O AMOR NÃO FALHA
Mikoto pensou em ir bater na porta do quarto do filho mais velho, mas desistiu quando ouviu as passadas dele descendo as escadas. Estava bem escuro do lado de fora, de modo que todo o andar de baixo tinha as luzes acessas, ela colocou um sorriso largo no rosto ao ver Itachi, mal podia se agüentar de tanta alegria, seria a ultima quimio do filho, depois de 8 meses daquela tortura, finalmente tudo ia acabar; Os médicos tinham em vista um bom prognóstico depois que uma nova cirurgia fosse feita, esperavam que essa próxima operação lhes desse mais tempo, mas o câncer é uma doença traiçoeira.
Dois anos atrás Itachi era um adolescente sadio, esperto, com um futuro inteiro pela frente e agora – sete neurocirurgias depois, duas rodadas completas de quimio – ele estava magérrimo, com dificuldades cognitivas, sabendo que a cada nova consulta seus dias contados eram menos do que o suficiente para despedir-se da existência que mal teve a chance de viver.
– Bom dia, meu bem.
– Pom tia – respondeu, ele sabia que tinha dito errado, abriu a boca várias vezes, procurando a forma certa para falar o que queria, mas a resposta correta demorou até ser processada – Pom-Bom-Bom di-ia.
Mikoto tinha aprendido a esconder bem quando algo afligia seu coração, ela inspirou fundo, fazendo um baita esforço para manter o sorriso no rosto, ver seu garoto definhando era a pior dor que já sentiu na vida. Nenhuma mãe deveria assistir seus filhos morrendo.
– Eu... – Ela foi até o pé da escada e amparou o corpo do filho, Itachi era bem mais alto, mas pesava o mesmo de quando tinha 12 anos de idade, foi acompanhando o filho em sua lentidão até os limites da cozinha, certificando-se que ele estava devidamente sentado para então poder ir acomodar-se na cadeira a sua frente. – Fiz as panquecas que você gosta e cookies.
Itachi encarou a mesa redonda, haviam frutas cortadas, uma jarra de suco suando de tão gelada, xícaras caso ele quisesse tomar algo quente, torradinhas, geléias de vários sabores... Não tinha vontade de nada daquilo, assim que recebesse a quimio, ia colocar tudo o que ingerisse violentamente para fora.
– Precisa comer, meu bem.
Ele fez que sim, puxando uma torrada e enchendo-a com uma geléia qualquer. O ato de mastigar também era algo do qual ele tinha dificuldade, passou um longo tempo ruminando o pedacinho que tinha mordido, encarando a mesa para não ter de ver o olhar pesaroso de sua mãe sob si. Era um misto de mágoa e pena, odiava aquele olhar das pessoas, mas era o que mais havia recebido desde que teve o diagnostico e toda vez que saia de casa sem o gorro cobrindo sua careca, também via como as pessoas que cruzavam seu caminho o olhavam com dó.
Seu entrou na cozinha, ele beijou o topo da cabeça do filho e depois selou os lábios aos da esposa, os dois tinham passado pela mesma escola de imitação sobre estar tudo bem.
– Pom dia, pai.
– Bom dia, bom dia! O cheiro está chegando lá em cima, querida. – Disse, arrancando um meio sorriso da esposa e puxando para seu prato duas panquecas, pretendia fatiar uma banana ali e colocar uma quantidade absurda de mel – O que acha de uma panqueca, filho?
O filho não queria, não. Estava incomodado com a letra B que não queria sair.
– Pom. Pom. Bom. Pom.
Fugaku buscou com os olhos a esposa e essa fez um sinal para que ele deixasse pra lá, ele então se ateve a rechear suas panquecas, ao final, cortou a ponta de uma, colocando em um prato adjacente e empurrando na direção do filho, houve uma época em que Itachi não negava nada do que era doce, sua mãe regulava a compra de geléias por saber que o filho tinha capacidade para acabar com um frasco em um único dia, mas agora o que ela mais comprava no mercado eram geléias de todas as frutas que pudesse encontrar; às vezes algumas chegavam até a estragar dentro da geladeira, a primeira coisa a esvair-se em Itachi tinha sido a vontade de consumir qualquer alimento.
