Eu caí junto com Samantha. Eu vi seus olhos fecharem bem na minha frente, a expressão que demonstrava a dor que ela sentiu, antes de apagar completamente. Quando ela chegou no chão, meus joelhos bateram ao lado do seu corpo enquanto eu tentava em vão segurar seu corpo. Parece um momento maravilhoso para acontecer em câmera lenta, mas aconteceu rápido demais - é assim que a vida acontece.
Eu ouvi seu corpo cair, ouvi sua cabeça bater no chão e não ouvi sequer um som de dor porque ela não estava mais ali. Eu segurei sua cabeça, completamente incrédula do que estava passando. Havia dois segundos apenas eu estava sentindo uma felicidade eufórica e agora eu estava perdida em raiva.
O que aconteceu dali pra frente não foi feito de coragem, foi feito de raiva e vingança. E foi justiça.
Eu me levantei rapidamente me virando na direção do Rafael. Ele tinha uma expressão insana no rosto, nem sequer um rastro de consciência ou arrependimento. Assim que dei um passo a frente, uma mão segurou meu peito, me parando. Eu olhei para o lado e vi a K1 com uma expressão rígida me encarando, mas eu estava cansada de ser parada.
-Lica, não faz isso.
-Me dê bom motivos, Katarine. - Eu disse entre dentes sem tirar os olhos do Rafael.
-Parece que sempre vai ter alguém para te impedir, né Lica? - Rafael perguntou com um sorriso no rosto. - Ou será que é você que não quer mesmo? - Ele disse se virando.
Eu não escutei o que a K1 disse em seguida, a voz do Rafael ecoava na minha cabeça. A maioria do que ele dizia não era verdade, mas eram coisas muito provocativas e eficientes nesse sentido. Eu sempre era uma bomba prestes a explodir de qualquer forma.
Eu peguei a garrafa que K1 segurava e ergui no ar, descendo em um arco e em seguida a soltando. A garrafa voou de onde eu estava até o corpo do garoto que já estava há alguns passos de distância. Eu adoraria estudar a física daquele lançamento, pois, havia sido muito bem executado.
Um silêncio ainda maior percorreu a sala quando os pedaços da garrafa caíram no chão e Rafael parou seus passos. Eu conseguia ver a marca na sua camisa, eu conseguia ver o sangue. Ele se virou na minha direção e por uma fração de segundo eu consegui o ver vindo na minha direção com a velocidade de um demônio. Quem entrou na minha frente dessa vez foi o Anderson, mas ele não me parou, ele desferiu um soco que jogou Rafael alguns passos pra trás.
Depois disso eu perdi noção de onde a confusão começava e onde ela terminava. Quando Anderson derrubou Rafael no chão, depois de ter levado três socos e chutes depois eu instintivamente me joguei pra cima dele e desferi um soco no seu rosto. No calor do momento eu não senti a dor que deveria pela lei da Ação e Reação e se sentisse estaria chorando porque foi um soco muito forte.
Ele me jogou pro lado e deu um soco que pelos meus movimentos acabaram acertando meu ombro. Essa dor eu senti e segurei habilmente o som que meu corpo queria gritar. Lhe dei outro soco que dessa vez acertou seu rosto e uma sensação muito estranha invadiu meu corpo quando eu vi o corte que havia feito.
Eu fui puxada da briga e agradeci por isso desde aquele momento. Eu não sabia quem estava me arrastando para longe dele, mas conseguia ouvir sirenes agora. Não era a polícia, era a ambulância e isso me fez lembrar do que realmente estava acontecendo ali. Samantha.
-Cadê ela? - Eu perguntei urgentemente me virando.
-Na ambulância. E você também precisa de uma. - Rafael disse me puxando para fora da casa.
Minha cabeça estava ecoando e não era somente com o peso de tudo que acontecia, era de dor física.
