Com os olhos fechados, Julieta esperou. O homem, que notou que ela estava tensa demais para reagir e entendia que de nada valia lutar, a soltou e posicionou-se em sua frente, deliciando-se com o terror em seu rosto.
- Julieta, Julieta – ele sussurrou, com um sorriso sádico, enquanto seus dedos sujos alisavam o rosto branco da mulher em pânico, com deboche e provocação. Julieta, sentindo que as náuseas tornavam-se cada vez mais fortes, prendeu o ar e manteve-se imóvel.
- Como um velho como Osório pôde conseguir uma mulher como você?
Julieta engoliu em seco. Quando sentiu que os dedos do homem afastavam-se de seu rosto, entreabriu os olhos devagar, amedrontada com o que podia encontrar. Ele, ao notar que ela o encarava, sorriu abertamente e tirou a máscara cor de pele que tapava seu rosto. Julieta não precisava vê-lo para saber que se tratava do mesmo homem que a ameaçara meses antes, mas, diante do sorriso assustador e amarelado daquele homem tão maior que ela, seu corpo tremeu.
- Acalme-se – ele disse com paciência. – Prometo que serei rápido.
Ao dizer isso, enfiou a mão por dentro da calça e tirou de lá uma pistola prata, muito brilhante e polida.
Como se seu corpo deixasse de lhe pertencer, Julieta encarou o objeto com uma sobriedade fora do normal e, respirando fundo, ergueu o queixo para encará-lo. Soube, naquele instante, que seria inútil lutar. Deveria ser corajosa e enfrentar o seu destino, seja ele qual fosse.
Com uma lágrima silenciosa, ela segurou o próprio ventre. Seu corpo pulsava em um desespero que deveria ser imoral, proibido, renegado. Enquanto o homem posicionava-se em sua frente, segurando a pistola com uma das mãos, sem deixar de encará-la com um olhar de triunfo, Julieta pensou no filho. Sentiu dor, uma dor física insuportável ao constatar que nunca chegaria a ver os olhos da criança, seu rosto, seus cabelos. Nunca chegaria a tocar suas mãos pequenas e sentir seu hálito infantil. Com a garganta doendo, ela se rendeu a um choro resignado, quieto. As lágrimas escorriam, seus lábios tremiam, uma vermelhidão a tomava por completo. No entanto, seus olhos, que lutavam para manter-se abertos e fixos no carrasco que havia decidido seu fim, continuavam firmes, fortes, desafiadores e intensos como nunca antes.
- É uma pena... – ele disse. – Eu nunca matei uma criança antes.
Julieta ergueu o queixo trêmulo e entreabriu os lábios. Quis gritar, chamá-lo de covarde, condená-lo à mesma prisão mental na qual se encontrava. Mas nenhuma voz saiu.
- Eu poderia te dar um momento de prazer antes... – ele sussurrou com malícia, passando a língua pelos lábios enquanto a examinava longamente. – Você merecia ao menos isso depois de aguentar aquele velho por tantos anos. E não seria nenhum sacrifício para mim. – Ele riu, com os olhos saltando. – No entanto, sinto desapontá-la, mas não me sentiria confortável. Acho que seria despeitoso... Com a criança, quero dizer.
Aquele discurso a deixou tão enjoada que ela fez uma careta, que o homem não ignorou e riu com vontade.
- Não é pessoal, querida – ele provocou, preparando a arma para o disparo. Julieta ouviu um pequeno estalo e, logo em seguida, ele a apontou para o seu rosto. – Tampouco isso é. Mas seu marido precisa de uma lição. Ele merece uma lição.
Julieta encarou a arma com certa simpatia. A sensação que a tomava era tão estranha que ela jamais seria capaz de descrevê-la. Sentia-se leve, apesar de tão terrivelmente devastada. Sentia-se em paz, apesar de tão absolutamente apavorada. A arma, apontada para o seu rosto, seria responsável por tudo o que ela fizera e, principalmente, por tudo o que nunca chegara a realizar. Aquele objeto, tão pequeno e insignificante, seria o divisor entre suas tantas e múltiplas facetas, suas dores, suas alegrias, seus sonhos e pesadelos. Seria ele, e só ele, a terminar tudo. Ou talvez começar. Ela não sabia. E nem era o momento para reflexões filosóficas. Sua mente se tornou vazia e, fechando os olhos, aceitou o seu destino. Aceitou que nada havia a ser feito. Aceitou que havia sido condenada. Aceitou que partiria com o filho, que, mesmo tão inocente, pagava pelos seus erros.
Com a garganta dolorida, o rosto molhado e os olhos, finalmente, cerrados, ela respirou fundo, erguendo a cabeça, como se dissesse “estou pronta”. Quase pôde ouvir a pele do homem roçando o metal de forma a apertar o gatilho. Quase pôde ouvir seu suspiro sádico, satisfeito e triunfante, contente por ter vencido a batalha.
