Julieta soltou o papel das mãos trêmulas e o observou cair sobre a mesa com os olhos vidrados de um pânico conhecido e arrebatador. Não precisava ler o que aquela carta trazia, a caligrafia já lhe deixava imersa em uma tensão tão absurda e crescente, que precisou respirar fundo três vezes antes de retomar o papel entre as mãos úmidas e esforçar-se para que seus olhos percorressem as curtas linhas sem deixar que o pânico a tomasse por completo.
Cara Julieta,
A viagem me saiu mais produtiva do que o esperado. Somos donos de mais duas fazendas em Minas, uma delas própria para o plantio de café, outra adequada para a pecuária. O clima aqui é terrível.
Espero que tudo esteja em ordem na propriedade. Estarei em casa em breve.
Osório Bittencourt.
Julieta arfou, engolindo em seco e dobrando, em vários pedaços, o papel já meio sujo e amassado da viagem. A lembrança da volta iminente do marido fez com que seus pés, flutuantes em uma nuvem de paz e calmaria, fossem colocados no chão de concreto e uma frustração, mesclada ao desespero de tal constatação, fez com que sua garganta secasse de forma quase insuportável.
Guardando a carta na primeira gaveta da escrivaninha, ela se levantou, esfregando o rosto e pescoço com nervosismo. Caminhou até a cozinha vazia e escura em busca de se refrescar, mas, mesmo que tivesse enchido as mãos fechadas com água da torneira e a jogado na face, ainda se sentia quente, suada e trêmula. Odiava aquele lembrete silencioso e sutil. Odiava que isso fizesse tanto o perfil do marido. Ele adorava aterrorizá-la, assombrá-la e assustá-la, mesmo quando estava longe como agora.
Soltando o ar, Julieta escondeu o rosto entre as mãos, sufocando as lágrimas que não se permitiu libertar.
Mesmo que soubesse que a volta do marido se aproximava, sentiu um calafrio insistente percorrer todo seu corpo e seu peito se apertou de forma que teve dificuldade de respirar. Enquanto saía ao jardim, em busca de ar, alisando o próprio ventre e tentando acalmar os pensamentos aglomerados, se amaldiçoava pelo descontrole. Havia vivido anos com aquele homem, havia se habituado a todos os percalços daquele casamento, havia aprendido a agir, a reagir de forma adequada, a sorrir quando necessário e a sentir as dores inevitáveis daquela relação. Ele já tinha viajado outras vezes, já havia passado meses distante e quando voltava, as coisas não lhe pareciam mais assustadoras, eram apenas iguais, parte de uma rotina que ela mesma escolhera, tantos anos antes. Por que agora era diferente? Por que agora a abraçava um desespero tão insuportável e se sentia incapaz de enfrentar tudo de novo aquilo que sabia ser parte da sua realidade?
Com um suspiro cambaleante, Julieta fechou os olhos. É claro que era por causa do filho. Uma criança... Não seria só ela a lidar com os desmandos do marido, mas também, agora, uma criança. Uma criança que nunca havia feito as escolhas que ela uma vez fizera, uma criança inocente que não merecia carregar aquela culpa e aquele fardo. Além disso, é claro, havia...
Ela parou.
Não quis pensar nele. Não quis dizer mentalmente seu nome depois daquele rompimento simbólico. Aurélio. Aurélio havia se afastado.
Nos últimos dias, mal o viu e, quando se cruzaram no jardim uma tarde, ele a cumprimentou de forma tão formal e silenciosa, que ela decidiu que não sairia mais de casa. No entanto, enquanto caminhava decidida e arfante em direção ao estábulo, desejou, com todas as suas forças, que ele cruzasse magicamente o seu caminho e lhe sorrisse da forma como fazia antes, afastasse aquele silêncio doloroso e indiferente e a enxergasse como só ele soube fazer.
Enquanto adentrava as cercas fechadas e pequenas que separavam as baias onde os animais se alojavam, Julieta ouviu um barulho na parte de trás, que não cessou quando ela silenciou os seus passos e levou uma das mãos até o peito. Já era muito tarde e não havia empregados lá fora, além dos seguranças que tomavam conta da fazenda durante a noite. Imediatamente, foi tomada pelo mesmo pânico que sentiu na noite em que aquele homem horrível a emboscara no meio da mata, e, pálida, ficou imóvel, prevendo um novo ataque. No entanto, como se seu pedido mágico fosse acatado, quem apareceu, não foi o desconhecido sádico e cruel que lhe apontara uma arma, mas sim, Aurélio, que, com um olhar de curiosidade e susto, esperou que ela falasse.
- O que você está fazendo aqui? – ela perguntou com a voz vacilante, numa mistura de alívio, medo, surpresa e contentamento.
- Eu que deveria perguntar – Aurélio replicou, igualmente surpreso.
- Eu... Eu... Precisava caminhar. Precisava de ar.
Ele, esforçando-se para parecer tão indiferente quanto antes, deu de ombros e se virou.
- Só tome cuidado. E não saia da propriedade.
