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História Nossa Trilha Sonora - Memórias - História escrita por nicolydndr - Spirit Fanfics e Histórias
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História Nossa Trilha Sonora - Memórias


Escrita por: nicolydndr

Notas do Autor


Aviso caridoso: não leiam esse capítulo se vocês estiverem muito pra baixou ou algo do tipo. Demorou um pouquinho pra sair porque eu tive probleminhas pra escrever, então, me ouçam. Pelo bem de vocês, porque pode não parece, mas eu gosto de vocês kkk

Hino de sofrimento do dia: Snuff - Slipknot

Capítulo 25 - Memórias


My heart is just too dark to care

I can’t destroy what isn’t there

Eu acordei com um súbito. Meu corpo se lançou pra frente na cama e eu fui rapidamente puxada de volta para o colchão. Minha cabeça rodopiou e eu senti que estava sentada em uma nuvem, prestes a cair completamente desamparada.

Eu abri os olhos levemente e os fechei em seguida tão rápido quanto havia aberto. Reconheci o local e reconheci as circunstâncias. Eu estava no hospital, deitada em uma maca e com algo injetado na minha veia. Por um momento de descoordenação meu cérebro compreendeu que eu havia voltado ao dia fatídico, não era isso, mas eu não conseguia me convencer do contrário.

Senti uma mão no meu ombro e abri os olhos novamente, diminuindo os movimentos do meu corpo na cama. Era a minha mãe. Eu ouvi a sua voz e ela me disse o que sempre dizia quando eu despertava daquela maneira de um sonho ruim, daquele sonho ruim.

-Tá tudo bem. Tá tudo bem. - Ela dizia repetidamente.

Ela fez tudo que já era esperado. Me ensinou a respirar novamente e com o tempo tudo voltou ao normal. Eu consegui abrir os olhos e tomar alguns segundos para me lembrar de como havia ido parar naquela cama daquela vez.

Não estava tudo bem, mas estava tudo bem melhor do que eu esperava.

A próxima pessoa que eu foquei era uma funcionária do hospital que me encarava com um olhar crítico por cima da sua prancheta. Eu sabia quais eram as perguntas que ela faria em seguida e uma espécie de alívio me bateu por saber que dessa vez eu não precisaria mentir para satisfazer ninguém, eu realmente não tinha feito nada de errado.

-Algum uso de substâncias ilícitas no dia anterior?

-Não.

-Abuso de álcool…?

-Ela passou o dia no hospital como eu e como você. - Minha mãe disse a interrompendo. - Pode checar se está tudo certo com ela, por favor?

A médica desistiu do questionário, a palavra da minha mãe com certeza valia mais que a minha. Eu avisei que estava me sentindo bem - o considerado bem para quando se acorda depois de um desmaio - mas ela não deu ouvidos.

-Eu vou chamar as meninas, elas todas voltaram assim que ficaram sabendo do que aconteceu. - Minha mãe disse saindo do quarto enquanto a enfermeira começava uma série de exames práticos.

Eu fiquei em silêncio no quarto reavendo mais e mais coisas que haviam acontecido. Era sempre algo muito estranho, uma sensação complicada de explicar. Era pequena pra mim a sensação de não conseguir se lembrar das coisas que aconteceram, mas isso era porque eu sempre colocava em comparação com outra situação daquela.

As meninas voltaram e invadiram o quarto com um sorriso carregado de preocupação. Ela não estavam aqui da última vez que eu estive naquela situação e eu sempre me pergunto se as coisas teriam sido diferentes se elas estivessem. Era quase incoerente pra mim que eu tivesse passado algum tempo da minha vida sem aquelas quatro, todos os momentos pareciam incompletos quando eu começava a imaginar a possibilidade de vivê-los com elas.

-Lica, honestamente. Eu não tenho psicológico pra isso. - Tina disse deixando sua bolsa no chão e se sentando na minha cama.

-Eu já tenho um filho, sinceramente, não quero ter dois. - Keyla disse nos fazendo rir.

Eu ri sentindo minha cabeça doer levemente.

-Desculpa, gente. Plena semana de prova de física, esquenta pro ENEM e eu passando mal…

-E você passando mal porque não comeu e nem tomou remédio. - A Ellen disse cruzando os braços. - Pelo amor, Lica.

