Meu quarto nunca foi tão pequeno e ao mesmo tempo tão reconfortante. As grandes asas que surgiram de repente em minhas costas ocupavam espaço demais, metros quadrados que o cômodo com certeza não tinha sobrando, mas o que eu podia fazer se do outro lado da parede minha família estava ao gritos decidindo o que fariam comigo? Mesmo em meus piores pesadelos, não me imaginei em uma situação assim. Eu me recolhi para o cômodo e chorei, escondi meu rosto entre os joelhos e esvaziei tudo que tinha em peito, mas o nó em minha garganta não se desfazia. A confusão e o medo continuavam girando em minha mente, mantendo a chama da angústia acesa.
Nada fazia sentido. Havia algo em minhas costas que não fazia parte de mim. Era repugnante, eu mal conseguia vê-las na escuridão, mas podia senti-las, tremendo e pulsando, como um parasita drenando o meu sangue. Podia ser algo assim, uma criatura que se alojou em meu corpo e precisava ser removida. Seria muito mais simples; eu as tiraria, me recuperaria e poderia continuar vivendo como uma vítima resistente de uma situação aterrorizante. Mas eu sentia que não era uma coincidência infeliz. As palavras de meu irmão, as frases insensíveis se repetiam na minha cabeça tantas vezes que começavam a perder o sentido: "Você não é meu irmão!", "Uma criança vinda da floresta maldita". "Aberração".
Não tinha como ser real. Sungwoon era o meu irmão. Minha mãe me deu à luz, eu não vim de nenhum outro lugar. E eu não era um monstro, uma maldição ou uma aberração. Eu era humano. Sempre fui humano. Cresci como humano, vivi como humano e fiquei entre os humanos como os humanos fazem. Então o que estava acontecendo? Qual era a explicação para tudo aquilo? Por que eu não conseguia para de pensar nos querubins do meu sonho?
Eu fechei os meus olhos e rezei. Soa estranho agora que eu penso, pois eu não sei rezar. Nunca me ensinaram ou me disseram como fazia. Eu só sabia que pessoas faziam isso quando não sabiam mais o que fazer. Minhee fazia isso o tempo inteiro. Então eu tentei. Pedi para Deus – ou sei lá quem – que me desse a sorte de estar vivendo um sonho, que quando eu abrisse os olhos, eu teria acabado de acordar em minha cama, sem asas, sem desespero, sem a realidade em ruínas. Em seguida eu abri os olhos, e estava no mesmo lugar. Senti-me ridículo, mas não culpa do divino que o que eu vivia era um caso perdido.
Eu respirei fundo e me odiei profundamente. Foi quando a porta do meu quarto se abriu.
Minha mãe empurrou a placa de madeira e espiou para dentro. Por detrás dela, a luz de uma lâmpada acesa fazia sua silhueta parecer desconhecida. Ela ficou longos segundos ali parada, me encarando fixamente, e eu até pensei em dizer alguma coisa, mas notei que ela não avançava pois suas pernas vacilavam. Ela estava com medo. De mim. Isso retalhou meu coração.
– Filho... – Ela chamou, e a palavra tremeu dentro de sua boca. – Wooseok. Precisamos conversar.
Eu ergui a cabeça e a fitei, me sentindo derrotado. Rapidamente a tristeza dentro de mim começou a virar raiva. Aquela não era minha mãe, era? Aquele quarto em que eu estava nem devia ser meu. Aquela família não era minha. Minha vida não era minha. E se alguém sabia o porquê disso, era aquela mulher. Eu engoli o gosto amargo na minha garganta.
– Mesmo? – Falei, e minha voz soou rouca depois de todo o grito e choro. – Eu não acho que você tenha muito a dizer, já que ficou em silêncio esses anos todos.
– Wooseok, é muito difícil de explicar. A razão de tudo isso... é uma história muito longa,
– Bom, acho que chegou a hora de contá-la, não é? – Minha voz ficou muito mais alta. – Ou será que duas asas que nasceram nas minhas costas não são o suficiente?
Ela cambaleou como se eu tivesse lhe empurrado. Eu me senti culpado na mesma hora, mas não podia demonstrar. Eu tinha razão de estar nervoso. Era meu direito ficar irritado depois de tudo que tinha acontecido. Minha expressão ficou amarga e eu fiz um gesto para que ela se aproximasse.
– Sente-se. – Indiquei. – Tenho todo o tempo do mundo para te escutar.
Ela engoliu seco e obedeceu. Deixou o batente da porta e fechou-a atrás de si. A noite dominou os arredores mais uma vez, mas não importava pra nenhum de nós, porque já estivemos naquele quarto vezes o suficiente. A mulher caminhou e se sentou ao meu lado na cama.