– Oprigado. Pri. Pri. Bri.
– Está difícil de falar hoje, Itachi?
O rapaz confirmou, coçando a cabeça, ele tirou o gorro procurando na parte interna o que o estava pinicando, era um fio comprido de nylon que ele não conseguia remover com um puxão. A mãe, sempre muito prestativa, tomou-o das mãos do filho, arrancando ela mesma o fio, Mikoto sentia seu coração apertar toda vez que encarava o couro cabeludo liso.
Itachi teve os cabelos compridos, agora não restava nada, só as cicatrizes das cirurgia passadas. Até mesmo a circunferência era diferente, abaulada e de certa forma, incomoda aos olhos. Ela devolveu-lhe o gorro, cobrindo a careca do filho e Fugaku o ajudou a cobrir as orelhas.
– Eu com-consigo fazer... – Itachi resmungou, arrependendo-se depois de dizer. Quando a morte se torna sua amiga e passa a caminhar de mãos dadas a alguém, o amadurecimento segura a outra mão livre. Seus pais não tinham controle sobre nada em relação a sua doença, então qualquer pequeno gesto era a forma que os dois encontraram de se sentirem úteis. – Oprigado.
– Mais tarde você vai conseguir falar melhor, filho.
Ia? Depois do meio dia ele tinha um desempenho melhor, provavelmente porque a grande quantidade de remédios que tomava ia perdendo o efeito por volta do horário do almoço. Ele poderia se sentir menos letárgico, verdade, mas aquilo era só mais um sinal de que seu cérebro estava ficando cada vez mais comprometido. O que podia fazer agora era comer a panqueca, então deixou de lado sua torrada e empenhou-se naquela tarefa.
Percebeu que nem o pai nem a mãe pareciam prontos para sair, ele procurou o relógio grande no alto da parece acima da geladeira, faltavam cinco pras cinco. E o horário certo para sair quando era dia de quimio, era 5:10 da manhã.
– Vamos chegar atrasados.
– Acho que você só precisava comer alguma coisa, já está falando bem melhor. Come a panqueca de banana, filho.
A macies da massa e da fruta eram muito mais fáceis de deglutir, naquela fração de tempo se sentiu normal, tomando café da manhã com os pais, em outra realidade estaria se preparando para ir à faculdade?
– Vamos chegar atrasados, vocês na-não esta-tão prontos ainda.
– Estamos de folga hoje, não é, Fugaku?
– Isso mesmo.
– Seu pai e eu vamos dormir até mais tarde. – a mãe comentou, bebericando uma xícara grande de chá verde, ela tinha vindo criança do Japão para os Estados Unidos, mas algumas manias, Mikoto nunca perdeu. – Hoje quem vai te levar vai ser o Kisame.
O nome do namorado fez Itachi perder o resquício de apetite que ainda tinha, ele balbuciou alguma coisa intelegível, estava morrendo e não deveria manter um relacionamento naquele processo, ele deveria libertar Kisame daquele fardo, mas quanto mais o mandava embora, mais o Hoshigaki insistia em ficar. E na mesma proporção que sentia que precisava afastá-lo, também o queria por perto, desejando estar protegido em um abraço.
– Não qua-ro ir com ele. Não quaro, não quarto, na-a-ao – Aquela falta de capacidade de dizer claramente o deixava afoito, tanto que de uma palavra para a outra, ele erguia o tom de voz, cada vez mais aflito em tentar ser compreendido, seus olhos escuros brilharam com lágrimas e ao tentar se levantar, sentiu a cabeça tontear e caiu sentado na cadeira, os pais se ergueram, rodeando o filho para acudi-lo. – Na-no ca-ro, na-no caro!