-Ai, desculpa, mamães. - Eu disse com um forte tom de ironia.

Elas me deram tapas de leve pelas pernas enquanto nós caímos na risada.

-O Anderson tá bem? - Eu perguntei encarando Tina.

-Ah, tá sim. Eu tinha acabado de sair daqui com meu pai pra levar ele pra casa. A perna dele vai ficar bem logo e ele vai parar de fazer piadas envolvendo pé direito… - Eu tentei segurar o riso me lembrando da piada. - Não ri não. O bom humor do Anderson chega a ser assustador…

-Assustador é o que os pais do Rafael disseram. - A Ellen disse se desencostando da parede que estava. - Ainda bem que você tava apagada, Lica, porque você ia querer pular no pescoço daqueles filhos da mãe…

-Uou. Se tiraram você da órbita assim imagina o que fariam comigo. - Eu disse conquistando uma risada delas. Ellen realmente não era de ficar nervosa com as pessoas assim, ela se estressava com coisas importantes como provas e ENEM, não seres humanos. - O que rolou?

-Eles vieram buscar o Rafael e a mãe da Samantha pediu pra conversar com eles. Que mulher, diga-se de passagem. - A Keyla disse com um tom respeitoso. - Ela queria arrumar um jeito de resolver a situação sem advogados ou pelo menos saber se o problema tava só no Rafael.

-É. Mas não tá. Os pais deles são igualmente ridículos. - A Ellen disse com um tom indignado. - E eles disseram que vão processar a gente e não o contrário, vê se pode? - Ela estava gesticulando agitadamente e eu não conseguia me lembrar de ver ela naquele estado em muito tempo. - E jogaram a bomba pro elo mais fraco da corrente…

-Desculpa. - Eu disse confusa. - Eu não entendi.

A Tina respirou fundo antes de falar, eu senti o peso das palavras mesmo antes de serem ditas, como quando a Keyla disse no dia anterior o maior problema com aquela briga.

-Eles disseram que foi o Anderson que começou a confusão, que você e a Samantha não tinham nada a ver com isso. - Ela fez uma pausa encarando a Ellen pra ver se ela queria falar, mas a menina jogou os braços pro alto e se virou continuando sua caminhada sem rumo. - E eles vão usar o fato de o Anderson ser negro e da periferia ao favor deles.

Um silêncio recaiu sobre a sala. Eu fiquei em silêncio porque não fazia a mínima ideia do que dizer. Não havia nada a dizer que não fossem da categoria de xingamentos que a Ellen estava proferindo.

Eu havia escuto um dia que nós havíamos sido treinados para temê-los e desde esse dia o meu olhar sobre certas coisas mudou completamente. Eu não conhecia todas as pessoas do mundo, mas conhecia pessoas suficientes para saber que as nossas diferenças não estão limitadas na nossa pele ou de onde viemos. E tudo é uma questão de onde queremos chegar e como queremos chegar lá.

-E o Guto, Benê? - Eu perguntei observando que a garota estava parada com os braços cruzados em frente a cama desde a hora que chegou. Ela não havia dito uma palavra. - Benê? Você tá bem calada.

-Você está bem? - Ela perguntou.

-Eu? - Eu disse surpresa. - Eu tô bem. Por quê?

-Você tem certeza de que não tem nada de errado com você? Nada dentro de você?

Tinha um certo tom de urgência na voz dela que eu não conseguia compreender e aparentemente nenhuma das meninas também. As meninas se viraram pra ela com um olhar confuso enquanto ela permanecia parada, alisando os braços rapidamente e ajeitando o óculos periódicamente.

-Que isso, Benedita? - Keyla disse confusa. - O que foi?

-Benê. - Eu perguntei amistosa. - Eu tô bem, tá tudo certo. Por que você tá preocupada com isso?

-Porque eu fiquei com medo que algo acontecesse com você. A Samantha também tava bem e de repente a gente descobriu que ela tem um tumor. Eu não quero que nada aconteça com você. - Ela disse ajeitando os óculos.