– Antes de qualquer coisa, eu quero dizer que sinto muito. Wooseok, eu tentei ser sua mãe, mas não fui boa pra você. Eu menti e escondi a verdade de você porque achei que estivesse sob o meu controle. Eu me enganei, é claro. Falhei em muitas coisas mais, mas são adianta falar disso agora. Você precisa da verdade, e não espero que me perdoe depois de obtê-la. Só quero que saiba que eu sei que errei.
Ela fez uma pausa para ver se eu diria alguma coisa, mas como continuei em silêncio, ela prosseguiu:
– Sabe, quando eu era jovem, eu era muito inconsequente. Eu era curiosa, desafiadora, não gostava que outras pessoas decidissem o que eu podia e não podia fazer. Seu pai achava isso uma enorme qualidade. Seus avós não suportavam mais as encrencas que eu arranjava. Eu ficava sonhando acordada, imaginando o tipo de aventura que nós, humanos, poderíamos viver se não tivéssemos tanto medo do que tem floresta a dentro. Bom, isso causava polêmica sempre que eu confessava. Meus amigos achavam que eu era louca. O delegado de Watersson chegou a me dar um bronca uma vez, dizendo que pessoas morriam por terem ideias estúpidas como as minhas. Passado algum tempo, eu fui me acalmando. Tive o Sungwoon, virei uma dona de casa, desisti de aventuras fora dos limites de Saho. As coisas estavam fadadas a acabar assim de uma maneira ou de outra. Até que um dia, eu estava estendo roupas no varal e escutei um choro doído, desesperado como o de um bebê que acordara e não avistava a mãe. Pensei que fosse o filho de algum vizinho, mas o barulho do choro não vinha das casas. Ela vinha da outra direção. Vinha de dentro da floresta atrás de casa.
Um arrepio subiu pela minha espinha. Os pensamentos foram se encaixando dentro da minha cabeça, as esperanças caindo uma após a outra, como uma fileira de dominós mal estruturada.
– Você foi até lá? Entrou na floresta para ver o que era?
Eu escutei quando ela soltou um riso soprado, sem humor algum.
– Meu espírito rebelde não estava tão morto quanto eu pensei que estava. Mesmo que eu soubesse que entrar na floresta era uma má ideia, a culpa não me permitiu deixar pra lá. Eu tinha um filho. Sabia como crianças eram delicadas e como precisavam de proteção. Se eu não fosse até lá, ninguém mais teria a coragem de ir. A pobre criança morreria, ou de fome, ou de frio, ou atacada por alguma coisa. Ela dependia de mim, então eu a encontrei. E a levei pra casa.
Cerrei os pulsos.
– Você devia ter deixado ela lá. – Opinei. – Se estava na floresta maldita, não tinha como ser uma coisa boa.
– Seu pai falou a mesma coisa. Me mandou devolver. Mas como eu poderia devolver? Era só um bebê. Tinha, no máximo, algumas semanas. Tinha olhos tão pequenos e curiosos. Não demorava para dormir, não reclamava de eu não ter leite materno para dar e ria quando o Sungwoon espiava dentro do berço para vê-lo. Era exatamente como qualquer outro bebê humano que eu tinha visto. E, não tinha como negar, eu já estava apaixonada por ele. Teria feito de tudo para mantê-lo comigo. E fiz. Eu implorei para o seu pai, disse que cuidaria dele sozinha, que voltaria a trabalhar para alimentar mais uma boca se fosse preciso. Jurei de joelhos que não tinha nada de errado com ele. Que era seguro ele ficar.
Eu achei que não tinha mais lágrimas para chorar, mas quando vi, já estava com os olhos molhados de novo. Minha boca se curvou num sorriso amargo.
– Parece que você estava errada.
O silêncio que se instaurou entre nós seria mortal para qualquer mãe e filho. A diferença é que aquela não era minha mãe, e seria impossível, dali pra frente, eu continuar fingindo ser seu filho.
– Wooseok, se eu pudesse voltar no tempo... – Ela afirmou. – Eu faria tudo igual. Eu não me arrependi nem por um segundo de ter resgatado você aquele dia.
– Nem mesmo agora? – Eu questionei, e minhas asas se agitaram contra minha vontade.
A mais velha ofegou de susto e não disse mais nada. Eu suspirei, conformado.
– No fim das contas, o que eu sou, mãe? Já que não sou humano e nem seu filho.
– Eu não sei. – Ela confessou. – Estaria mentindo se dissesse que não estou chocada de encontrar você assim.