Eu entrei na mesma ambulância que Samantha estava, me colocaram sentada no canto da ambulância enquanto Samantha estava deitada na maca com os olhos fechados em uma semblante de plenitude completamente destoante a tudo que acontecia ao nosso redor.
Uma das paramédicas se aproximou de mim no fundo da ambulância, mas eu só consegui recobrar os sentidos de tudo que estava acontecendo quando a porta da ambulância bateu e ela entrou em movimento. Não havia adolescentes xingando, não havia vozes indignadas, preocupadas ou muito animadas para falar sobre a confusão no twitter. Havia paramédicos apressados tentando descobrir os sinais vitais da minha namorada e isso era igualmente barulhento, mas muito mais intenso.
A paramédica fazia perguntas que eu não conseguia responder direito ou sequer ouvir direito. Ela me perguntou coisas como qual era meu nome porque provavelmente imaginava que o soco na cabeça havia me deixado lesada, mas eu não conseguia falar nada direito. Eu me esqueci completamente do meu tipo sanguíneo e do número da minha mãe.
Eu entreguei meu telefone para ela e ela se virou para descobrir as informações que precisava. Ela também concluiu por si só o que eram as marcas no meu braço que pareciam agulhas - ela tinha certeza de que aquilo não era porque eu fazia muito exames de sangue. Eu agradeci por não ter bebido quase nada alcoólico naquela noite e por realmente estar limpa.
Quando ela se afastou de mim porque já havia feito tudo que precisava eu comecei a relembrar o que havia acontecido. Todas as coisas que haviam se passado durante o meu dia e consequentemente a confusão onde aquilo terminou. Como um dia que tinha tudo para ser normal, uma tarde estudando e uma noite juntas, terminou com a Samantha em uma maca e eu com a cabeça cortada?
Eu comecei a chorar. Um choro silencioso e incontrolável. Eu não queria parar as lágrimas, era melhor me sentir triste naquele momento do que cultivar a raiva pelo outro indivíduo. Foi a minha raiva que nos colocou ali, afinal.
Eu chorei até chegarmos ao hospital. Quando chegamos ao hospital e Samantha simplesmente foi levada para a direção oposta a minha, eu parei de me sentir triste e de sentir raiva, eu comecei a sentir desespero. Era uma transição de sentimentos tão rápida que eu quase era incapaz de lidar.
Eu não fazia a minima ideia do que havia acontecido com a Samantha. Eu basicamente só sabia que ela estava viva. Ela havia batido a cabeça, quantas coisas poderiam decorrer disso? Ela estava inconsciente a meia hora, quantas coisas isso poderia significar?
Me sentaram em uma maca em um corredor do hospital porque a emergência estava extremamente cheia. Uma enfermeira apareceu e começou a fazer testes que teriam resultados melhores naquele momento porque eu conseguia escutar as coisas com mais clareza. Meu corpo estava se assentando.
Ela colocou a mão na minha cabeça e eu descobri que havia um ferimento, eu não havia sentido nada desde então. Agora que a adrenalina no meu corpo estava baixando, eu conseguia sentir as coisas.
-Como isso aconteceu? - Ela perguntou.
-Eu levei um soco na cabeça. - Eu respondi com dificuldade. - Tá muito ruim?
-Um corte considerável. Mas superficial. - Ela respondeu abrindo uma das gavetas na mesa ao lado da maca. - Eu preciso esterilizar e cobrir, okay?
Eu assenti e me coloquei na beirada da maca para que ela pudesse trabalhar. Um certo desconforto surgiu quando ela começou a limpar o ferimento, mas era algo que poderia ficar se fosse levar a dor de cabeça excruciante para longe.
-Foi uma outra mulher que fez isso?
Ela sabia a resposta, mas ela tinha o dever de fazer o que qualquer outro paramédico e enfermeiro faria. Ela tentaria tirar informações de mim para saber se precisava chamar a polícia, ou não. Ela queria saber se era apenas uma agitação para trazer emoção a vida monótona de crianças ricas como nós, e eu sabia disso porque não era a primeira vez que isso acontecia comigo. Era assim que as pessoas viam a gente, mas não era essa a situação.