Ao dar o que achou que seria seu último suspiro, Julieta ouviu um barulho alto, misturando-se com passos na mata. Um outro barulho, seguido de um gemido de dor, a fez abrir os olhos com susto.
Ao encarar Aurélio, seu coração, que parecia finalmente ter entendido o que acontecia, deu um salto tão grande, que ela soltou um grito quase inaudível. Levando as mãos até o peito, encarou o homem caído no chão, com a arma do lado, depois de ter recebido uma pancada. Aurélio ainda segurava um pedaço de madeira muito grande e a encarava com um medo paralisador e real.
- Aurélio... – ela sussurrou.
Parecendo ter despertado, Aurélio soltou a madeira, que caiu ao chão e fez um barulho que ele não ouviu. Correndo até ela, ele a abraçou contra o próprio corpo com tanta força, que Julieta sentiu, por alguns segundos, que sua alma voltava depois dos minutos em que se encontrou ausente. As lágrimas que rolaram por sua face foram de desespero, medo, alívio, gratidão e tudo o que havia em si. Seus braços apertaram Aurélio contra si, deixando-se fundir no desespero dele, no corpo dele, na proteção, no carinho tão genuíno que ele lhe oferecia.
Quando os corpos se separaram, Aurélio segurou o rosto de Julieta entre as mãos. Ela viu, em seus olhos vermelhos, um pavor tão intenso e gritante, que tentou sorrir para acalmá-lo.
- Estou bem. Estou bem, Aurélio.
Com a respiração rápida, ele beijou a testa de Julieta, que suspirou, apertando os braços dele com as mãos trêmulas.
Alisando os cabelos da mulher, ele beijou seu rosto tantas vezes, que ela sorriu. Ele sentia o gosto salgado das lágrimas de Julieta entre os lábios, mas não se importou. Estava tão aliviado de que ela estivesse bem, que não se conteve em abraçá-la outra vez e depois outra, apertando-a contra si, enquanto tocava seus cabelos, secava suas lágrimas, beijava a ponta de seu nariz, alisava sua barriga, seus braços e suas bochechas.
- Precisamos sair daqui – ele disse, por fim.
- Sim. Sim. Por favor. Vamos sair daqui – ela pediu.
Ele assentiu e, virando-se, encarou o homem desacordado. Respirando fundo, se abaixou e tomou a pistola, caída ao chão, entre as próprias mãos. De forma automática, apontou-a para ele, sem saber ao certo o que pretendia.
- Não. Não, Aurélio – Julieta disse, trêmula, fazendo com que Aurélio abaixasse a arma em um suspiro desesperado. – Não. Você não é como ele.
Aurélio assentiu e fechou os olhos com força, enquanto sentia uma das mãos de Julieta apertar seus ombros com carinho.
Antes de se afastar, ele se abaixou, cavando um buraco na terra e jogando a pistola lá dentro. Depois, com rapidez, encheu-o com a terra que havia saído e, ao se levantar, jogou algumas folhas e mato por cima. Julieta o encarou com um sorriso grato.
Depois de vários minutos de uma caminhada tensa, Aurélio, com a respiração rápida demais e preocupado com o estado de Julieta, a fez parar. Olhando para os lados, ele procurou pela cabana abandonada, que sabia que ficava por ali. Puxou a mulher pela mão para mais alguns passos e, finalmente, viu a pequena construção ao longe. Julieta suspirou aliviada, cansada demais e sentindo as pernas latejarem. Aurélio a fez caminhar até lá e, depois de empurrar a porta com certa força, ela se abriu e ele fez Julieta entrar.
Ainda confusa com o que seria exatamente aquele lugar, Julieta examinou à volta. Era uma casinha de madeira muito pequena, com apenas dois cômodos. Havia muito pó e ela tossiu quando Aurélio estendeu a jaqueta, que tirou do corpo, num sofá velho e encostado na parede, e fez com que uma poeira densa pairasse no ar.
Depois de se sentar, agradecendo em silêncio pela gentileza, ela respirou fundo, passando a mão pelo rosto, limpando o suor que ainda estava em sua pele. Aurélio, atento, estendeu-lhe a garrafa de água que trazia consigo e, ao abrir os olhos, Julieta sorriu em agradecimento.
- Como você está? – ele perguntou, também se sentando.
- Estou bem, Aurélio – ela respondeu, depois de beber. – Está tudo bem agora.
- Ah, Julieta... – ele sussurrou, apertando a mão que ela pousara sobre o sofá. – Eu não sei o que seria... Não sei o que faria se aquele homem tivesse... Oh, meu Deus.
Sentindo que precisava acalmá-lo e consolá-lo, ela quebrou a distância entre eles e tomou o rosto de Aurélio entre as mãos com carinho.
- Não fique assim.
- Eu não deveria tê-la deixado sozinha.
- Eu fui irresponsável – ela admitiu, sentindo o hálito quente dele tocar-lhe o rosto. – Sinto muito. Eu não deveria ser tão teimosa. Eu não sei o que estava pensando...