A mãe o enrolou pelos ombros, passando a mão por suas costas, pedindo calma e repetindo aquilo como um mantra, o pai por sua vez segurou as mãos do filho, garantindo que ele não precisava.
– Eu vou te levar, eu vou, ele não, está bem, Itachi?
Tentando fazer o filho ficar mais calmo, Fugaku colocou um pouco de suco em um dos copos e o passou para o rapaz, ele não esperava que Itachi não fosse segurar o objeto; para o cérebro lentificado, a coisa aconteceu rápido demais, ele até fechou a mão, mas só depois do copo ter se estilhaçado pelo chão, respingando suco nas bancadas atrás da mesa.
Primeiro veio a percepção pelo que tinha acabado de fazer, depois conferiu a própria mão que só agora estava fechada em um punho e por fim, com toda a violência possível, o choro. Era horrível não conseguir falar, não conseguir que seu corpo reagisse da forma como ele esperava, como ele ordenava, viver aquela doença era cada vez mais atormentador.
Os pais achavam que estavam fingindo muito bem, mas Itachi não era bobo. Ele sabia que o tratamento era caro e que seu pai estava pegando todas as horas extras possíveis e impossíveis para dar conta de tudo, também via a fisionomia exausta da mãe, ela antes tão bonita agora era só a sombra da mulher que um dia foi. O câncer estava matando seus pais tanto quanto estava matando a ele. Quimio, cirurgias? Dariam-no mais tempo, mas colocando tudo na balança, valia mesmo a pena?
– Pes-col-pa – Ia pedindo entre soluços e tremedeiras – pescolpa!
Fugaku o segurou pelos ombros, olhando com firmeza para os olhos escuros do filho, eram os mesmos que os seus. Ele garantiu:
– Tudo bem, Itachi. Tudo bem. O erro foi meu, eu soltei o copo.
Mentira. Mas Itachi não conseguia nem falar o básico, como ia conseguir rebater aquilo? Tudo o que pode fazer foi concordar com a cabeça, engolindo ar e fazendo o máximo possível para conseguir acalmar aquele choro. Ele só pode observar sua mãe recolhendo os cacos de vidro do chão, secando o piso com um pano embebido em algo com cheiro herbal, algumas lágrimas ainda escapavam de seus olhos escuros, sentia-se um filho horrível! Quando a campainha tocou e o barulho de sinos ecoou pela casa, Itachi sentiu o coração voltar a disparar no peito.
– É ele, na-ão deixa ele entrar.
Mikoto já tinha deixado o pano sujo de molho na lavanderia e lavado as mãos, ela puxou um cadeira para perto do filho, sentando-se ao lado dele e confortando o rapaz com palavras doces:
– Tudo bem, filho. Vai ficar tudo bem.
– Eu estrago tudo. – Proferiu, deitando o fronte na curva do pescoço da mãe, ela o enrolou em um abraço – Tá tudo errado.
– Não está não, filho. Você não está estragando nada, ouviu?
Vindo do andar superior, já com uma camisa social e pronto para levar o filho para o hospital, Fugaku foi abrir a porta, mas sinalizou para que Kisame não entrasse. Lá atrás, não gostou nada daquela história do filho ser gay, em sua época aquilo era um desvio de caráter. Depois veio Kisame, um adolescente brutamontes que era o namorado do filho, ele só foi perceber que o que menos importava na equação do relacionamento entre ele e Itachi era a sexualidade do filho depois que o termo ‘células malignas’ surgiu no laudo médico de uma tomografia cerebral. Nos dois anos seguintes ele viu em primeira mão o rapaz segurar a mão do filho sem soltar nenhuma vez sequer. Viu-o ser forte enquanto Itachi estava fraco, viu-o ficar enquanto os outros iam embora, viu-o amar seu filho todos os dias, em cada sorriso, em cada palavra. Com paciência, com resignação, com um tipo de sentimento para alguém muito além da sua idade.
Era tão bom saber que Itachi era amado daquela forma por alguém.