Um silêncio recaiu pela sala enquanto as meninas escolhiam as palavras certas para dizer - para mim e para a Benê. Eu estava em silêncio porque aquilo havia caído sobre a minha cabeça como um livro muito pesado. Como se eu fosse Newton sentado debaixo da árvore, mas ao invés da maçã trazer conhecimento, ela trouxe desespero.

-Lica. - Tina disse com um tom alarmado. Ela olhou de mim para o aparelho ao meu lado. - Você está bem?

-Cadê a Samantha? - Eu perguntei com a voz falha.

-No quarto dela. Ela tá bem. - a Keyla disse colocando a mão sobre o meu braço. - Você precisa respirar, relaxa. Não tem nada acontecendo com a Samantha...

-A Samantha tem um tumor. - Eu disse com um tom firme.

-A Samantha tá bem, Lica. Eu ia até fazer uma visita pra ela. - A Tina disse tirando seu telefone do bolso. - E você também precisa ficar bem também.

-A Samantha tem um tumor. - Eu repeti impaciente.

-Okay, calma. - A Ellen disse pegando o telefone da mão da Tina. - Olha só.

Ela digitou algumas coisas no telefone e eu fiquei impaciente sendo atingida por flashes das últimas frases que eu ouvi antes de desmaiar. Não podia tá tudo bem. Ellen se inclinou sobre mim na cama e colocou o telefone no meu ouvido, eu ouvi os toques da linha sem entender o que estava acontecendo e em seguida ouvi a voz dela.

-Sam?

-Lica?

Não foi ela dizendo meu nome que me despertou, que me abraçou por completo. Foi como a voz dela soou. Foi como se eu tivesse tomado um banho de vida e tudo voltasse ao normal. Não ligava para o resultado dos meus próprios exames, nem ligava para quando eu seria liberada daquele hospital. Nada importava. Porque a Samantha estava - pelo menos naquele momento - bem.

-Amor? - Ela perguntou novamente e eu conseguia imaginá-la sorrindo. - Cê tá bem?

-Eu tô. Eu tô muito bem.

Eu não sabia o que dizer. Nem ela. Não havia uma conversa normal para se ter naquele momento. Eu não queria desperdiçar o momento falando de coisas fúteis, mas também me recusava a perguntar sobre o que havia colocado nós duas naquela maca.

E então eu me lembrei da informação que eu havia ignorado completamente no dia anterior.

-Luan Santana, Samantha? - Eu perguntei.

Eu ouvi a sua risada do outro lado da linha e isso me encheu ainda mais de vida. A risada dela era maravilhosa, era a coisa mais livre que eu conseguia me lembrar.

-Eu não vou tentar me defender.

-É porque não tem defesa, né?

-Na verdade tem sim. Me defendo quando você vier aqui no meu quarto. Quando eu te ver, eu preciso sentir que você está bem e inteira.

-Eu vou resolver isso.

Nós desligamos e eu encarei as Five com um sorriso que elas já conheciam. Elas haviam ouvido a ligação por completo e elas sabiam o que eu queria. Eu não iria desistir, minhas piores ideias eram as últimas que eu largava - era quase uma regra.

-Eu não vou nem tentar argumentar dessa vez. - Tina diz jogando os braços pra cima em sinal de desistência e eu pisquei pra ela em agradecimento.

-Eu sou completamente adepta do amor, faço tudo por Limantha.

-Eu não entendi o que está acontecendo. - Benê disse nos fazendo rir.

Elas buscaram uma cadeira de rodas, provavelmente pertencente a outro paciente e me fizeram sentar nela. Eu conseguiria andar sem problemas, mas seria consideravelmente mais difícil sair andando por aí com a camisola do hospital sem parecer uma paciente perdida em procura do seu quarto.

Nós saímos pelo corredor e a Tina jurou saber onde era o quarto que Samantha estava. Eu havia feito o caminho de ida e volta no dia anterior pelo menos nove vezes, mas era incapaz de me lembrar qual era. Minha cabeça ainda estava um pouco afetada.

Quando nos aproximamos do quarto dela eu ouvi a sua risada e percebi que estávamos no caminho certo. Eu me levantei do meu carro de fuga e me esgueirei rapidamente para o canto de um armário, evitando enfermeira que passava pela corredor. Eu senti aquele famigerado frio na barriga de ansiedade ao saber que veria a Samantha e isso me agradou demais.

