Alexandre dirigia lentamente, mais por querer atrasar a chegada até a fazenda de Dora do que por precaução. Ali estava outro reencontro difícil. Não seria recepcionado com festa e afeto, nem com uma comida caseira de altíssima qualidade; para ser sincero era bem mais provável que a veterinária o atacasse. Estava certo que seu ego sairia ferido, Dora nunca se importou em disfarçar que não aprovava aquele relacionamento. Esperava que a magia com a qual a tarde foi vivida, fosse o suficiente para sustentar sua moral. Magia era a palavra certa. Não tinha vergonha em admitir que chorou de emoção na missa, que empurrou a cadeira de rodas da tia com medo - de tão embaçada que sua vista estava. A música cantada pelo coro ainda era entoada em seus ouvidos: “o mundo pode até fazer você chorar, mas Deus te quer sorrindo”. O ateísmo dele teve dia para nascer e dia para morrer, a causa e a cura foram a mesma pessoa. Helena estava roncando junto com Foca, absolutamente displicente, com o estômago cheio do café que as sogras prepararam antes de saírem. Aquela mulher tinha feito ele de otário. Usado, descartado, humilhado. Se matado e reaparecido, conforme quis. Estava com raiva, mas a gratidão era maior. Avistou o portão da fazenda e parou o carro, sem coragem de seguir adiante.
Passou muito tempo de sua vida com raiva dos pais de Helena, sem conseguir entender porque tinham lhe virado as costas. Depois Vera chegou e foi tapando os buracos de sua existência, depois Lúcia surgiu e ressignificou tudo. Pouco do que tinha entendido das últimas horas envolvia mentiras; o que alcançou os ouvidos de Helena era muito diferente do que havia ocorrido, nem mesmo as janelas de tempo eram compatíveis. Seus sogros nunca tinham sido pessoas particularmente afetuosas, o pai de da mulher não era muito presente. Porém, lembrava-se das boas trocas que tivera com a sogra - apesar de tudo. Apesar de não saber falar muitos idiomas, apesar de ser cinco anos mais velho que a filha dela, apesar de tê-la levado para outro estado e, aparentemente, apesar de ter se divorciado da mulher do dia para a noite e largado sem maiores explicações. Abaixou a cabeça no volante e suspirou fundo, mesmo tendo sua consciência limpa, sabia que o olhar de Dora o atravessaria, quase pinçando sua alma.
- Está com medo? - deu um pulo ao escutar a voz de Helena surgindo do nada - Que bom. É o mínimo que merece.
Foca começou a latir agitado, se movimentando de um lado para o outro, dando sinal da presença da veterinária. O cachorro não escondia seu êxtase em rever tantas pessoas queridas. Helena desceu do veículo depressa, indiferente se estava sendo seguida por Dias ou não. Após aquela tarde cheia de zelo, via-se ansiosa para chamar menos atenção, para estar perto da companhia materna, alguém tenro, mas contido. Uma pessoa que de longe expressava suas dúvidas. Caminhou lentamente, acompanhando o ritmo do cachorro, sendo observada por Alexandre que tentava criar coragem para acompanhá-los. Apesar da distância, viu Dora instruindo Foca, fazendo-o sentar com calma e lhe dar a pata. Era óbvio que estava feliz. Sentiu a forma como a policial o julgava, mas não era capaz de discernir a conversa com que as mulheres tinham. Repetiu para si mesmo “a vida é uma performance” e foi até elas com a mesma postura que brindava cônjuges violentos ou pais que queriam emancipar filhos menores de idade - por motivações questionáveis.
- Olá, Dora. Como vai?
- Agora é doutora Salles para você. - Helena corrigiu-o imediatamente.
O homem ergueu as mãos, como se quisesse demonstrar que vinha em paz. Dora mostrou-se absolutamente desinteressada naquela troca. O cumprimentou sem sorrir, sem criticar, sem demonstrar nada além de apatia. A mulher não lhe oferecia choque ou afeto, só enxergava através dele como sabia que faria. Sua análise estava toda em Foucault. Um filme passou na mente de Dias; era como se fosse capaz de reviver o dia de seu casamento naquele mesmo local. Assim como a confusão que sentiu quando tentou contatar a sogra - buscando avisa-la da tragédia - e soube que a mulher estava isolada em um navio. Nunca mais falou com ele. Como isso era possível? Depois da imensa tristeza, tinha se entregado ao ódio, às cobranças. Por que as coisas não podiam dar certo? Por que ele precisava sempre sacrificar algo, enquanto para os outros tudo transcorria tão facilmente? Foi trazido de volta no momento em que Dora despachou Helena para dentro da casa principal e o convidou para o prédio anexo, local que usava para trabalhar.