Julieta o viu voltar pelo caminho de onde viera e foi tomada, subitamente, por uma frustração que a deixou tão exasperada, que sua voz surgiu mais alta do que previra:
- Você não deveria estar dormindo?
Com calma, ele se virou e, ao encará-la, ergueu uma das sobrancelhas.
- Eu estava. Até você me acordar – ele disse.
Sem entender, Julieta caminhou até ele e, ao encarar o estábulo para onde Aurélio ia, franziu a testa.
- Você está dormindo... Aqui? – ela perguntou, apontando para um amontoado de feno.
Aurélio deu de ombros e, sem responder, deitou-se na cama improvisada e aparentemente confortável. Apoiando a cabeça com os dois braços cruzados, ele a observou placidamente.
- O que há de errado com o seu quarto? – ela perguntou, disfarçando a sensação que experimentou ao vê-lo deitado em sua frente, tão à vontade e tão...
- Eu prefiro dormir ao ar livre – ele disse, cortando rapidamente seus pensamentos mais íntimos.
Julieta examinou o lugar com cautela, desesperada para desviar o olhar do homem em sua frente, que lhe provocava as mais intensas e inimagináveis sensações.
O estábulo ficava no final do longo corredor onde estavam localizadas as baias. Suas paredes de madeira tinham vãos largos por onde se via o vasto pasto da propriedade e deixava entrar um vento agradável, e o cheiro inconfundível dos cavalos que, algumas vezes, ficavam ali durante o dia, lhe pareceu estranhamente prazeroso. O feno, espalhado pelo lugar, deixava o chão macio, como se fosse um bonito tapete natural, e uma enorme janela estava aberta, de onde se podia ver a lua cheia e brilhante, que iluminava abundantemente a escuridão.
Julieta soltou o ar muito lentamente e, notou, com perplexa desconfiança, como relaxava, de forma quase inexplicável, depois de toda a tensão que aquela carta lhe provocara.
- Eu também gosto do ar livre – ela sussurrou.
Curioso, Aurélio se sentou, sem saber ao certo o que deveria responder. Sabia, intimamente, que deveria manter-se afastado e o mais inacessível possível, mas, o olhar de Julieta, tão terno, que parecia pedir socorro, o desarmou e ele se deixou sorrir. Foi o primeiro sorriso que lhe ofereceu em dias e Julieta sentiu seu corpo estremecer.
- Osório mandou uma carta – Julieta disse. Só notou o que havia dito, quando ouviu a própria voz proferindo aquela confissão íntima e inesperada. Sentiu-se corar, mas soube que era tarde demais para voltar atrás. Diante do olhar curioso de Aurélio, ela suspirou e deu de ombros, cruzando os braços em frente ao peito. – Ele disse que voltará em breve.
- Isso... É bom? – Aurélio perguntou, ainda sem entender.
Com uma cuidadosa ousadia, Julieta se aproximou, tocando um monte de palha com os dedos, enquanto observava o lugar onde Aurélio continuava sentado e a encarava com atenção.
- Eu não sei como agir – ela disse. – Isso tudo é tão novo. O meu estado, esse bebê. – Ela fez silêncio e, ao encará-lo, sentiu-se tremer. – Nós.
Aurélio entendeu. Entendeu seu receio, seu desespero, sua vergonha, sua culpa. Entendeu que a volta de Osório, seu marido, traria à tona, inevitavelmente, tudo aquilo que enterraram dias antes, de forma tão displicente e desajeitada. Levantando-se, ele suspirou.
- Nós nos deixamos para trás, não foi?
Julieta levantou o rosto para encará-lo. Ele estava tão perto que pôde sentir o cheiro de seus cabelos.
- Sim – ela respondeu de forma arrastada.
Próximo de Julieta, ele achou notar algo mais do que culpa em seus olhos escuros. Tentou, demoradamente, decifrar o tremor de seus lábios, mas, a cada conclusão repentina, suspirava, fechava os olhos, espremia os lábios, lutava contra o desejo de tocá-la.
Quando aquele silêncio prolongado ficou difícil de suportar, ele soltou o ar, dando mais um passo na direção da mulher, que, suspirou lentamente, como se previsse o que aconteceria.
- Esses são os únicos motivos pelos quais se sente insegura com a volta de seu marido?
Como se recebesse um balde de água fria no lugar do toque quente que esperava, Julieta estreitou os olhos, aumentando a curta distância que se formara.
- Do que você está falando?
Aurélio esfregou as pálpebras, num misto de culpa e medo. Culpa por sugerir algo tão inapropriado e medo de, afinal, estar certo.
- Osório é bom para você, Julieta?
Virando o rosto, Julieta encenou a mais ofendida das expressões. Como se estivesse incrédula, deu-lhe as costas, soltando o ar com irritação. Quando deu os primeiros passos para afastar-se, Aurélio segurou seu braço com uma delicadeza que a fez fechar os olhos com força, antes de encará-lo.
- Por que você fica assim, sempre na defensiva, quando pergunto sobre seu marido?
