Erik.
Não entendo o que me levou a pegar esse saco de pulgas, que só me trás problemas e infortúnios.
Se eu Simplismente tivesse ido embora naquele dia, e cuidado de minha própria vida, nada disso estaria acontecendo.
Não estaria com o pulso dolorido pela recente torção, e correndo por meia hora atrás de um cão com três patas, que consegue ser mais rápido do que eu, e mais enérgico.
Não sou velho, mas tenho certeza que não fui abençoado com o dom para correr atrás de cachorros. Sou um músico, compositor, um arquiteto, sou um criador, não caçador de sacos de pulgas.
Meu único objetivo era prender o cão, para que não assustasse a garota, e assim evitar que eu acabasse agindo como um tolo sentimental.
Não quero repetir a imprudência de agir por impulso, e acabar me colocando em uma situação constrangedora. Novamente.
E depois de que o perseguir por vários minutos, quando finalmente consegui agarrar a corrente, tive o infortúnio de processar o movimento errado.
O que deu chance para ele fugir e torcer meu pulso no processo.
E mesmo me vendo arfar de canseira, o cão não mostra a menor vontade de obedecer, ou cessar a brincadeira.
"Que só é divertida para ele."
Tento me aproximar mais uma vez, o que só resulta numa correria atrapalhada da parte do cão.
Respiro fundo, desejando com toda força não ter pego um cachorro.
_Eu vou fazer picadinho de você. _Digo para o cachorro, em meu próprio idioma.
Depois de ter usado cada ordem que conheço em alemão, e não ter um único progresso, desisti de bancar o idiota.
Aposto que nem que eu soubesse cada idioma do planeta, ele iria me obedecer.
Encaro o cão a menos de dois metros de mim, que grunhi animado com a expectativa que vou correr atrás dele.
Suspiro e dou meia volta, voltando para mansão.
"Quer ficar no frio, que fique."
Ele não costuma ser desobediente, e sempre segue as ordens fielmente. Mas ele sabe, que vou prende-lo.
Nunca o acorrentei, e raramente o prendo. Só durante o dia, durante a noite ele é livre para passear pela propriedade.
E ter que ser preso durante a noite, não o agrada.
Suspiro aliviado, ao ouvir os passos do cachorro logo atrás de mim.
Quando o vejo ao meu lado, seguro-o pela corrente _Só por precauções caso ele tente fugir. _que sempre está em seu pescoço.
_Não vai ser para sempre. Quando ela for embora, eu te solto. _Explico mesmo que ele não entenda uma única palavra.
O cão bufa, como se realmente entendesse,e me deixa guia-lo até meu gabinete. O único cômodo mais apropriado que está no andar de baixo. Sem escadas.
Então depois de acender a lareira, e colocar uma almofada grande no chão _Que imediatamente é ocupada. _saio, e fecho a porta.
Caminho pelo mesmo corredor que caminhei outras duas vezes com minha "vítima".
Lembro da garota, tão pequena e nada graciosa, não a nada nela que lembre formosura, ou delicadeza.
"A não ser, que é macia e quente de se abraçar."
Balanço a cabeça me sentindo atordoado. Faço certo esforço para voltar ao presente.
"Foco Erik... Mantenha o foco."
[...]
"Assustador, medonho, intenso."
Ao ver o corpo pequeno e frágil, junto ao portão negro e gótico, sinto uma vontade quase insana de assustá-la.
É como um frenesi compulsivo.
Durante toda minha vida recebi o medo de todos que se depararam comigo. Antes me incomodava receber tal sentimento. Agora me incomoda não tê-lo.
É como ser amado a vida inteira, e depois não recebê-lo mais. Para mim só muda o sentimento. Que ao invés de ser o carinhoso amor, é o poderoso medo.
E depois do último contato que tive com a garota _No dia em que houve o abraço. _me senti extremamente incomodado por sua falta de medo e reverência ao "Fantasma da Ópera".
Ela não me teme, então não me respeita do modo que deveria, de acordo com as normas que criei.
A criatura pequena olha para o alto do portão, como quem calcula a altura de algo, para ultrapassa-lo. E não duvido que de fato essa seja a idéia.
Uma das mãos pequenas rodeiam o metal cilíndrico do portão, como se fossem interessantes demais para ingnorar.
Com um suspiro resignado ela abaixa a cabeça, encarando os próprios pés.
Me aproximo lentamente, sentindo o coração acelerar a cada passo. A adrenalina corre por meu sangue. Uma vontade insana de aborda-la como um caçador.
Observo atentamente, me sinto um predador, preste a assustar uma pequena pombinha ferida.
Já estando a um braço de distância das grades negras, observo minha "presa".
O rosto feminino coberto por sombras negras, a fumaça ondulante que escapa de seus lábios a cada respiração. Os ombros pequenos tremem violentamente. Quase posso sentir os temores em meu próprio corpo.
Não sei se pela diferença de estrutura, peso, tamanho, sexo, mas não sinto tanto frio como ela aparenta estar. Chego a me sentir confortável com a friagem. Ela me mantém alerta a tudo a minha volta.
No meio de todos meus pensamentos conturbados, e diante da figura pequena no portão, perco a vontade de assusta-la.
"Tão pequena e frágil."
Sem perturbar o silêncio, estendo um dos braço, usando o objeto pequeno e metálico para abrir o assombroso portão.
Com um giro preciso da chave, todo o mecanismo se põe em funcionamento, as linguetas girando sobre o eixo da chave até destravar a tranca.
O som da tranca soa pelo ar, o timbre muito parecido com a da casca de um ovo ao ser quebrada. Um ovo metálico.