-Limpo. - Ellen disse após dar uns passos pra frente no outro corredor e checar se vinha algum médico.

-Limpo. - Tina respondeu enquanto ela e Benê checavam as escadas.

Keyla me encarou com um sorriso e eu agradeci mentalmente enquanto corria pelo corredor até a porta do quarto 221.

Ao contrário do que eu esperava, Samantha não estava sozinha. Havia um Leonardo sentado na beirada da sua cama a acompanhando em uma risada calorosa. Ou talvez, houvessem dois Leonardos. No canto da sala, na poltrona onde eu havia quase morrida de nervosismo, estava uma versão idêntica do Leonardo. Ao invés de um cabelo cacheado caindo pelo rosto, ele tinha o cabelo liso preso em um rabo.

(Eu era incapaz de decidir qual dos dois eram mais bonito).

-E veja se não é ela. - Leonardo disse saudoso em minha direção. - A descrição é realmente infalível.

-Eu tô meio louca - Eu disse dando um passo para dentro do quarto. - mas eu acho que eu não deveria estar vendo dois de você.

Os dois - três riram - enquanto eu me aproximava da cama.

-Você é meio louca, mas eles são dois porque são gêmeos. - Samantha disse.

Eu nunca havia conversado com o Leonardo, mas sabia que Samantha nutria algum tipo de admiração por ele. Samantha tinha um filtro muito bom de amizades e companhia e por isso eu confiava no gosto dela para pessoas. E eu confiava nos meus olhos também para afirmar que ele era bonito. Logo, era meio assustador pra mim que tivessem mandado dois do mesmo modelo pra Terra.

-Socorro.

-Melhor reação que já tivemos. - O outro disse se levantando da poltrona enquanto ria.

-Realmente. - O Leonardo disse levantando da cama. - Vamos deixar as duas a sós. Até mais ver, Samantha. - Ele se agachou dando um passo a frente e deixou um beijo casto no topo da testa da Samantha. Eu não sabia que eles mantinham tanto contato depois da viagem, mas achei legal. Eles teriam muito o que se entender um com o outro. - Novamente um prazer, Heloísa.

Eu assenti enquanto ele passava por mim e o seu irmão ia em direção a maca. Ele se agachou e deixou um beijo na bochecha da Samantha, mais perto do que eu gostaria de lugares que ele não deveria tocar. Claramente eles só tinham a aparência em comum.

-Foi um prazer te conhecer, anjo.

Ele passou por mim com um aceno e eu assisti enquanto suas costas largas passavam pelo batente da porta do quarto. Me virei para Samantha com a sobrancelha erguida e os braços cruzados me sentando na cama.

-O que foi isso? - Eu perguntei.

-Meus amigos.

-Seus amigos?

-Que foi? - Ela disse rindo. - Cê tá com ciúme do Leonardo, de novo, Lica?

Eu sabia que Samantha não gostava da ideia de ciúme. Ela havia deixado isso claro em alguma situações e eu não sabia até onde aquilo seria um problema porque eu era uma pessoa ciumenta na maioria das vezes. Meu coração era livre, mas a minha cabeça não e isso era muito incongruente.

-Eu tô com ciúme do irmão hétero do Leonardo.

-Lica… - Ela revirou os olhos. - Relaxa, o Eduardo…

-Pera - Eu disse rapidamente. Ia tentar contornar a conversa porque tinha assuntos mais importantes e feliz para tratar naquele momento. - Ele chama Eduardo? - Eu perguntei descrente e ela assentiu confusa com o meu tom de voz. - O nome deles rimam?

Ela soltou uma risada alta e eu entendi que ela captou o quanto eu achava aquilo brega. Assunto ciúme contornado com sucesso.

-Ainda bem que a gente não vai ter filhos, eu sou muito capaz de fazer umas coisas assim com as crianças. - Ela disse rindo.

-Ainda bem mesmo. - Eu sorri. - Mas e aí? Vamos conversar sobre o seu coração que só é atingido por coisas complexas e profundas?