- Porque você não tem esse direito.
- Eu sei.
Ela levantou o olhar já úmido. Ele suspirou.
- Ele é? – Aurélio insistiu.
- Sim. Osório é bom.
Aurélio assentiu, soltando o braço que segurava. Julieta umedeceu os lábios.
- Mas eu não entendo o súbito interesse. Você sequer se importa? – ela perguntou com uma provocação que não pôde evitar, cruzando os braços, numa tentativa de se manter afastada, mesmo que ela mesma tentasse trazê-lo para perto com aquele questionamento.
- É claro que sim, Julieta – Aurélio disse, se rendendo.
- Não me pareceu naquela tarde – ela provocou. – Você me implorou para ficar porque precisava do dinheiro. E é irônico, porque, dias antes, foi você mesmo quem pediu para ir, se dizendo incapaz de permanecer aqui, comigo. – Julieta sorriu cética. – Eu sou sua patroa, Aurélio. Você não precisa me ludibriar com contos rasos ou seduções baratas. O que achava? Que eu poderia aumentar seu soldo se pensasse que você nutria algum afeto por mim? Bastava ter me pedido, se acreditasse merecer mais dinheiro.
Com um olhar duro, Aurélio a encarou por longos minutos. Julieta sentiu-se zonza diante daqueles olhos quase ameaçadores, que se ofenderam assim que ela proferiu aquelas palavras. Apesar de satisfeita, sentiu-se intimidada demais e se arrependeu da provocação.
- Não importa – ela disse, com um sorriso forçado. Virando-se, se preparou para deixá-lo tão só como o havia encontrado, quando sentiu que as mãos dele seguravam seus braços novamente. Ela tremeu.
- Eu não me importo com seu dinheiro, apesar de, sim, precisar dele – Aurélio disse. Ela continuava de costas e aquela voz, baixa e rouca, saiu muito próxima de seu ouvido e ela que sentiu que suas pernas amoleciam. Achou que seria mais prudente voltar a encará-lo e quebrar aquela distância tão curta e, ao notar que ela tinha as bochechas vermelhas, Aurélio quase sorriu. – Eu preciso porque tenho minhas obrigações. Mas eu poderia e preferia que ele viesse de outro lugar. Daria tudo para não precisar ficar aqui, Julieta, ao seu lado, ao lado de tudo o que sinto, de tudo o que você me provoca.
Julieta tremeu diante daquela confissão e, engolindo em seco, tentou se afastar, mas suas pernas bambas com o carinho que Aurélio lhe fazia nos braços dificultaram o movimento.
- Então... Então... Por que... Por que você continua aqui? – ela perguntou, com a voz fraca.
- Porque eu não posso deixá-la assim. Você não entende? Eu morreria se algo acontecesse. Eu nunca me perdoaria se você ou seu filho se machucassem.
Julieta abaixou o rosto, sentindo que uma queimação generalizada a tomava.
- Aurélio...
- Mas não quero que se preocupe – ele disse, afastando-se súbita e dolorosamente. – Eu manterei minha promessa. Ficarei longe, não permitirei que isso que sinto te deixe desconfortável de forma alguma.
Julieta respirou fundo, encarando-o com uma alegria contida, quase explosiva. Foi tomada, mesmo que não quisesse, por um alívio arrebatador e intenso, ao constatar que, afinal, ele não lhe era indiferente. Que ele havia sido sincero antes. Que ele não havia se afastado porque não se importava.
Mesmo que aquilo fosse tão descabido e absurdo e tornasse tudo ainda mais complicado, ela não tentou abafar um tímido sorriso.
- Posso ficar aqui essa noite? – ela perguntou.
Surpreso, Aurélio prendeu o ar. O sorriso de Julieta, tão bonito, que ele passara a apreciar de forma quase devota, o fez sentir uma pulsação arrebatadora em todo o corpo. Ainda se perguntou duas ou três vezes se havia entendido o que ela dizia e o que o seu olhar brilhante parecia confirmar, antes de, com uma expressão compenetrada e única, estender uma das mãos para que ela a tomasse. Ele a fez caminhar com lentidão em direção ao amontoado de feno e sorriu quando ela se sentou, soltando um suspiro de prazer e surpresa diante da forma tão leve e natural com que se comportava.
Aurélio esperou que ela se deitasse, para fazer o mesmo.
Encarando-o, Julieta, tomada por uma coragem inexplicável, mas orgulhosa, puxou uma das mãos de Aurélio para entrelaçar com a sua e a apertou com uma ternura assombrosa. Aurélio sorriu. Ela devolveu o sorriso. Ainda sentia o hálito quente e singular tocando seu rosto e, com suavidade, deixou com que seus olhos se fechassem. Aurélio só fez o mesmo longos minutos depois, quando Julieta já havia adormecido e ele se sentia capaz de descrever cada detalhe daquele rosto harmônico e inconfundível de cor quantas vezes fossem necessárias. Antes de finalmente desabar em um sono profundo e agradável, rezou para que aquela noite durasse duas eternidades.
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