Ele mesmo quando jovem só teve relacionamentos regados de incerteza, de um sentimento fútil e infantil, foi conhecer o significado de amor com quase 35 anos de idade.
O rapaz a sua frente tinha uma pelúcia enorme em formato de tubarão, acabou vendo de relance o carro velho de Kisame estacionado na rua, carro que ele comprou fruto do próprio trabalho, o banco traseiro estava cheio de balões azuis.
– Bom dia, senhor Uchiha. – Kisame o saudou, ele era mais alto do que Fugaku, tinha um porte atlético e olhos orientais. Apesar de seu sobrenome ser japonês, a família Hoshigaki tinha se mudado do Hawaii para a Flórida para trabalhar com pesquisa no Mote Marine Laboratory, eram gente de boa índole e trabalhadora, tal como o filho. Kisame ingressou em uma faculdade comunitária logo depois que terminou a escola e ainda tinha um serviço de meio período – O Itachi está pronto?
A resposta foi não verbal, apenas um meneio de cabeça junto de uma careta.
– Hoje está sendo um dia ruim. – Explicou. – Acho melhor eu mesmo levar ele.
Mas Kisame já tinha vivido vários dias ruins desde que aquilo começou, ele não tinha medo de encarar aquele tipo de situação.
– Posso entrar?
Fugaku não tinha certeza se aquela seria uma boa ideia, ele falou em voz alta um sonoro não, mas logo em seguida acrescentou baixinho, só entre os dois:
– Ele está na cozinha.
O rapaz passou para dentro e encaminhou-se para a cozinha, só viu a mãe de Itachi sentada à mesa.
– Oi senhora Uchiha, queria falar com o Itachi.
– Bom dia, querido – Mikoto lhe respondeu, ela terminava de beber seu chá verde que naquela altura estava morno e não mais quente. Apontou para a mesa dando a entender onde o filho tinha se escondido. – Não sei onde o Itachi foi, não.
– Entendi. Posso me sentar então?
– Claro meu bem. Está com fome?
Ele fez que sim e se aproximou mais algumas passadas, deixou o tubarão de pelúcia em cima de uma cadeira e meteu-se em baixo da mesa, sentando-se ao lado do namorado que estava ali encolhido, abraçado às próprias pernas, os olhos vermelhos do choro de ainda há pouco.
Eles tinham a mesma idade, mas por conta da doença, a fisionomia de Itachi era mais sofrida, de modo que ele parecia mais velho, não teve coragem de dizer coisa alguma à Kisame, só o acompanhou com os olhos enquanto o namorado se sentou ao seu lado com as pernas dobradas debaixo da mesa. Ele estava usando a camiseta que Itachi mais gostava, era em vários tons de azul e verde, com estampa de peixes. Jeans, tênis e uma touca cobrindo-lhe a cabeça, lá fora não estava tão frio para aquele gorro.
– Você gostou? – Ele perguntou à Itachi, vendo que o namorado encarava aquele item em particular, puxou a touca da cabeça, mostrando a própria careca ao outro e fazendo o Uchiha ficar de queixo caído. – Raspei hoje de manhã.
– Por que fez isso?!
Kisame acariciou o couro cabeludo, a sensação era nova e esquisita, ele nunca tinha raspado a cabeça, então seu cérebro ainda não tinha se acostumado a novidade.
– Pro nosso cabelo crescer ao mesmo tempo, vai ser legal.
Legal?! Tinha sido a coisa mais idiota que ele já fez e Itachi não tinha a menor dúvida quanto aquilo. Conhecia bem o namorado, sabia que ele era muito vaidoso em relação aquele cabelo; estavam juntos há três anos e ele sempre manteve o topete em dia.
– Mas acho que eu calculei errado – murmurou – vão ter que cortar o pouco que seu cabelo crescer até a cirurgia, não é?