– Está muito ruim?
– Seu rosto está péssimo. Você está cheio de marcas e arranhões. Parece que enfrentou uma guerra. Mas elas... elas são lindas, Wooseok.
Eu abaixei a cabeça. Me esforcei para processar tudo que tinha ouvido. Não era nada fácil. Aquelas poucas respostas só criaram mais perguntas na minha cabeça; algumas sobre o meu passado, mas a maioria sobre o meu futuro. Eu não tinha mais energia para pensar. Me voltei para a mulher ao meu lado, mesmo que sua figura fosse quase impossível de distinguir na escuridão.
– Mãe... eu ainda posso te chamar assim?
– Claro que pode. Pelo menos por hoje, ainda sou sua mãe.
– O que vai acontecer comigo daqui pra frente?
– Essa é uma pergunta complicada.
– O que o pai e o Sungwoon disseram?
– Que você não pode ficar. Não querem nem ver você.
– Ah. – Eu assenti. – Imaginei algo assim.
– Me perdoa, Wooseok. Coloquei a gente nessa situação, mas não tenho como nos tirar dela agora.
– Não diga isso. Não fale como se a situação fosse a mesma. Você errou, mas é humana e parte da família. Eu sou o monstro. Eu tenho que ir.
Os segundos se passaram e eu escutei quando ela começou a chorar baixinho. Eu queria acompanhá-la, mas não tinha forças. Ela se levantou e foi até a porta.
– Você tem que descansar, Wooseok. Teve um dia bem ruim. Amanhã de manhã vemos o que faremos. Até lá, você deve dormir. Boa noite.
E deixou o quarto, como se acreditasse que havia qualquer chance de eu conseguir pegar no sono. Eu me deitei de bruços no colchão e pensei, de forma infeliz, que aquele era o único jeito em que eu conseguiria dormir dali pra frente – por causa das asas. Eu já as odiava com todas as minhas forças. Era grandes, sensíveis, desajeitadas e estavam prestes a destruir a minha pra sempre. "Elas são lindas", minha mãe dissera, mas eu não podia me importar menos com isso. Queria que elas sumissem. Queria sumir. Mas nada disso era possível.
Então eu apaguei. E não apareceu nenhum querubim até o amanhecer.
[...]
O despertador tocou pela manhã assim como fazia todos os dias; uma pena que não serviu para nada, pois eu já estava de olhos bem abertos. O pouco que consegui dormir aquela noite não era o suficiente para que eu me sentisse vivo. Meu corpo era como um cadáver que não conseguiu encontrar a paz e agora vagava pela terra gemendo e lamentando. Eu fitei a janela aos pés da minha cama. O céu estava limpo, tingido de um tom claro de azul que anunciava o dia ensolarado que vinha pela frente. Que ironia. Pleno fim de outono e teríamos um dia lindo de sol para comemorar a ruptura da minha realidade.
Eu me esforcei e consegui me sentar na cama. À luz do sol, as asas – minhas asas, por mais estranho que soasse a frase – eram ainda mais impressionantes e aterrorizantes do que eu tinha visto na noite passada. Eu estiquei minha mão e toquei a ponta das penas. Um arrepio percorreu o meu corpo. Eu conseguia sentir o toque, e, ao mesmo tempo, a textura macia na ponta dos dedos. Parece óbvio, mas era muito difícil para meu cérebro se acostumar ao fato de que aquilo era parte de mim e que eu podia senti-las ou movê-las. A curiosidade cresceu no meu peito.
Me pus de pé e observei as penas se esconderem atrás das minhas costas, instintivamente. As asas ficavam encolhidas e curvadas quando eu não pensava nelas, assim como uma perna ou um braço ficam estendidos quando você não os flexiona. Eu pensei nas asas dessa forma, como um membro que eu precisava despertar. Mentalizei os movimentos e, tão simples quanto erguer uma mão, as asas se abriram para ambos os lados, exibindo sua grande extensão, com quase o triplo do meu tamanho. Eu segurei um grito na garganta. Me senti como a presa de um falcão prestes a ser atacada. Mas quando nada demais aconteceu, eu as recolhi outra vez e soltei o ar dos pulmões. A sensação era diferente de tudo que eu já havia sentido.
Eu espiei na porta do meu quarto e me assegurei de que o corredor estava vazio. Sai porta a fora e, com muito mais espaço disponível, comecei a descobrir as capacidades do meu corpo – algo que, supostamente, você só consegue experimentar quando é um bebê. Devia ser por isso que minha mente estava em êxtase. Eu estiquei e recolhi as asas uma porção de vezes. Depois movi para frente e para trás, para cima e para baixo, em todas as direções possíveis. Testei as flexibilidade das vértices, me escondi por debaixo das penas e, por fim, dei ouvidos à dúvida que não queria calar: "será que eu consigo voar com essas coisas?".