-Você acabou de descrever Luan Santana? - Ela disse rindo.

Nós percorremos todos os caminhos de conversa que tínhamos ao nosso alcance. Esticamos os assuntos o máximo que podia o que nos levou a ganhar uma repreensão por cantar alto no ambiente hospitalar, mesmo sendo algo complexo e profundo como Luan Santana.

O que não queríamos era ficar em silêncio. Não queríamos correr o risco de deixar margem para a oportunidade de os nossos cérebros pensarem no que estava acontecendo fora daquele circo de felicidade. Mas a hora chega pra todas as coisas.

-Eu não tenho um tumor, diga-se de passagem. - Ela disse de repente. Eu abri a boca para perguntar, completamente confusa, mas ela ergueu a mão me pediu silêncio. - Não mais. Eu acho que você desmaiou antes de ouvir que eles eram benignos. Eles retiraram um deles e vão retirar o outro assim que der.

-O que eram exatamente?

-Miomas. É tipo a coisa mais comum do mundo. - Ela disse desviando o olhar. Eu não sabia se aquilo era verdade, me parecia na verdade uma mentira muito reconfortante. - O problema maior é que eles eram três…

-Por que na minha conta a gente só sabe de dois?

-Porque um deles estourou. - Ela disse com um fio de voz. Ela fechou os olhos como se se lembrasse de alguma coisa e eu entendi do que se tratava imediatamente. - Aquela dor que eu senti das duas vezes que acordei… Mulheres tem mioma aos quarenta anos de idade, Lica. Eu sou um milagre da medicina…

Sua voz sumiu e piada também. Eu abaixei a cabeça, me forçando a não chorar para que ela não chorasse. Mas ela já estava chorando.

A história havia acabado, afinal? Ela não teria que fazer tratamentos longos, apenas duas cirurgias. Tudo correu bem na primeira. Ela tinha chances altas de sair dali em dias e estando tudo bem. Nunca mais olhar pra trás.

Seria bom se as coisas fossem simples assim, não é mesmo?

Eu me sentei mais próxima dela na cama e a abracei. Ela colocou a cabeça no meu ombro e segurou minha cintura, me abraçando com uma força descomunal. E eu morri em silêncio porque é isso que você quando você não sabe o que fazer, é a escolha mais sábia.

-Lica. - Ela disse um tempo depois.

Eu respirei fundo e pisquei algumas vezes afastando as minhas lágrimas. Me afastei um pouco conseguindo lhe olhar nos olhos.

-O que aconteceu com você? - Ela perguntou me encarando nos olhos.

-Samantha, isso não é um assunto…

-Lica, eu te vi desmaiar na minha frente. - Ela disse recompondo a voz. - Eu sei que eu disse que não te forçaria a dizer nada que você não quisesse, mas eu não consigo mais evitar…

-Você prometeu que não iria me pressionar…

-E aí você desmaiou na minha frente. - Ela disse com a voz firme.

Eu me levantei da cama rapidamente. Até agora eu estava na sombra do desespero e incerteza pelo que havia acontecido com ela. Agora eu estava no completo escuro da minha própria cabeça, me negando a encarar que estava na hora de contar aquela história para alguém. Que estava na hora de contar aquela história pra Samantha.

Eu sabia que podia ter enrolado menos, eu podia ter me forçado a fazer isso mais rápido. Se tivesse feito isso não teria que contar pra ela estando sentada em um hospital com a cabeça cheia de amigos feridos e injustiçados.

-E eu nem tive como ter certeza que era só um desmaio porque eu não estava conseguindo te ver, Lica. Porque eu não sabia o que tinha acontecido antes. - Ela continuou.

Eu me sentei na poltrona e mergulhei meu rosto nas minhas mãos. Eu não estava chorando mais, mas havia algo agarrado na minha garganta. E eu sabia que isso iria se soltar assim que eu começasse a contar a história.

-Eu não sei como te contar…

-Eu preciso saber qual é o seu problema porque eu quero te ajudar. - Ela disse com a voz falha. Eu conseguia sentir a urgência, não era impaciência comigo, era vontade de saber. Era a necessidade de fazer alguma coisa. - É ansiedade, é um aneurisma, alguém fez algo com você…?