- Dias, pode erguer o cachorro, por favor? - perguntou direta e polida - Não quero que ele faça movimentos bruscos.
Com Foca no colo, o juiz entendeu todas as críticas que Helena tinha feito ao peso dele. Ficou feliz em chegar até o consultório e deitá-lo na imensa mesa metálica na qual foi analisado. A veterinária fez uma ressonância, tirou o sangue e conversou o tempo todo com o cachorro - sempre falando em alemão. Aquela era uma família esquisita, excessivamente intelectualizada, discreta. Entretanto, nada o incomodava, nem no passado e nem agora. Dora cuidava de ninhadas de rottweilers há anos, além de toda sorte de animais de médio e grande porte, sua experiência era vasta, sempre buscava aprender mais. Tal lembrança fez Alexandre franzir o cenho, mergulhando em novos questionamentos: como nunca tinha ligado a atuação dela no tratamento de equinos, cães e outros animais terrestres à estranha desculpa de que estava trabalhando embarcada, na ocasião da “morte” de Helena? Encontrar Hélio Salles - o ex(?)-sogro - sempre foi muito difícil, dele não havia como nutrir desconfianças. Lembrava-se de que ele estava trabalhando em diferentes países da África Ocidental, indo e voltando de aeroportos, sendo o mecânico de aeronaves circunspecto de sempre.
Se Dias fechasse os olhos conseguiria lembrar da tarde em que deixou seu Tio Ricardo e Hélio no gramado daquele local, quando estava desesperado inspecionando se todas as cadeiras e mesas tinham chegado para cerimônia de casamento. Os dois, sem trocar uma palavra sequer, montaram o altar do zero, ajeitaram as flores, os tapetes, quase tudo que os olhos poderiam tocar. Hélio não falava quase nada, não era tão diferente de Dora. O juiz sempre se perguntou o modo que aquele relacionamento foi iniciado. A existência de Helena, assim como sua loquacidade, parecia um milagre. Será que Hélio ainda estava vivo? Será que lembrava dos passeios em Palmas? De passar horas seguidas montando todos os móveis daquela pequena casa com Helena? De ensiná-los a assar banana da terra e peixe na churrasqueira improvisada? Enquanto o homem estava entregue àquelas elucubrações, o tempo passou em um piscar de olhos. Horas de fato. A veterinária lhe trouxe de volta para o mundo real, fazendo algumas perguntas.
- Posso te oferecer algo, Dias? Água, chá, diazepam?
- O que? - o homem perguntou confuso.
- Há quanto tempo vem aplicando diazepam no Foucault? - ela perguntou muito séria, o repreendendo discretamente.
- Não faço isso.
- Quem recomendou o uso do remédio como tratamento? Foi por causa da fratura na perna traseira?
- Que fratura?
Naquele mesmo instante, Helena se juntava e eles. A mulher pôde ver a ressonância onde a mãe mostrava a fratura severa na pata traseira do animal, muito mal cuidada. O resultado preliminar dos exames de sangue também não era dos melhores. Para concluir seu pensamento, Dora abriu uma gaveta e sacudiu uma lata de presunto na frente do bicho, que a seguiu com se estivesse hipnotizado. A explicação foi longa, detalhada e dolorosa. Alexandre as observava em total horror, descobrindo que não havia nada de natural naquela fratura, que tinha sido feita por um objeto pesado e - provavelmente - enquanto o cachorro estava dopado. Ficava claro que o jeito arrastado vinha dali, mas o peso extra - visto que tinha mais de 60 kg - vinha do que era usado para que ele ingerisse o remédio.
- Eu não tinha ideia… Isso é impossível.
- Você é o tutor do animal? - Dora questionou calmamente. - É quem o leva para as visitas veterinárias?
- Não. O pet shop o busca semanalmente para os cuidados e uma vez por mês para as consultas.
- E você não vai?! - Helena reagiu como se ele admitisse que tinha abandonado uma criança. - A sua mulher vai?!
- Não, ela estava morta até dois dias atrás.