O outro concordou com a cabeça, os olhos já cheios com uma nova leva de lágrimas, Kisame lhe quebrava de tantas formas diferentes, tudo o que ele esperava do relacionamento dos dois, o outro jogou fora pela janela e fez muito mais. Itachi não tinha percebido ainda, mas tanto seu pai quanto a mãe estavam sentados nas cadeiras, terminando de tomar o café da manhã e escutando a conversa deles dois.
Mikoto bateu no tampo e esticou um prato com cookies e tiras de bacon, ela não saberia dizer qual dos dois foi que pegou o pratinho, só ouviu Kisame agradecer e depois comentar:
– Aqui em baixo da mesa é uma beleza, viu senhora Uchiha.
O pai abafou uma risada, passou as mãos pelo tampo, procurando as de Mikoto e enlaçou ambas com carinho, ela compartilhava do mesmo sentimento que ele quanto à Kisame. Restava agora saber se o grandalhão ia convencer Itachi e levá-lo ao hospital.
– Já são 5:10, Itachi. Você vai querer que eu te leve?
– Ele vai comigo – O Hoshigaki responde de debaixo da mesa. – Né, Itachi?
– Vos-cê você tem que ir pra faculpade. Dade.
– Não, eu tenho que ir com você pra quimioterapia. Vamos?
Ele o fitou nos olhos, talvez fosse o fato do cheiro do bacon estar envolvendo os dois, ou simplesmente aquele sentimento avassalador que crescia mais a cada dia. Queria muito ficar todo o tempo que lhe restava com Kisame, isso o tornava um baita babaca por estar atrapalhando a vida alheia, mas que se foda. Confirmou com a cabeça sobre ir com o namorado.
Kisame colocou meia dúzia das tiras de bacon dentro da boca e engatinhou para fora dos limites da mesa enquanto mastigava, ajudou o namorado que veio logo atrás, erguendo-o com cuidado até ter certeza que Itachi estava bem firme de pé.
Os pais gostaram daquilo, mas só para confirmar, Mikoto questionou:
– Você vai com ele então, filho?
Ele fez que sim, só ali ela viu a cabeça raspada de Kisame brilhando à luz da cozinha.
– Sua mochila está na sala. Kisame você tem mascaras? Eu tenho algumas-
Kisame fez um positivo com a mão, ele ainda estava tentando mastigar o bacon, acabou engolindo algumas pedaços grandes que arranharam sua garganta.
– Eu tenho no carro.
– Tem um cobertor na-
– Eu tenho no carro também, pode ficar tranqüila, dona Mikoto. Eu vou cuidar dele.
Era tão bom saber que sim.
Kisame curvou-se, quase entrando em baixo da mesa outra vez, pegou a própria touca e o prato que agora só tinham cookies, voltou à superfície deixando o prato sobre a mesa e encaixando a touca na cabeça, ele pescou o tubarão, entregando ao namorado, havia o símbolo do Mote Marine bordado na barbatana traseira da pelúcia.
– Vamos, amor?
Itachi encarou o brinquedo, sorrindo. Fez que sim e foi encaminhando-se para a sala. Já Kisame ia mais rápido, ele partiu na frente, jogou a tal mochila no ombro e abriu a porta da frente para que o namorado saísse; em cada passo Itachi era escoltado pelos pais muito atentos.
– Tiau-Tixau- Tiau... Que merda. Xixau, tixau, tchiau, tchau! É, tchau mãe, pai.
– Tchau meu bem.
– Tchau, filho.
Ambos acompanharam o filho parados na soleira da porta, Kisame abriu a porta da frente de seu carro e esteve a postos para ajudá-lo a entrar, caso precisasse. Depois deixou a mochila no banco de trás, mas na fração de segundos que abriu a porta traseira para colocar fazer isso, várias bexigas escaparam e foram empurradas pelo vento para longe.
– Eu trago ele de volta de tarde, vou cuidar dele.
– Está bem.
– Tchau, senhor e senhora Uchiha.
Os pais não tinham visto ainda pelo ângulo em que o carro estava estacionado, só depois que o rapaz saiu com o veiculo, é que eles viram que no vidro traseiro havia sido pintado uma frase:
“Minha ultima quimio, buzine!”