-Calma, calma. - Eu disse rapidamente. Respirei fundo jogando a minha cabeça pra trás e me encostando na poltrona. - Eu não tenho um aneurisma. E não é bem ansiedade. - Eu me sentei novamente ereta, encarando-a nos olhos. Era extremamente estranho falar sobre aquilo, dizer aquelas palavras em voz alta. - Estresse pós-traumático.

Ela fechou a boca e se recostou na maca sem saber o que dizer em seguida. Era por isso que eu não discutia sobre, ninguém quer realmente te forçar a falar sobre quando descobre o que é. Mas agora eu iria contar, eu iria contar toda a história.

-A história é muito longa. - Eu disse.

-Acredite em mim, eu não estou indo a lugar algum.

 

Flashback On

Era só mais uma gloriosa sexta-feira em São Paulo e eu não iria perder a oportunidade de sair de casa de modo algum. No dia seguinte teríamos algum tipo de avaliação geral na escola, mas quem se importava? Eu tinha coisas mais importantes para fazer e sentia que se não saísse naquela noite para me lembrar do porque a vida valia a pena, eu sequer iria levantar da cama no dia seguinte para fazer a avaliação.

Tanta coisa havia acontecido naquela semana e eu precisava tirá-las da minha cabeça. Se contasse direitinha dava um problema muito grande para cada dia da semana e a minha pretensão era fazer da sexta-feira o meu dia de libertação de todos eles.

Eu me arrumei, liguei pra galera e comecei a beber as cinco da tarde porque é assim que uma noite boa começa. Era algo normal, toda a escola fazia isso, as vezes, todo mundo tinha seus estresses para descarregar. A missão suicida na qual eu havia me colocado de ser uma excelente aluna, uma excelente pintora e uma excelente filha estava indo de mal a pior.

Mas existia uma coisa que eu não falhava nunca em fazer. Me divertir.

Achei companhias a altura. Não sabiam se tinham as mesmas razões que eu para fazer o que eu fazia, mas eu sabia que eles estavam lá. Na verdade, eu não sabia nada sobre eles porque pouco importava algo além do nome que eu usaria para colocar a conta das bebidas na balada. Eles também não se importavam com o meu.

Mas nós cantávamos juntos, Raça Negra quando dava três horas da manhã, a festa começava a diminuir seu ritmo e a gente se lembrava de quem não queria. A maioria deles choravam com os corações quebrados porque perderam mais um crush para alguém mais bonito ou mais rico. Eu chorava com o coração quebrado porque havia sido rejeitada também, mas não por algum lance passageiro.

Naquela sexta-feira eu estava no meu ápice de rejeição. Meu coração estava quebrado com tudo que era possível. Eu havia saído literalmente rejeitada pela escola de artes que eu passei a minha vida inteira desejando. Eu havia sido rejeitada pelo meu pai, com direito a um tapa na cara - o grand finale de Edgar. Eu havia sido rejeitada pela minha mãe e quem sou eu pra culpá-la, o grande fracasso que eu era.

Eu não tinha um plano que estivesse dando certo. Minha família era uma bagunça muito grande para que eu conseguisse me ajeitar olhando para eles, a escola era inconstante demais para que as minhas notas importassem de qualquer maneira. E a arte era pessoal demais para que desse certo. Minha arte era eu e ela iria onde eu fosse, eu não estava indo a lugar nenhum.

Portanto, eu era a minha última chance. Aquele era o meu último plano e ele tendia a funcionar como sempre funcionou nas outras e outras sexta-feiras. Eu ainda estava aperfeiçoando o final porque ser encotrada desacordada pela minha mãe no elevador não era o que eu chamaria de melhor final.

Adendo importante para o meu término de namoro glorioso naquela mesma semana. Eu estava realmente no auge da glória.

Então eu fui afogar as mágoas onde eu sempre terminava. Eu simplesmente saí como em todas as outras ocasiões, como em todas as noites antes daquela. E até onde eu consegui entender, aquela foi uma noite como todas as outras. Eu bebi, eu fumei, eu talvez coloquei coisas no meu braço que permanecem marcadas nele até hoje. E foi isso.