Dessa vez toda a confusão tinha razão, tinha um causador e o que ele estava fazendo não trazia só agitação pra vida de ninguém. Trazia desconforto, trazia dúvidas, trazia vontade de simplesmente parar de tentar.
-Eu levo os créditos por isso.
Eu não o vi, só sabia que ele estava do outro lado do corredor, provavelmente sentado em outra maca.
-Quanto orgulho. - Eu resmunguei.
-Você sabe que tá ferrada, né?
Eu queria ignorar a voz dele porque sabia que de alguma forma eu já estava com problemas, mas era impossível evitar ouvir o que ele dizia. Ele era impertinente e extremamente perigoso porque era eficiente.
-Eu?
-Eu é que não estou.
-Eu não vejo como. - Eu disse me permitindo dar uma risada leve, a dispar da pontada que senti com o álcool sendo jogado no ferimento.- Você sabe que você não pode ser a pessoa que chama a polícia, né? E alguém com certeza vai chamar a polícia. E eu no seu lugar não tiraria nem sangue pra fazer exame, você não iria muito longe.
Ele ficou em silêncio por alguns segundos, enquanto a enfermeira que fazia o mesmo procedimento no seu caso, se retirou e eu rezei para que estivesse indo buscar uma seringa. A minha enfermeira disse que voltariam em segundos e me pediu para tirar a blusa porque precisava ver o ferimento no meu braço.
Eu consegui ver Rafael completamente agora. Imaginava que eu estivesse tão machucada quanto ele, mas mesmo assim era um sentimento digno ver o rosto dele daquele jeito. Eu havia visto o rosto do Rafael daquele jeito, do Felipe que nem sequer tinha algo a ver com isso daquele jeito antes e em ambos os casos o culpado era ele. Pela primeira vez ele não havia pelo menos saído impune de alguma maneira.
-Eu não sou retardado, Heloísa. - Ele disse. - Mas você começou uma briga, todo mundo sabe que foi você quem começou.
-”Foi você quem começou”, muito maduro. - Eu disse com um riso alto que me causou uma dor interna.
-Você quebrou uma garrafa nas minhas costas. - Ele disse entre dentes.
-E você não mede o quanto isso me faz feliz. - Eu respondi
Havia um certo desespero nele agora. Ele sempre fazia as coisas e conseguia se safar. Talvez ele escapasse das jurisdições da escola porque ele atacava as pessoas fora da escola, talvez ele escapasse porque escolhia as pessoas que não teriam como lutar de volta. Mas agora ele havia passado do limite e feito tudo errado para si mesmo. Agora ele não poderia se esconder atrás do dinheiro do pai dele completamente.
-Você feriu gravemente duas pessoas, bateu em outras quatro. Quando você importunou o Gabriel, nada te aconteceu porque o Gabriel não tinha dinheiro pra te processar, mas você acha mesmo que a família da Samantha não vai, Gabriel? - Um sorriso genuíno de felicidade cresceu dentro de mim. Finalmente algo aconteceria, além do que já havia acontecido. Agora ele realmente tinha chances de se ferrar completamente. - Reflita. - Eu disse com um sorriso.
Uma hora depois eu consegui me levantar da maca. Foi preciso um considerável tempo para que eu conseguisse mexer o meu braço o suficiente para que ele fosse analisada. Não havia sido quebrado, mas chegou bem perto. O músculo do meu braço estava comparável ao tamanho da minha cabeça.
Eu consegui chegar a sala de espera e há tempos não via um lugar tão cheio. Parte completa da festa estava ali e uma considerável parte que não estava na festa também. Sentados na sala de espera, desde as cadeiras até o chão. Eu não sabia onde os parentes dos outros pacientes da emergência estavam porque eu só conseguia ver gente que me conhecia.