Mikoto soltou uma exclamação alegre, ela vivia entre a cruz e a espada e nada do que pudesse fazer poderia mudar o fato de seu menininho estar morrendo.
Todo o processo durou horas e quanto terminou, Kisame optou por voltar pela orla. O dia estava triste, o céu tomado por nuvens e o vento soava cada vez mais alto. Eram poucos os gato pingados que estavam no mar, parte por ser dia de semana e parte pelo sol não estar quente mesmo sendo quase uma da tarde. O motorista jurava que seu namorado tinha adormecido no banco de passageiro, ele sempre ficava cansado após a rodada de quimio, era algo que demorava, os efeitos não tardavam a aparecer, por isso sempre havia uma muda de roupa dentre os itens que ele levava ao hospital e naquele dia não tinha sido diferente.
Itachi estava enrolado à coberta, com a cabeça voltada para o lado de fora, cada carro que passava buzinava e vez ou outra até davam gritos junto com uma salva de palmas; o moreno tinha adorado aquilo, adorado os balões e o cooler com o sorvete de morango que estava ali só esperando por ele as 5 e tantas da manhã. Kisame sempre dava um jeitinho quando queria agradar, era raro não conseguir tirar um sorriso de Itachi, o rapaz era um otimista nato, mesmo lá atrás, quando soube do tumor, disse com toda certeza do mundo que o namorado ia sair vitorioso daquele embate., ainda hoje tinha a mesma convicção, era Itachi quem já tinha aceitado o próprio fim: Não era algo mensurável em palavras, nem nada que ouviu da equipe médica, sentia seu tempo se esvaindo e por pior que parecesse ser, assumiu a postura de querer confortar quem ia deixar para trás no dia que fosse para o outro plano.
Ele moveu a cabeça na direção do motorista e Kisame sorriu daquela forma divertida de sempre, dizendo com muito bom humor:
– Você acordou, gatinho.
Não quis gastar suas palavras embaralhadas para dizer que não estava dormindo. Itachi baixou a mascara descartável e apenas perguntou com um meio sorriso:
– A gente pode ir na praia?
– Claro, a gente pode ir no próximo final de semana, você já vai estar se sentindo bem melhor até lá.
Ele não estava falando de ir em outro momento e sim agora.
– Agora, vamos agora.
Kisame desviou os olhos do trafego e checou se o namorado estava falando sério.
– Eu que-quero molhar os pés. – Explicou.
– A água deve estar geladéééérrima!
– Tuto pem.
– Está se sentindo bem pra isso?
Confirmou com a cabeça e Kisame embicou o carro na primeira vaga que encontrou. Galante e protetor, contornou o carro e foi ajudar Itachi a descer, ele não permitiu que o Uchiha deixasse para trás o cobertor, então o reembalou com aquilo e amparando-o com uma mão em suas costas, os dois passaram a andar devagarinho pelo calçadão até a areia.
Quando comparados, o Uchiha parecia ainda mais magro, ainda mais frágil. Kisame sempre foi um jovem grandalhão, tinha quase 2 metros de altura e traços fortes de fisionomia, como o nariz largo e o queixo quadrado, Itachi viu nele algo que foi decisivo para se apaixonar, aconteceu logo que se conheceram, por debaixo daquela aparência marrenta, estava um boboca cheio de piadinhas, de bom coração e de uma lealdade e companheirismo sem igual.
– Depois da cirurgia a gente vai viajar. – Avisou ao namorado – Dessa vez é sério, vamos pro Hawaii, só eu e você. Ai você vai entender por que eu digo que todas as praias daqui são horríveis de tão feias.
Só conhecia o lugar que Kisame falava pelas fotos, e mesmo apenas vendo imagens, sabia que o outro tinha razão.