Dora e a filha reviraram os olhos com aquela resposta, era como se tivessem sincronizado a reação. Nem a tentativa de piada, nem o comportamento delas melhorou o clima nefasto da sala. Alexandre ficou perturbado com aquela revelação, mesmo que Vera fosse às consultas, isso ainda a faria responsável pelo estado de Foca - fosse por concordar com absurdos ou por se abster de lidar com eles. Explicou às mulheres que tinha visitado a filha durante todo o mês anterior. Tudo que aconteceu naquelas semanas era um mistério para ele, sua volta para casa coincidiu com a viagem de sua esposa, havia uma chance de que ela explicasse tudo quando se vissem novamente.
- A internet já foi inventada. - Helena disse em tom de crítica.
- Fora outros meios de comunicação mais rudimentares.- Dora complementou a filha - O cão não é tratado como um ente querido da família?
- Sim, mas… - ele tentou.
- Se a sua filha quebrasse a perna na escola… - Helena achou graça na forma como ele sussurrou “Deus a livre e guarde”, mas continuou seu raciocínio - Eles não te informariam?
- Com certeza.
- Vera é aquela do passado? - Dora questionou e viu o ex-casal concordando, anuindo em conjunto - Filha do antigo chefe da Helena?
- Chefe do Dias também, por algum tempo. Enfim, quando estava vivo foi chefe da PF inteira.
- Talvez ela tenha herdado as tendências paternas e uma profunda indiferença à vida.
Mesmo que tal crítica não fosse endereçada a nenhum deles, Helena ficou envergonhada, achando que um soco no estômago teria doído menos. Sua mãe não gostava que fosse policial, mas tinha aprendido a aceitar seu tempo de serviço na Interpol, apesar daqueles dois anos iniciais que foram puxados; somente porque boa parte dele consistia em análises jurídicas. Dora sempre a questionou por qual razão não deveria contatar Alexandre, perturbada pela indiferença com a qual precisou se afastar do homem, de quem gostava muito, e de Foucault - lembrava-se bem daquela ninhada de tantos anos atrás. Contudo, quando Helena lhe mostrou a ordem restritiva que Dias (supostamente) tinha emitido contra ela, Dora não demorou para fingir que aquele ser nunca havia pisado na face da terra. O mal estar foi evitado, as existências seguidas. Quando puderam, foram visitar a filha nos múltiplos postos nos quais ela serviu no exterior. A única farpa era o secretário Otto Muller. Não o conhecia intimamente, mas o que ele lhe inspirava era o máximo horror.
Hélio, seu marido, visitava a filha no estrangeiro com maior frequência e sempre discutiam juntos os pormenores da carreira dela. Todas as informações que juntava, dividia com Dora. Ao saberem do falecimento do homem sentiram como se um livramento tivesse ocorrido. A veterinária ainda refletia sobre uma coincidência: bastou que Muller deixasse a terra dos viventes, para que Helena fosse autorizada a retornar ao solo nacional. Adeus Interpol, adeus MI6, adeus observação naval sino-russa no mar do sul da China. A carreira errática de Helena ganharia novos contornos, sua vida pessoal já parecia transformada. Hélio riria quando ela contasse quem veio visitá-los, mas também ficaria contrafeito quando visse os exames do cachorro. A veterinária imaginava o tato com o qual daria as noticias quando seu marido voltasse para casa. No presente momento, acalmou o ex-genro e explicou que Foucault ficaria melhor ali. Ela trataria da ferida da perna, depois de mais exames veria se uma cirurgia seria necessária, também resolveria a questão do sobrepeso.
- Obrigado, doutora Salles.
- De nada, ligo quando você puder buscá-lo. Boa noite.
- Está me expulsando? - perguntou irritado.
- Deveria. - Helena respondeu imediatamente.
- Não posso mentir e dizer que é bem-vindo, mas minha filha é adulta. - falando em um tom de voz inalterado - Ela que decide.
Enigmática, Dora pediu que Foucault fosse colocado no chão, deu um comando frio e saiu junto do cachorro, deixando os outros dois a sós. Helena não perdeu tempo, mostrando para Alexandre os documentos do divórcio que lhes foram entregues - dez anos atrás. Primeiro, começou mostrando a ordem restritiva, teceu alguns comentários tendenciosos, de como aquilo era mal redigido e fazia pouco sentido. Contudo, a policial fez questão de enfatizar que quando lhe entregam uma documentação importante em um hangar de trabalho no meio da noite, sua aceitação tende a ser mais imediata.