Assim que cruzei a porta, senti um abraço forte, vindo não de uma pessoa, mas de outras três, enquanto Benê nos observava de longe. Eu uivei de dor e elas se afastaram rapidamente encarando o pano onde meu braço estava envolto.
-Você quebrou o braço? - Tina perguntou rapidamente.
-Não. O pano pra segurar a bolsa de água quente. - Eu disse com dificuldade. - Cadê a Samantha?
Alguém se levantou e me conduziram para eu me sentar no lugar onde ele estava. Eu odiava quando isso acontecia. Ninguém te mandava sentar pra te contar que sua namorada estava magicamente bem e acordada.
-A gente não sabe. - A Ellen disse escolhendo não fazer rodeios. - Ela ainda não acordou e estão fazendo uma bateria de exames porque ela não estava respondendo aos exames básicos.
Eu respirei fundo me encostando ao fundo da cadeira, mas voltei imediatamente porque o contato fez as minhas costas doerem. Eu me lembrei de que Samantha não era a única pessoa que poderia estar ferida naquela situação.
-Cadê o Anderson?
-Faala comigo.
Eu me virei e percebi que o menino estava sentado bem ao meu lado. Ele estava sorrindo. Sorrindo. E eu não fazia ideia do porque. Seu rosto estava inchado debaixo do olho e sua calça tinha uma mancha sangue na altura da coxa.
-Anderson…
-Relaxa. - Ele disse. - Eu tô bem. - Ele disse forçando um sorriso.
-Não parece.
-Nem você.
-Mas eu não tô mesmo. - Eu disse e ele riu, me fazendo rir também.
-Eu vou buscar algo pra vocês. - Keyla disse se colocando de pé. - Vem comigo, Benê?
-Eu vou procurar minha mãe. - Tina disse se levantando. - Ela deve saber alguma coisa do Guto ou da Samantha.
-Do Guto? - Eu perguntei confusa.
Até onde sabia o Guto não estava lá. Samantha estava um pouco relutante quando descobriu que nem ele e nem Clara iriam.
-Ele chegou bem tarde na festa. - O Anderson disse depois que as meninas haviam se espalhado. - Junto com a confusão aparentemente. Ele se envolveu também. Todo mundo quer defender a Samantha, né?
-Aparentemente sim. - Eu disse sentindo uma pontada de dor no peito.
Eu e Anderson tínhamos péssimas experiências com aquele espaço. Aquela sala de espera havia sido onde nós ou pessoas próximas a nós ficaram por muito tempo esperando notícias nossas e também onde recebemos notícias bem ruins. Era engraçado pensar no tanto de informações que havíamos recebido naquele lugar, no misto de emoções que só nós dois compartilhamos por termos passado por aquilo porque nós não éramos as pessoas mais próximas do nosso grupo e nem chegavámos perto.
-Eu estava te defendendo também, você sabe disso, né? - Ele disse após alguns segundos.
-Eu sei. - Eu disse abrindo um sorriso mínimo. - Muito obrigado.
-Não precisa agradecer, meo. Eu não podia deixar aquele filho da puta destruir o segundo casal mais bonito da Vila Mariana, saca?
-O segundo? - Eu perguntei rindo.
-Pô, Lica. Não vai querer quebrar, Tinderson, né? - Ele disse me fazendo rir.
Anderson tinha aquele jeito de fazer todo mundo ficar feliz de repente. Eu descobri com o tempo que era algo da família dele, a sua mãe era uma pessoa dura pelas coisas que havia passado, mas também de um coração muito bom. A Ellen mesmo que passasse mais tempo nervosa que a média da população mundial, nunca me decepcionou quando eu precisei de um apoio ou de um descarrego seu. E a Das Dores era sem palavras.
-Eu não sei como você consegue estar tão bem o tempo todo.