Em poucos metros de caminhada, Itachi se sentiu sem fôlego, ele queria andar um pouco mais, a linha dágua ainda estava a pelo menos cinco metros, mas não ia conseguir chegar assim tão longe, então ele e Kisame apenas se sentaram na areia e encararam as ondas se chocando contra a areia lá na frente, quando o mar mudava para uma tonalidade mais escura, não se podia dizer onde terminava a água e começava o céu, seu sentimento por ele parecia bem similar aquilo, não sabia onde terminava a amizade e começava o amor, tudo parecia o mesmo, talvez porque era exatamente aquilo.
– Eu amo você.
A brisa bateu levemente contra os dois, ambos com seus gorros cobrindo as carecas, o ar trazia aquele cheiro gostoso de sal. O sol apareceu entre as nuvens, iluminando parte da orla, a claridade agregava profundidade aos montantes de areia e até mesmo refletindo na água do mar, Kisame puxou parte da coberta, jogando-a por cima do ombro e colando a laterak do corpo à do namorado.
– Fala xis! – Pediu, puxando o celular para uma selfie dos dois, mas ao conferir a imagem esperando encontrar dois sorrisos, encontrou só o seu, Itachi tinha a cabeça inclinada para seu lado, o olhando. – Você não olhou pra foto. Vou tirar outra.
– Kisame?
– Hum?
– Quan-do eu morrer-
Aquilo acabou com qualquer clima para uma foto bonita.
– Para com isso, Itachi. Você não vai morrer. Fez a quimio, vai fazer a cirurgia, vai ficar tudo bem, ta legal?
Aquilo tudo era só paliativo. Havia um tumor em um lugar inoperável em seu cérebro, crescendo mais e mais. Tudo o que os médicos vinham fazendo até ali era remover cirurgicamente pedaços e tumores menores, jogando uma quantidade absurda de radiação para remediar o impossível. Já era a segunda vez que passava por todo aquele processo, a segunda vez que envenenava seu corpo por uma ilusão que jamais poderia ser alcançada.
Realmente depois do meio dia sua capacidade de fala melhorou, mas por quanto tempo? Um dia ia acordar sem conseguir dizer bem mais do que algumas letras. De uns tempos para cá, sua mobilidade reduziu bastante, sua memória, seu raciocínio estava mais lento, sua deglutição difícil.
Itachi ainda o olhava, chegando a virar parcialmente o corpo para poder encará-lo de frente.
– Eu tô morrendo.
– Não está, você na-
– Me escuta... – pediu, umedeceu os lábios e só depois de algum tempo, pode completar a frase – ...pour favour. Me escuta encuanto au-eu consipo falar. Consipo. Consipo. Con-si-po.
Ele sentiu o mesmo desespero arrebatador vindo em sua direção, como naquela madrugada, engoliu o choro, esfregando o rosto no cobertor, a próxima coisa que ele disse acertou Kisame em cheio:
– Eles na-ão me escutam.
É claro que o rapaz não era bobo, apesar de sempre se manter otimista, sabia sim qual era o destino do namorado. Rezava a noite baixinho para que ele tivesse mais tempo e quem sabe então, alguém pudesse aparecer com uma solução melhor. Esperança e amor era tudo o que havia restado.
– Me deixa falar. – Itachi pediu e foi o lado racional de Kisame que acenou com a cabeça, talvez não houvesse mais tanto tempo como ele gostaria.
Ele juntou toda a coragem que tinha para ouvir o que quer que fosse.
– Você-cê pode ir ver meus pais pepois? Pe-pois, depois. Depois.
Não queria que fosse sempre, só vez ou outra. Garantir que eles tivessem seguido a vida e não presos ao que lhe acometeu. Ainda haveria Sasuke, seu irmão mais moço, na vida de seus pais.
– Pope dizer que eu sapia-pia-bia que eles fizeram tudo o que podiam.
Kisame encarou a arrebentação, tinha perdido o sorriso, ele confirmou com a cabeça sem ser capaz de responder de forma verbal.
– Kisame? Promete?
