar de ser a presidente do clube, organizar todas as reuniões e limpar a bagunça deles depois de cada evento, eu não era tão relevante assim.
Não era gente, nem objeto de estudo. Eu não sabia o que eu era. Talvez me vissem como uma secretária, ou um apêndice, um extra, uma ferramenta. Um robô. Uma paciente? Pode até ser.
Mas está tudo bem, porque eu não preciso ser vista para ser amada. É o que minha mãe costumava me dizer. Às vezes, minha filha, a gente precisa fazer vista grossa pralgumas coisas… senão a gente enlouquece. Sempre fiquei me perguntando quem teria sido o homem que lhe tinha ensinado isso.
No fim das contas, a minha vida andava aos frangalhos, e eu provavelmente não deveria me importar com o que os mortos dizem, pensam, estudam — ou estudavam — em primeiro lugar. Me convenci de que eu só precisava pôr as ideias em ordem por um segundo, controlar a respiração... Não precisava de ajuda. Só precisava me concentrar.
— Ei. — Alguém pigarreou ao meu lado. Era Kohlberg. — Você sabe onde fica o banheiro?
Kohlberg me encarou, paciente, enquanto eu tentava raciocinar. Eu, com os olhos vermelhos e a cara molhada, suspirei antes de levantar e apontar na direção do banheiro. O desgraçado nem me agradeceu.
Me sentei na cadeira outra vez.
— Irene, Irene… ouvi que está tendo problemas. Já pensou numa lobotomia?
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