-Nem eu, zé. - Ele disse com um sorriso. - Mas eu não vejo outro jeito, mano. - Ele disse com um sorriso um pouco menor. - Quando você tem problemas, você pode ficar aumentando eles e reclamando sobre eles o tempo todo, tá ligado? Só que isso não colabora com o corre de ninguém. Aí você também pode sorrir pra ele e até rir dele. - Ele disse abrindo um sorriso. - E aprender que seus problemas nunca são maiores que você, meo.
Eu sorri pra ele meio incerta de que estava realmente ouvindo aquilo de alguém com a mesma idade que eu. Enquanto o Anderson carregava a sabedoria de três mil anos, eu estava socando pessoas por raiva em festas numa noite de prova.
Das Dores apareceu. Correndo como sempre e um tom de quem havia recebido uma ligação para entregar 1000 coxinhas daqui dez minutos. Ela abraçou o Anderson com a força de um leão e em seguida recebeu cumprimentos de todos que estavam ali.
-Em que você se meteu agora, Anderson? - Ela perguntou rigidamente.
-Eu não fiz nada não, vó. Ele só chutou minha perna esquerda meio forte, tá tudo bem.
-Tudo bem, né? - Ela disse dando lhe um tapa no ombro. - Você fica se metendo em confusão e quem passa estresse sou eu e sua mãe. Eu não tenho idade pra isso não, Anderson.
-Ih vó, relaxa meo. - Ele disse segurando a mão dela levemente para que ela parasse com os tapas repreensivos. - Vai tá tudo bem daqui umas horas e eu vou levantar com o pé direito… Porque foi o único que me sobrou. - Ele disse caindo na risada.
Eu ri fortemente a dispar da dor nas costas e de estarmos numa sala de espera de hospital. Era inapropriado, mas eu fiquei extremamente feliz ao lembrar que ainda existia a possibilidade de eu conseguir rir a dispar da tempestade de coisas acontecendo.
Keyla voltou com algo para nós e eu recusei a comida, era incapaz de comer várias coisas naquele momento. Me contaram que eram aproximadamente três horas da manhã, estávamos ali há um tempo considerável e Samantha ainda não havia acordado.
Quanto mais tempo eu passava ali, pior a situação ficava. Enquanto a dor física se dissipava do meu corpo e eu me acostumava com a situação atual do meu braço, mais eu tinha ciência de que uma hora o meu psicológico seria afetado. Eu conseguia sentir o sufoco subindo pelo meu peito, e conseguia sentir a crise batendo a porta.
-Eu não acredito na galera do Grupo, pelo amor. - Ellen disse socando se telefone de volta em sua bolsa.
-O que foi? - Jota perguntou enquanto se sentava no chão ao seu lado. Estavam todos sentados ao meu redor.
-O aplicativo parou por alguma razão. E estão me perguntando se eu vou resolver o problema, pelo amor. Olha a situação.
-Pelo menos quem tá reclamando disso não tá ocupado panfletando o que aconteceu na festa nas redes sociais. - A Tina disse.
-Mas alguém vai. As pessoas adoram confusão. - A Benê disse, com razão como sempre.
-Realmente. Só que isso não é um caso de confusão. Todo mundo sabe porque o Rafael tava perseguindo a Lica e a Samantha. - A Keyla disse com pesar.
Pensar daquele ponto de vista doía. Quando eu percebia que tudo que havia acontecido não era uma simples briga. Rafael não tinha nenhum problema pessoal comigo nem com a Samantha, poderia ter sido qualquer homossexual da escola. A gente não tinha feito nada contra ele, a gente só tava lá, sendo nós duas. Nosso erro era estar vivas?
-Mãe. - Tina disse se levantando de repente.
Todos se colocaram de pé quando a Dr Mitsuko passou pelo arco da sala de espera.