Com cuidado, Aurélio repetiu o gesto da mulher, tocando seu rosto com carinho, desespero e algo mais. Ela sorriu ao sentir os dedos quentes de Aurélio alisando sua pele e fechou os olhos.
- Eu nunca me perdoaria se algo acontecesse.
- Eu sei. É o seu trabalho.
- Não – ele rebateu com firmeza, sem deixar de encará-la. – Não estou falando do meu trabalho. Estou falando de mim, de você. De nós.
Engolindo em seco, Julieta sentiu que uma corrente elétrica muito forte passeava por todo o seu corpo. O olhar de Aurélio, tão ardentemente insistente, a deixou fraca, mas, ao mesmo tempo, tão munida de uma coragem improvável, mas impressionante, que ela fechou os olhos. Dessa vez, não esperou que ele acatasse o convite. Dessa vez, ela aproximou seu rosto do dele e tomou seus lábios com calma.
Aurélio, surpreso demais para reagir, só se moveu quando sentiu que ela tentava entreabrir seus lábios com a língua tímida e, soltando um gemido rouco, a trouxe para si, permitindo que ela explorasse sua boca com curiosidade, timidez e paixão.
Julieta o puxou para si, abraçando-o fortemente. Sentiu que sua barriga era esmagada pelo corpo firme de Aurélio, mas não se incomodou. O calor crescente a deixou ousada o suficiente para entrelaçar os dedos nos cabelos grisalhos de Aurélio, que fez suas mãos passearam pelas costas quentes de Julieta com paixão, desejo e ternura. As línguas dançavam em sintonia na boca do outro, encontrando-se em calor. Aurélio a ouvia suspirar, soltar leves e baixos gemidos prazerosos e repetia os gestos que ela fazia com uma desenvoltura que o impressionou.
Quando os corpos já quase explodiam de um desejo cortante, que crescia a cada segundo, Julieta separou suas bocas. Ela apertou os olhos, suspirando com força. Aurélio leu o arrependimento em seus movimentos, mesmo que ela ainda continuasse tão dolorosamente próxima e ele e ainda lhe tocasse as costas.
- Sinto muito – ela disse. – Eu não... Não sei o que me deu.
Aurélio conteve um sorriso.
- Pelo menos você não me culpou dessa vez.
Julieta corou e tentou se afastar, mas ele não permitiu, segurando sua cintura com delicadeza.
- Não se desculpe. Não por isso.
Julieta mordeu o lábio inferior, segurando o ar dentro dos pulmões. Aurélio sorria com os lábios vermelhos, que pareciam ainda mais convidativos.
Notando aquele olhar atento, ele se aproximou. Prevendo que voltaria a se render, Julieta se afastou, dessa vez de forma enérgica, levantando as duas mãos em frente ao rosto.
- Não. Não, Aurélio.
Ele a viu se levantar e suspirou. Julieta passou as mãos pelo rosto, sentindo-se confusa e tensa. Havia vivido tanta coisa naquele dia, que seu corpo começava a sentir o impacto.
- Eu preciso ir embora – ela disse com agitação.
Ele se adiantou até ela, segurando seu pulso com carinho. Julieta voltou a encará-lo.
- Acalme-se um pouco antes. Descanse.
- Eu estou bem.
- Julieta...
Ela fechou os olhos com força.
- Você precisa ir embora – ela disse.
Aurélio entendeu ao que ela se referia. Entendeu seu pedido. Entendeu seu temor de que ele continuasse próximo. Mesmo que lisonjeado de saber que ela se sentia tão confusa quanto ele, uma frustração horrível tomou seu ser diante da possibilidade de se afastar.
- Julieta...
- Você precisa. Isso... Isso não pode se repetir.
Aurélio assentiu. Sabia, tanto quanto ela, que se continuasse ali, as coisas se complicariam ainda mais. No entanto, mesmo que entendesse tudo o que aquilo significava, ele desejou a complicação.
- Eu sei – ele disse.
- Bom – ela sussurrou, encarando os lábios entreabertos de Aurélio, que emanava um perfume doce e intenso que a deixou embriagada. – Vamos. Por favor.
- Está certo, Julieta. Vamos.
Respirando fundo, ele se adiantou em sua frente. Apesar de a fazenda estar próxima, Aurélio pensou em insistir para que esperassem até que clareasse. Seria mais seguro e prudente do que se embrenharem na mata outra vez. Mas sabia que Julieta não aceitaria, assim como não sabia como ele próprio reagiria diante daquela proximidade dolorosa. Assim, examinou cautelosamente o exterior antes de permitir que ela saísse e, durante a curta caminhada até a fazenda, precisou se conter para não tomá-la nos braços e esquecer todas as complicações de suas vidas.
Muitos usuários deixam de postar por falta de comentários, estimule o trabalho deles, deixando um comentário.
Para comentar e incentivar o autor, Cadastre-se ou Acesse sua Conta.