Eu não acordei no elevador naquela noite e como eu senti saudade da minha caixinha de ferro. Eu acordei na rua. De dia. Eu estava vestida, completamente vestida, mas não propriamente vestida.

Eu estava com o corpo de alguém que havia passado mais do que apenas uma noite fora de casa e isso me fez imaginar que a noite havia sido muito boa, havia a sido das noites. Era assim que uma noite boa terminava, não é mesmo?

Como era de se prever - e um clássico indicador de sucesso - eu não conseguia me lembrar de muito da noite anterior. As imagens que vinham na minha cabeça deixava claro que a festa era tão grande que precisou passar por mais de um lugar.

O sentimento de sucesso passou assim que eu tentei me levantar pela primeira vez. Eu tentei jogar meu corpo pra cima e falhei caindo miseravelmente contra a porta de um estabelecimento. Eu olhei ao redor e percebi que eu estava sozinha, fisicamente sozinha pela primeira vez em um certo tempo. Emocionalmente como em todas as ocasiões em um certo tempo. Percebi também que eu não tinha certeza de que aquelas roupas eram minhas. Eu não sabia onde estava e tinha certeza de que não era um lugar onde eu escolheria terminar ou começar a minha noite.

Um sentimento horrível de desespero me atingiu pela primeira vez em um certo tempo. Eu estava completamente sóbria, sentindo tudo e um pouco mais do que eu queria. Não era comum que aquilo acontecesse. Eu assisti inúmeras aulas bêbada nas semanas antes dessa, passei por várias situações que você se orgulharia de contar em um roda de amigos em uma festa, mas definitivamente não sorriria caso alguém contasse por você te difamando.

Eu não encontrei ninguém por duas horas. Tempo suficiente para que eu começasse a chorar e considerasse muito difícil para. Quem me encontrou foi o Anderson quando essas duas horas acabaram. Ele se aproximou de mim correndo e me carregou para casa, eu não fazia ideia do que ele estava falando e sentia meu corpo doer e rodar enquanto era carregada como se estivesse fazendo algum esforço real.

Foi aí que a minha amizade com o Anderson começou. Ele foi o primeiro anjo da minha história. Foi o primeiro a me salvar naquele dia e em alguns dias seguintes.

A parte do meu cerébro que ainda funcionava passou todo o caminho se perguntando o que a minha mãe diria quando me visse. Minha situação com a minha mãe ia de mal a pior e eu sabia que no fundo não poderia julgá-la. Eu não poderia julgar ninguém que quisesse se afastar do meu caminho.

Não era a primeira vez que aquela situação acontecia, mas talvez fosse a primeira em que eu seria incapaz de responder todas as suas perguntas. Em que eu era incapaz de responder as minhas próprias perguntas. A primeira vez que eu teria que admitir que não tinha mais o controle de nada. Porque mais assustador do que as respostas que eu geralmente tinha para aquelas perguntas, era não ter resposta alguma.

Mas quando eu cheguei em casa, minha mãe me abraçou. O abraço mais forte e confortável que eu já recebi na minha vida. Eu senti que meu corpo ia se despedaçar na mão daquela mulher. E eu comecei a chorar. Ela estava chorando descontroladamente, todo mundo chorava de modo descontrolado. Aquele abraço além de juntar tudo dentro de mim, ele me despedaçou completamente. Porque pela primeira vez eu percebi o quanto eu estava quebrando o mundo ao meu redor.

Aquele abraço colocou os pedaços na minha cabeça todos juntos e apesar de os pedaços que estavam na minha cabeça não serem a história toda, agora eu sabia mais coisa. Coisas horríveis. Eu sabia que eu não tinha saído daquela casa no dia anterior, sabia que eu havia passo três dias inteiros fora de casa.

Minha mão não sabia onde eu estava e eu não sabia também. E ninguém nunca soube.

Eu não fazia ideia de onde estava meu telefone, de quem eram aquelas roupas, de onde eu havia saído de casa ou de como eu havia ido parar onde eu acordei. Eu não sabia onde eu havia passado esses três dias e três noites.