-A Samantha recobrou a consciência e foi levada para fazer alguns exames de primeira ordem antes de receber visitas. Os primeiros exames não indicaram nada fora do normal, o que significa que a pancada na cabeça não deixou sequelas nem causou nem tipo de dano. - Ela fez uma pausa e eu ouvi algumas comemoração e frases de aleluia saindo de diferentes cantos. Mas eu não disse nada, eu sabia que não havia acabado. Ela ainda estava parada ali, ainda havia uma bomba. - Enquanto fazíamos um exame, Samantha reclamou de dores intensas que não eram na cabeça e nós precisamos sedar ela. O efeito do sedativo deve terminar em questão de minutos e eu preciso conversar com os pais e alguém próximo antes que ela acorde, para saber como vamos proceder.
A sala caiu em silêncio e as dores voltaram as expressões.
Aquilo era pior do que eu imaginava. Não era uma resposta e sim um monte de perguntas. Era extremamente vago: dores que não eram na cabeça. O que eu fazia com essa informação? O que eu deveria pensar?
A minha cabeça se encheu de perguntas e meu corpo se encheu de desespero. A sensação aumentou. A sensação conseguiu alcançar meu coração e o tinha na mão agora, o próximo passo era começar a apertá-lo.
-Heloísa.
A voz me tirou do escuro da minha cabeça e eu abri os olhos. Era a mãe da Samantha. Uma Samantha vinte anos mais velha e mais saudável que ela naquele momento.
-Alguém próximo. - Ela disse com um sorriso mínimo.
Eu entendi o que ela queria dizer e me levantei seguindo ela e o pai da Samantha por alguns corredores. Eu sentia um frio na espinha agudo e não era nada prazeroso, era extremamente tortuoso.
-Heloísa, você pode entrar, por favor? Eu preciso conversar com os pais da Samantha individualmente e eu preciso que você me avise caso ela acorde.
Eu assenti completamente incerta e entrei no quarto.
As luzes estavam acesas, mas o quarto parecia escuro. Todo o ambiente estava fechado, mas eu senti frio ao passar pela porta. A máquina fazia toques ritmados e normais, estava tudo sobre controle, mas eu senti desespero assim que me sentei.
Eu não consegui chegar perto.
Eu não consegui ficar perto.
Eu não consegui ver de perto.
Não era nada horrível se você comparasse com a maior parte das pessoas naquele hospital, mas estava ali. Era a Samantha machucada de alguma maneira e isso era horrível demais pra mim. Era muito mais do que eu conseguia aguentar.
Nada daquilo era culpa dela. Aquela confusão nem era dela. Era do meu temperamento explosivo. E eu estava acordada, consciente passando por tudo aquilo, ela nem sequer teve a chance de se defender ou ser defendida.
Eu queria dizer que observei a mancha roxo no seu rosto e o pequeno corte que havia sido costurado enquanto cravava as mãos na borda da poltrona do hospital, mas eu não estava com raiva. Não havia imagem do Rafael que me fizesse sentir raiva naquele momento. Eu estava me sentindo triste, extremamente triste.
E eu comecei a chorar de novo. O mesmo choro da ambulância.
Eu não sei por quanto tempo eu chorei, eu não sei quanto tempo a conversa do lado de fora da sala durou. Só sei que quando eu saí do meu espectro de choro eu não sabia mais sobre o que estava chorando exatamente.
-Não, chora. Eu vou chorar também.
Eu ergui a cabeça e num estalo me coloquei de pé.
Era a Samantha.
Ela não estava me olhando, ela não estava me vendo. A posição que estava na cama e que por algum motivo não conseguia mexer, só deixava ela encarar basicamente o teto.
Eu estava de pé, mas não conseguia me mexer. Não conseguia me aproximar para fazer o que precisava ser feito. Eu tinha medo de muita coisa naquele momento.
-Lica. - Ela chamou. - Eu sei que é você.
-Oi, Sam. - Eu disse respirando fundo com um sorriso mínimo. Ela nunca havia me visto chorando exatamente. - Eu não sei como você sabe.