O pensamento me trouxe empolgação e medo ao mesmo tempo. Se eu pudesse fazer uma coisa dessas... minha nossa, seria terrível. Completamente antinatural. Voar é uma habilidade que não pertence aos humanos. Apenas animais ou monstros conseguem fazer essas coisas. Foi então que caiu a ficha, como ainda não tinha caído antes: eu não era mesmo humano. Não era mais limitados como eles, mas também não era mais parte da sociedade que me cercou por tanto tempo. Se eu voasse, estaria assinando um contrato de despejo eterno, com a adição de ser desprezado por todos que eu conhecia. Era a prova de que eu merecia ser exilado. Eu não soube o que pensar.
Resolvi deixa para lá e segui até o banheiro. Minhas costas ainda estava sujas de sangue seco, então eu peguei um pano, molhei e fui aos poucos me limpando. Entrar debaixo do chuveiro naquela forma estava fora de cogitação, tanto porque eu não caberia no box com aquelas asas, quanto porque a ideia de molhá-las me deixava em pânico. Eu demorei uns vinte minutos, mas consegui me livrar de sensação de sujeira. Eu deixei o andar superior e desci para a cozinha.
Surpreendentemente, estava tudo silencioso, abandonado. Normalmente naquele horário minha mãe estaria assando pão, meu pai amolando suas ferramentas e Sungwoon estudando na mesa de jantar, mas não havia ninguém me esperando daquela vez. Eu me senti parcialmente agradecido, pois não sabia se poderia suportar a reação da minha família – ou antiga família, se eu for mais honesto – ao me ver descendo as escadas com as asas erguidas para evitar encostar no corrimão. Imaginar a cena foi engraçado e destruidor. Não tinha nenhum pensamento para me consolar.
Eu procurei comida nos armários e encontrei uma caixa de ovos. Coloquei alguns para cozinhas e decidi que eu precisava de algo para vestir urgentemente. Ainda estava com o peito desnudo da noite passada e a brisa gelada que entrava pela janela estava me matando de frio. Eu subi rapidamente para o meu quarto e cacei a camiseta velha que eu estava usando quando fui dormir. Foi uma pena, mas tive que rasgar a parte das costas para poder vesti-la. Ajudou parcialmente, já que o tecido era fino e metade de sua proteção fora jogada fora, mas era melhor do que nada. Eu voltei para a cozinha e comi os meus ovos.
Tudo parecia tão monótono que eu até me esqueci de que não tinha perspectiva nenhum de futuro. Minto: no fundo da minha cabeça, uma voz ficava sussurrando " o que fazemos agora? O que fazemos agora? O que fazemos agora?". "Não sei", respondi, "Temos que ir embora, mas não sei quando nem como. Nem para onde". "Não tem lugar para nós em Saho." A voz respondeu. "Se algum vizinho nos encontrar assim, vai chamar as autoridades para nos levar, ou nos matar aqui mesmo".
Que animador. Fugir para lugar nenhum ou ficar e ser morto. Eram minhas únicas opções. Eu me deitei de bruços sobre a mesa e suspirei alto. Por cima do antebraço, espiei as penas brancas das minhas asas.
– Vocês acabaram de destruir minha vida, sabiam disso? – Sussurrei para elas, desafiando minha sanidade mental. – Por causa de vocês, agora não me resta nada. Pouco me importo se são lindas ou podem me fazer voar. Eu detesto vocês, detesto.
As asas não responderam nada, obviamente. Pelo menos não com palavras. Eu as encarei e encarei e encarei, e no meu âmago começou a crescer um desejo, uma vontade por adrenalina que eu nunca tinha reconhecido em mim mesmo. Eu tinha raiva, queria gritar e fazer alguma loucura. O que estava acontecendo comigo não era justo, e era ainda menos justo que eu fosse o único a saber sobre isso. Eu sabia que era uma má ideia. Quem não saberia no exato momento que pensasse sobre ela? Mas era o meu último momento de decisão, a última vez em muito tempo que eu poderia escolher o que fazer. Então eu queria fazer a escolha insensata. Como poder escolher a forma como quer morrer depois que sua sentença de morte já foi proferida, e escolher morrer pelas próprias mãos. Em praça pública.