Fizemos o que queríamos e não queríamos para descobrir. Eu passei mais três dias sem ter contato com ninguém porque eu desaprendi a falar. Eu não sabia o que dizer, eu estava me corroendo por dentro. Um misto de vergonha e desespero. De incompetência por ter me metido naquela história e não conseguir nem me lembrar de como ela havia acabado.

Nós fomos ao hospital, fomos a polícia. Fizemos exames. Descobrimos coisas. Descobrimos coisas que fizeram a anemia aguda gerada pela minha dieta a base de álcool, parecer coisa pequena. Descobrimos que coisas aconteceram durante aqueles dias, marcas que não iriam embora do meu corpo em momento algum da minha vida provavelmente.

E eu não tinha o que fazer com isso.

Eu fui agredida, eui fui usada e várias outras possibilidades e eu não podia confirmar nada com certeza porque a minha cabeça estava tão cheia de droga que eu não lembrava o que aconteceu.

Flashback off

 

-E eu ainda não lembro Samantha. Eu só sei que eu não consigo dormir as vezes, que toda vez que eu fico extremamente raivosa ou triste eu tenho muito medo de tocar em qualquer coisa. Eu morro de medo de chegar perto desse estado novamente. Se é que um dia eu saí dele. - Eu engoli em seco respirando fundo. - Meu trauma é causado por medo de uma memória que eu não tenho. Eu tomo remédios para ansiedade para diminuir os sintomas do estresse pós-traumático e isso é a única coisa que eu posso fazer. Porque eu não tenho como curar um trauma que eu nem me lembro de ter tido.

I can’t destroy what isn’t there

Eu não sabia que estava de olhos fechados, até que eu os abri de repente. Também não sabia que estava segurando a respiração, até que eu respirei fundo e tudo se quebrou, me colocando em choro completo. Eu me entreguei porque sabia que era inútil tentar lutar contra aquelas lágrimas. Elas estava lutando pra sair há mais tempo do que eu estava lutando para retê-las. Em todo os momentos que eu me lembrava daquilo, que algo me lembrava daquele assunto, elas emergiam, mas eu rapidamente as parava.

Hoje eu não iria parar nada.

Percebi que Samantha estava na minha frente. Eu ergui a cabeça, parando de encarar meus dedos e vi seus olhos castanhos marejados me encarando. Ela nem sequer deveria estar de pé, mas ela estava, inclinada na minha direção quase a minha altura.

Ela estava chorando. Ela não queria, provavelmente imaginava que não fosse de muita ajuda ter ela chorando comigo. Nossos choros eram completamente diferentes, o dela era algo contido e triste, o meu era algo perturbador e desesperado.

Ela se sentou no braço da cadeira ao meu lado e colocou as mãos nos meus ombros, lentamente me puxando para um abraço. Eu senti minha cabeça encostar sobre o seu peito que subia e descia tão violentamente quanto o meu corpo soluçava e fiquei ali. Eu envolvi sua cintura com os meus braços, mesmo que sem jeito, porque ela queria que eu a abraçasse. E eu queria muito abraçá-la.

Eu queria abraçá-la para agradecer. Eu queria a abraçar mesmo que essa fosse a última coisa que eu gostava de fazer quando estava chorando, eu preferia me isolar. Eu a abracei porque ela me olhava nos olhos naquele momento, mesmo depois de ouvir tudo aquilo, assim como ela me olhou em todos os outros dias. Porque ela não me fazia sentir insegura ou fraca em contar aquelas coisas. Eu a abracei porque eu havia acabado de lhe contar o que eu não contei pra quase ninguém, de lhe contar coisas que eu sabia sobre mim e todo mundo tinha medo de admitir, que ninguém me contaria. E ela não sentiu medo. Ela não me olhou estranho. Eu a abracei porque ela viu o que vivia dentro de mim e atrás de mim de muito perto e ao invés de correr de mim, ela caminhou até mim. Ao invés de dar as costas, ela abriu os braços.

Antes mesmo de de sequer dizer algo que ela achava que eu precisava escutar no momento ou que todo mundo deveria dizer em situações como aqueles. Eu a abracei porque ela me abraçou. Porque ela não me fez querer ser outra pessoa. Porque eu me achei nos braços dela.

Angel lies to keep control​

 


Notas Finais


Vamos conversar :)


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