-Meu corpo sabe. Quando meu coração acelera, eu sei que só pode ser você. - Ela disse e eu conseguia ver o sorriso de longe. Aquilo não era mulher, era um anjo. E ela não merecia o que estava acontecendo. - Por que você tá chorando? O que aconteceu, Lica? Eu não consigo me lembrar.
Aquilo me fez soluçar enquanto chorava. Tinha um tom de desespero na sua voz e eu não conseguia evitar ele nem dentro de mim quem dirá tirar ele de dentro dela.
-O Rafael aconteceu, Sam. - Eu disse com dificuldade. - Ele me machucou, ele machucou o Anderson, ele machucou o Guto e machucou você.
-Você tá bem?
Eu havia listado todas as pessoas machucadas. Ela estava quase impossibilitada de se mexer naquela maca devido a anestesia geral e ela estava me perguntando se eu estava bem.
-Você tá sentindo dor, Sam?
-Lica, eu te perguntei se você tá bem. - Ela disse com a voz carregada. - Me responde. Eu quero te ver.
-Eu tô bem, Samantha.
-Então vem aqui! - Ela disse firmemente entre um soluço.
Foi difícil pra mim. E eu sabia que era bem mais difícil pra ela. Eu me aproximei dela com passos lentos e meu corpo parecia pesar uma tonelada. Minha cabeça realmente pesava uma tonelada de várias maneiras.
Eu coloquei a mão ao lado do seu rosto no travesseiros e me coloquei no seu campo de visão. Nossos olhares se encontraram e começamos a chorar, o choro que eu conseguia reconhecer facilmente. Era desesperador. Ela não merecia aquilo.
-Você não tá bem. - Ela disse com a voz extremamente falha.
Ninguém sabe o que fazer quando vê a Samantha chorando. É como se um dia o sol parasse de brilhar, você simplesmente não saberia o que fazer. Eu não sabia o que fazer naquele segundo.
-É só um corte, Sam. Vai ficar tudo bem comigo…
-Foi só isso? - Ela perguntou me encarando. - Você tem certeza?
Ela colocou a mão no meu braço para me impedir de me afastar e eu uivei de dor com o ferimento do meu braço. Ela voltou a chorar, eu não tinha mais tanta certeza se ficaria tudo bem. Ela segurou a borda da cama com força e a sua expressão de desespero ganhou um traço de dor.
-Samantha. - Eu disse rapidamente.
-Tá doendo. - Ela gemeu enquanto colocava a mão sobre a sua barriga. Agora o efeito havia acabado completamente. Ela estava sentindo todo o seu corpo novamente e com ele toda a dor que habitava seu corpo naquele momento, eu conseguia ver isso nos seus olhos. - Lica, tá doendo muito.
Eu chorei mais de desespero e as lágrimas caiam do meu rosto compulsivamente, molhando o lençol da cama do hospital, assim como as suas. Eu gritei o nome da Doutora Mitsuko e a porta abriu rapidamente. Ela irrompeu no quarto, acompanhada de duas enfermeiras e eu me afastei da maca sem ter o que fazer.
Eu não conseguia parar de chorar e não conseguia fazer nada além daquilo.
A mãe da Samantha se aproximou e colocou a mão nos meus ombros enquanto eu assistia a maca sair do quarto, carregando a Samantha se contorcendo de dor. Uma das piores cenas que eu já assisti.
-O q-que…
Eu queria perguntar o que estava acontecendo, mas quem disse que eu conseguiria?
-Eles acharam algumas coisas suspeitas na tomografia. Eles precisam fazer uma cirurgia de reconhecimento para verificar o que é. Vai ficar tudo bem?
-Vai? - Eu perguntei.
Ela não respondeu. Dizer era fácil, mas confirmar era bem mais difícil.
Talvez não ficasse tudo bem.
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