Eu bebi um último gole de leite e me levantei determinado. Fui até a parte de trás de minha casa. Lá fora, o sol já estava alto no céu, indicando que pelo menos uma ou duas horas haviam se passado desde que eu acordei. A vila inteira devia estar iniciando sua rotina, saindo para o trabalho, ocupando as ruas. Meu lado racional gritou: "péssima hora! Péssimo lugar! Péssima ideia!". E eu ainda assim comecei a refletir: como pássaros fazem para voar?
Eu estiquei as asas e bati com toda a força na direção do chão. Causei uma rajada inesperada de vento, que me jogou para trás e me fez cair de bunda no gramado. Eu pisquei confuso, e me levantei outra vez. Tudo bem, não dava para ser bruto daquele jeito. Tentei outra técnica, movendo minhas asas como chicotes para frente e para trás. Meu torso inteiro chacoalhou, mas eu nem sai do lugar. Certo, também não era essa a melhor maneira.
De repente, um pardal pousou no galho de uma árvore próxima e olhou para mim, intrigado. Eu olhei de volta e uma luz de esperança surgiu sobre a minha cabeça.
– Ei, pequeno. – Eu chamei, apesar de duvidar que o pássaro podia me entender. – Como você faz pra voar? Se importa de fazer uma demonstração?
O pardal virou a cabeça, bicou entre as penas e, por coincidência, – ou talvez não fosse – separou os pés e voou para a árvore que estava ao lado. Meus olhos acompanharam seus movimentos e, por algum motivo, eu consegui capitar o que devia fazer. Não deveria ser possível, já que o animal era minúsculo e muito ágil, – e minha visão nunca fora muito boa – mas eu ajeitei minha postura e imitei o pardal.
Abri minhas asas e distribuí a tensão pelo corpo. Movi as articulações em onda, as duas em sincronia, não só fazendo o mesmo movimento, mas compensando a inclinação uma da outra. Eu sai do chão. Me surpreendi tanto que parei, e cai de pé sobre o gramado, porém já era tarde. A adrenalina corria pelas minhas veias. Eu senti frio na barriga. Era... diferente. Diferente de tudo. Me fazia querer rir e gritar e sair correndo. Tentei de novo. E de novo e de novo, até estar subindo cinco metros no ar sem nem mesmo perceber. Eu fechei os olhos e senti o vento bater no meu rosto, e então eu ri descontroladamente.
Pousei no telhado da minha casa. Lá de cima, eu observei o meu quintal, de onde eu tinha decolado. Parecia distante, bem mais do que alguns metros. Eu olhei ao redor e vi o telhado das outras casas, vi a copa das árvores, e me perguntei porque eu nunca tinha subido ali antes. A vista era simples, mas era linda. Eu enchi os pulmões de ar, recuei alguns passos e então sai correndo na direção de beirada do telhado. No último instante, eu saltei e abri minhas asas. Planei sobre a vila de Riverqueen.
As casas de madeira, as ruas de pedras gastas, as hortas e as lojas de frutas frescas; tudo parecia mais bonito de cima. Eu sentia o vento me levar para onde ele queria, mas eu também podia ir para onde quisesse, então eu bati as asas e subi mais um pouco, rodopiando no céu. Eu não conseguia parar de sorrir. Era como estar vivo pela primeira vez, mais vivo do que em toda a minha vida, mais vivo do que eu jamais poderia me sentir como humano. Eu me senti extraordinário. Eu me senti um garoto de sorte.
Não queria que aquele momento acabasse nunca. Eu olhei para baixo e vi pessoas se amontando sob a minha sombra, apontando chocadas, algumas tapando as bocas, outras com lágrimas nos olhos. Eu vi uma garotinha erguer as mãos e ficar na ponta do pés, como se eu fosse um passarinho e ela quisesse me pegar. Vi uma senhora juntar as mãos e fazer o sinal da cruz. Vi as mulheres correrem para suas casas e fecharem as janelas.
Em um segundo, eu raciocinei que aquilo não era um sonho. Eu sabia o que estava prestes a acontecer, mas não tinha como me preparar para o terror que senti. Os homens chegaram, carregando machados, ancinhos e espadas que mal sabiam empunharam. Alguns simplesmente pegaram pedras do chão e se prepararam para lançá-las, mas o que realmente me desesperou foi o seu Nicolau, amigo de meu pai, chegando com sua espingarda em mãos. Ele mirou na minha direção, fez sinal para os outros e gritou alguma coisa.
Eu estava muito longe para escutar, mas não precisava ter audição sobre-humana para saber. Nicolau botou o dedo no gatilho e berrou para os companheiros:
– Matem o demônio!
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