- 2014?- foi tudo que Alexandre conseguiu dizer. - Nesse ano eu já tinha encomendado uma placa com seu nome no Jardim da Saudade. Se quiser te levo lá agora e te mostro toda a documentação, todo cuidado que tenho anualmente para cuidar de uma placa pregada no chão, sem mais nada embaixo.
- Dias, mentir é muito fácil, tanto quanto armar um circo todos. O que me diz das cartas que me mandava?
- Cartas?!
- Eu tenho algumas. São poucas, mas chegavam pelo meu supervisor.
- Você morreu em 2012.
- Eu não morri!
A conversa deles beirava a insanidade, de tão óbvia. Uma informação veio, outra foi. Com algum atraso, as cartas chegavam perto de datas especiais. Helena não recebia autorização para visitar sua família, nem mesmo o pai que tantas vezes pagou do próprio bolso passagens que faziam conexão pela Europa, na esperança de vê-la. Porém, a policial não estranhava porque todas as pessoas de seu ajuntamento estavam ali, ninguém podia visitar seus familiares, nem ligar, o uso de internet obviamente era controlado. As cartas eram o único meio de comunicação. Era ultrapassado?Sim.Mas para cada incoerência havia uma justificativa. Não passavam muito tempo ao ar livre para não corromper o sigilo da operações conjuntas, desempenhadas pela mesma equipe. A falta de conexão com o mundo exterior se dava pelo mesmo motivo. Faziam testes psicológicos frequentes, tinham sessões de terapia, eram estimulados a manterem registros: diários, vídeos, áudios; a mídia que preferissem. Em suas rotinas, trabalhavam guiando drones, rastreando submarinos, estudando sonares. Foram dois anos disso.
- Achei que soubesse de tudo. - a mulher comentou - Pelas suas cartas parecia saber. Eu não recebia as originais, eram cópias escaneadas. Mas a letra era parecida como a sua.
- Tanto quanto a assinatura desse documento obviamente falso? - perguntou deixando-se controlar pelo ódio.
Pegou um papel da escrivaninha da veterinária e assinou seu nome completo. Imediatamente depois, colocou a assinatura do lado dos papéis de divórcio. A fraude era tão evidente que chegava a ser ridícula. A máscara de polidez foi violada e Alexandre disse, entre berros, que Helena só acreditou naquilo porque quis, mas nem toda força de vontade do mundo o convenceria de que ela não passava de uma doente, que gostava de manipulá-lo.
- Duvidava da qualidade da água de Palmas, mas aceitou essa merda aqui?!
- Quebrou a pata do meu cachorro! - ela o acusou.
- Você destruiu a nossa vida!
Alexandre queria ser capaz de voltar no tempo. Não para abaixar o tom de voz ou o dedo que colocou em riste, nem para conter o tapa forte que a mulher desferiu no rosto dele. Queria voltar para 2014, viajar dez anos no tempo e encontrar com a versão de si mesmo que havia acabado de voltar para o Rio de Janeiro. Queria observar seu eu anterior, deprimido e sem vida, vê-lo arrastar os pés para o fórum, tentando se reconectar com o que tinha-o atraído para uma carreira de juiz. Queria acalmar sua mãe e dizer para seu Tio Ricardo que não precisava levar a pistola para longe, porque havia muitas formas de morrer.
Você podia morrer jogando o carro serra abaixo, quando fosse encarar a fazenda onde tinha casado.
Podia-se morrer bebendo uma garrafa de vinho e entrando no mar de madrugada.
Podia-se arranjar uma briga com pessoas mal intencionadas, atraindo atenção ruim para si.
Podia-se até ligar para sua ex-noiva e chamá-la para jantar, com o único intuito de pedir uma receita para antidepressivos. Fingindo que desejava dormir melhor e não que tinha chegado à conclusão que precisaria de mais do que álcool para derrubar a si mesmo.
Ao voltar no tempo, Alexandre teria dito: essa mulher que está sorrindo agora, que vai negar educadamente as menções que fizer a receitas de remédio antidepressivo vai te ajudar, ela te mostrará que ainda existe vida. Dentro de algum tempo, uma outra mulher, com quem você nem lembra de ter transado, dirá - sem respirar - que está grávida de cinco meses e levou um bom período para te achar. A vida sempre vence, Alexandre.