Tirou os olhos do mar, para encarar o céu e afirmou com a cabeça, mordendo o interior das bochechas com força para que a dor fosse maior do que a vontade que tinha de chorar.
– Oprigado. E nossos pla-nos...
Eles tinham tantos! Viajar, comer coisas esquisitas em barraquinhas duvidosa, conseguir um emprego legal, ter a própria casa e pintar as paredes eles próprios, ou fazer uma reforma qualquer que fosse com as próprias mãos. Queriam adotar um animal velho de um abrigo para mimar o bicho com uma vida boa. Um, não, muitos. Ter um carro e atravessar o país dirigindo, tirar fotos de cada parte do percurso e ter um álbum lotado de recordações. Conversaram tantas vezes sobre um casamento, uma festa com os amigos, com adoção de crianças e sobre quem teria os primeiros fios de cabelo branco. Os cursos aleatórios como o de culinária e o de pintura, o compromisso de sair para uma caminhada matinal fazendo chuva ou sol, de ir escalar, mergulhar, acampar...
– ...Faça tuto.
– Eu vou fazer tudo, com você... Vamos fazer juntos, tudo e muito mais.
Itachi olhou com seriedade para Kisame.
Só aquele olhar bastou para transmitir todo o resto que Itachi não conseguiria colocar em palavras coordenadas.Ele destrancou toda a apreensão que o outro rapaz trazia, sem conseguir mais se conter, Kisame começou a chorar com soluços doídos de se ouvir, seu namorado o recebeu em seus braços mirradinhos, enrolando-o de forma protetiva, mal conseguia envolver as costas largas do Hoshigaki. Passaram longos minutos daquela forma até que as ondas do mar levassem embora a pior parte do lamento, ou simplesmente parte dele, ainda com a cabeça encaixada na curva de seu pescoço, Itachi propôs sua segunda promessa:
– Você promete que eu não vou ser o seu ultimo amor?
A frase saiu certinha, sem nenhum erro de pronuncia. Esboçou um sorriso irônico e puxou o rosto de Kisame de seu ombro, amparando-lhe a face com ambas as mãos, seus rostos estavam tão perto que podiam sentir o hálito um do outro. Ele tocou a testa do rapaz com a sua, não desviavam o olhar nenhum segundo. Já tinha ouvido Kisame dizer para os outros que de amor, só uma pessoa roubou seu coração. Itachi achava piegas, mas por dentro se derretia todo, então quando a sensação de morte lhe alcançou dias antes, sempre que pensava ou falava sobre Kisame, vinha a sua mente especificamente aquilo.
Não queria nem que sua família ou que seu namorado lhe acompanhassem para o além vida.
– Faça tuto, viva tuto.
Não queria morrer.
Mas principalmente, não queria morrer sem ouvir do outro que um dia – não importava quanto tempo fosse levar – aquele grandalhão ia abrir seu coração para outra pessoa.
– Voce-cê vai ser meu único a-amor, mas eu na-ão quero ser o único seu. Promete que eu na-ão vou ser.
E mesmo cheio daquela certeza de seus próprios sentimentos, Kisame fez que sim para agradá-lo. Não acreditava que pudesse sentir aquilo por outra pessoa, o que os dois tinham, não era nada menos do que um encontro de almas.
Ele acreditava veementemente que o amor é a única coisa eterna na vida, que ele não vacila, nem desvanece, muito menos falha.
Amor não morre.
Resiste.
Com quase 38, quando Kisame encarou seu reflexo no espelho pela manhã e viu o primeiro cabelo branco despontando no topete, ele sorriu saudoso para si mesmo, lembrando-se da promessa feita lá atrás, tinha cumprido, alias, ainda estava.
Vivendo tudo, como seu primeiro namorado queria.
Havia um espaço muito especial em seu coração onde guardava seu amor adolescente.
E mesmo depois de tanto tempo, mesmo depois de Itachi partir, esteve certo sobre uma coisa:
Amor que é amor não vacila.
Não desvanece.
Amor não falha.
O seu nunca morreu.
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