- Trabalhei incansavelmente para sustentar nós dois, para dar tempo o suficiente para que estudasse e passasse naquele concurso! Eu mudei pro Tocantins porque foi aprovado lá! Foi um plano que fizemos juntos e do qual cumpri todas as etapas que me cabiam! - Helena se movimentava como fogo, se mexia tão rapidamente que era difícil de observá-la - Quem mudou de ideia e se divorciou de mim para casar com a ex-noiva foi você! - ela gritava. - Até os dois anos que passei fora estavam no nosso acordo! Mas a culpa é minha mesmo!
É isso que ele diria a si mesmo no passado. Isso e : Otto Muller é um filho da puta. Porque entre gritos e andando de um lado para o outro, Helena ia elencando as cópias que tinha dos cartões recebidos, da caligrafia fingida, do texto jurídico sofrível daqueles documentos e das sessões mensais que dividia com seu supervisor da polícia federal - a pessoa que jantava na casa de Dias todos os domingos.
- A culpa foi minha de acreditar nos seus sentimentos, na sua manipulação! Por sucumbir aos seus desejos! Por achar que naqueles primeiros meses quando você me ligava estava falando sério! O caralho que estava! Deu o nome da minha avó pra sua filha! Uma menina que larga sabe-se lá onde, mesmo a sua família querendo pertinho! Você me usou para casar com a Vera?!
- Não! - devolveu na mesma altura.
- Fui inocente! Mas isso era seu plano, só podia ser! Me atraiu naquele bar, me escondeu de quem pôde, depois me ridicularizou porque eu não tinha conseguido o visto de trabalho! Contou a história bonitinha, do rompimento triste com a sua noiva, me seduziu com falsas verdades! Me manipulou até que nosso casamento fosse uma escolha óbvia pra mim! Eu já vi o que você faz com as palavras, já senti o impacto delas! Por que fez isso?! Foi por dinheiro?
- Está maluca?! Se fingiu de morta por doze anos e me vem com essa conversa agora?! Agindo feito uma vítima depois de quase acabar comigo?!
- Quem acha que morri?! Quem além de você e as pessoas que consegue manipular?
O juiz respirou fundo. Manuela não estava no Brasil em 2012. Nem Dora. Nem Hélio. Três pessoas que tiveram contato direto com ele e a mulher, sumiram. Apesar de ter visto o nome da amiga psiquiatra em notícias e publicações científicas, não a encontrava presencialmente há anos. Arranjou muitas desculpas para justificar seu afastamento dela, ergueu estratégias internas para embasar aquele faz de conta e em outros momentos estava tão perdido, tão pronto para a morte que não tinha mais pressa em compreender nada.
Seu tio havia insistido que deveriam procurar a família de Helena; que mesmo sendo pessoas discretas experimentavam a mesma perda inimaginavelmente dolorosa que Dias atravessava. Eram as três pessoas que o compreenderiam melhor. Outra vez Otto Muller surgiu na história. Disse que a veterinária estava embarcada, o mecânico escondido atrás do trabalho, a médica terminando seu phd no exterior. Espalhados pelo mundo. Muller esticava qualquer curva, desatava qualquer nó. Agora o juiz compreendia que o sogro ia mais longe do que todos porque era quem controlava os cordões daquelas marionetes.
- Quando estava no hospital dos bombeiros, depois de uma lavagem estomacal em 2013, porque tentei me matar, me jogando bêbado das pedras da praia de Itaipu, foi Otto Muller quem vi primeiro. - o tom plácido dele apavorava a mulher, mas o tapa dado por ela ainda fazia o rosto de Alexandre arder, o que lhe dava coragem - Ele ainda era o segundo contato de emergência no meu celular. Meu ex-chefe. Não minha irmã, prima ou ninguém da minha família…Era ele. Lembro da médica falando que ainda estavam tentando contatar minha esposa, eu respondi que tentava fazer a mesma coisa… Nesse momento ele se aproximou da minha cama, Otto disse que um tiro na boca era mais rápido e chocava só quem fosse limpar a cena do crime. O tipo de cena que eu tinha feito iria apavorar muitas pessoas.
- Alexandre… - a policial tentou elaborar com a voz trêmula.
- Helena, eu sou um homem organizado. Meu almoço de quarta-feira já está pronto no congelador, os sapatos e os terno da semana inteira, estão escolhidos. Os Pereira de Figueiredo vão ter uma sessão confortável de divórcio na próxima semana. Gabriela Prato vai oficializar a adoção que iniciou em fevereiro e a minha meirinha favorita vai se aposentar. Encomendei um bolo sem lactose que vai chegar na sala dela às 15:40, vinte minutos antes para os amigos fazerem a surpresa. - olhou a mulher nos olhos, abaixou o tom de voz e sentiu sua bochecha fervendo - Sempre me incomodou o fato do meu contato de emergência ser Otto Muller. Era o meu tio Ricardo, tenho certeza absoluta. Adriana é mais prática, mas ele era calmo, fazia boas escolhas. Por que ligariam para meu antigo chefe?
- Porque não ligaram. - a agente comentou - Ele estava te seguindo.
Dias sorriu. Ela tinha um desempenho tático horrível. Seria incapaz de sair de uma chave de braço bem dada. Observou-a sendo massacrada nos testes físicos inúmeras vezes. Sua mira também não era das melhores. Contudo, as notas referentes à operacionalidade eram altíssimas. Foi assim que Helena foi parar no curso interno que ele ministrava na polícia federal, um delegado entregou-lhe a ficha e disse: “Você precisa construir um corpo ao redor desse cérebro. Se me bater, ela se machuca. É inadmissível, mas não vou desistir dessa agente.”. Algumas noites atrás, o juiz se deu conta de que aquele treinamento que iniciou deu frutos, enfim potencializado. Agora era presenteado com o intelecto apurado feminino, com a habilidade inata de ler nas entrelinhas, compreender até o que não era dito.
- Jamais machucaria o Foca. - levou a mão até o rosto, massageando a superfície que latejava - Ao menos não intencionalmente, embora não ser capaz de notar os ferimentos dele já deponha contra mim. Não tenho “uma profunda indiferença à vida”.
- Fala isso mesmo admitindo tentar contra a vida do meu marido várias e várias vezes. - Dias deu um sorriso desgostoso ao notar a forma como a mulher compartimentalizava suas versões do presente e do passado; falando da união como se o marido não fosse ele.
- Várias não, só uma. - consertou para disfarçar seu abatimento.
- E essa coisa de pensar em jogar o carro da serra, de encontrar com a Vera só para pedir remédios?
- Falei isso em voz alta?
- Sim. Vocalizou cada pensamento. As pessoas com quem eu trabalhava também tinham esse hábito. Nos disseram que isso acontece porque a terapia flui naturalmente, entramos em paz com nossos demônios…Ou qualquer besteira dessas.
- Por que reapareceu só agora? - ele foi capaz de articular.
- Porque me deixaram voltar…- a mulher observou, mas de uma forma nova, sem desconfiança - Fui procurar minha família e esses colegas de trabalho, que eram da mesma junta. Trocar memórias, sei lá. Tentar saber como foi o processo de reincorporação na PF.
- E o que te disseram?
- Nada. Um monte deles sumiu.
Alexandre virou os documentos que Helena espalhou na mesa e começou a aproveitar a parte em branco. Escreveu 2012, Otto Muller, 2014, 2020 - a data do falecimento do sogro - e 2024. Depois voltou na escrivaninha e achou mais duas folhas para rascunho, pediu para que a policial anotar em uma lista tudo que achasse relevante. Perguntou se ainda conseguia lembrar dos treinamentos que tiveram juntos, das vezes em que o ajudou a estudar para o concurso de magistratura ou quando a treinava no aprimoramento das técnicas de defesa.
- Lembro de me bater e fingir que estava me ensinando. - ela ironizou com uma leveza que o lembrou do passado. Ele tentou jogar a tampa da caneta no rosto feminino, mas foi impedido.
- Mas ensinei, viu? A mão continua pesada, o Age Uke continua afiado. - Dias ironizou.
Helena ainda estava confusa, triste e se controlando para que não fosse engolida por ilusões. Entretanto, daquela distância, conversando tão francamente, era fácil lembrar de tudo, da vida inteira que não foi abreviada por desencontros, da versão da realidade em que os planos deles faziam sentido. Pelo luxo de ter esperanças em esclarecimentos, a mulher sorriu e agradeceu o elogio. Depois não falaram mais nada, apenas se debruçaram, elencando os acontecimentos. Sem desculpas, sem rodeios. Subitamente, Dias entendeu que Helena foi até a casa dele pedir uma orientação, uma opinião de por onde deveria começar a buscar aquelas pessoas. Sabia que a determinação dela nunca teria aberto caminho se a policial não estivesse disposta a perdoá-lo. Ele precisava mesmo de perdão, não por ter pedido aquele divórcio fictício, mas por ter se acomodado - algo que ela jamais faria.
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