O som assusta a garota, que levanta o rosto abruptamente. O medo dançando em suas íris, como um cisne em uma lagoa de águas esverdeadas.
Mas o medo desaparece com a mesma rapidez das asas de um beija-flor. Qualquer apreensão sendo substituída por... Reconhecimento?
É tão ridículo quanto um coelho avistar uma raposa e e reconhece-la como camarada.
Com mais atenção do que o recomendável, a garota me observa.
Deixo sua avaliação durar mais tempo que o confortável.
Sem me dirigir a criatura pequena e trêmula, me apresso em abrir as grades de ferro, liberando espaço para ela em seguida.
A criatura miúda passa por mim, os ombros pequenos e trêmulos. O corpinho minúsculo tão fácil de ferir.
Sem saber exatamente por que, torno um objetivo temporário tirá-la do frio, e cessar as tremedeiras irritantes.
Com a porta da mansão já aberta, dou passagem a menina, que passa por mim com a velocidade de uma lebre afugentada.
Enquanto fecho a porta, mesmo de costas para ela, posso sentir sua presença, que de modo curioso preenche o cômodo.
Com um suspiro contente e alguns passos no mesmo lugar, ela parece se acalmar e relaxar no calor interno da casa.
Inexplicavelmente, seu comportamento me lembra um coelho. Pequeno, agitado, inofensivo.
Sem dar muita importância para meus pensamentos paralelos, sigo a um dos meus cômodos preferidos na casa.
Como o gabinete virou canil temporário, tive que escolher outro local a qual trazer a garota.
E mesmo que me sentindo um pouco tentado a deixar o cão no frio, depois de todo o infortúnio que ele me deu, ainda assim o trouxe para dentro.
Sigo para o cômodo em questão, uma pequena sala colorida somente em tons de azul, perfeitamente confortável, e irritantemente feminina.
Quando adquiri a mansão, tudo já estava devidamente mobiliado, e ao que parece o último morador que permaneceu vivo tempo suficiente para decorar a casa, era uma mulher. Uma Duquesa excêntrica e exagerada.
E como não tenho o mínimo interesse em decorar a casa toda, deixei do modo que estava. Só mudando algumas coisas com grande prioridade.
Suspiro ao adentrar o cômodo azul, que por pura ironia, brilha nos tons vermelhos da luz crepitante da lareira.
Sigo até o único assento que realmente uso no cômodo. Os outros ficam somente como paisagem.
E mesmo que eu não acho útil ter um monte de móveis que não são usados, não tenho tempo, nem paciência para redecorar.
Já sentado, observo o interesse da garota em tudo, a típica curiosidade feminina no que lhe chama atenção.
Demora-se alguns segundos até ela me encarar. O brilho curioso sumindo por alguns segundos. Aceno para que se sente, o que ela faz sem demora.
Observo-a, os olhos pousando sobre as almofadas como se as desejasse, o interesse com que olha algo tão desinteressante é quase vertiginoso.
Espero pacientemente, até ela perder o interesse pelo ambiente e lembrar o motivo por qual veio aqui.
Não demora-se cinco segundos, e vejo um maço de papel ser estendido em minha direção.
Diante de sua hesitação e um possível receio, não consigo reprimir minha... Quase alegria.
Deixa-la desconcertada se mostrou muito interessante e divertido.
Sorrio espontaneamente e fico consciente que estou com aspecto de um assassino sorridente.
Ainda sorrindo pego as folhas da mão pequena e trêmula da garota. Fico em dúvida do por que a tremedeira.
Já me é bem evidente, que ela não me teme o suficiente para ter um ataque de tremedeiras. E levando em consideração a temperatura não me parece plausível que seja frio.
_Está se mostrando mais útil do que eu imaginava que seria. _Digo com o intuito de provocar.
Não conheço a garota o suficiente, mas sou bem observador, e no pouco contato que tivemos, percebi o quanto temperamento dela é bem semelhante a de uma granada.
Espero por uma reação, que não acontece. Ela permanece calada e visualmente serena.
Sua falta de reação me incomoda ao ponto de me fazer sentir uma irritação implacável.
Respiro fundo, tentando clarear minha mente, e focar no que realmente importa.
"Os papéis."
Enquanto a coisa insignificante fica absorta em algum devaneio, aproveito para prender minha atenção na leitura.
Com o início contendo somente investimento irrelevantes, e quantias pequenas, começo a pensar que a excursão da garota atrás de informações fora um fiasco.
Mas daí as coisas vão ficando interessantes.
"Exportação de mercadorias alimentícias"
"Extração de minério de ferro."
"Escavação de minas de diamantes na África."
"Fracasso, ruína, desgraça total."
Então Raul não perdeu tudo em jogos, e sim em investimentos mal pensados.
"Ah. Mas isso é magnífico demais para ser real."
Raul é um completo idiota, um verdadeiro fracassado em questão de investimentos.
Diamantes na África? Completa Ruína.
"Moleque insolente, escravo da moda."
Ele sabia que estava arruinado, desde antes de se casar com Christine. Sabia a mais de quatro anos.
E mesmo assim casou com meu anjo, e arrastou-a junto para sua desgraça.
"Saberá Christine da falência do marido?"
"Duvido muito."
Volto meu foco para a leitura, tentando me prender a cada número e letra ao invés do ódio por Raul.
A cada segundo e letra ultrapassada, fico cada vez mais assombrado. As quantias altas, o número de fracassos. Cada vez mais atordoante.
Além de um fracassado, arrastou minha Diva junto a ele.
Mesmo sentindo-me irado e com uma vontade insana de estrangular o loiro aguado, junto todo meu auto controle.
"Aja com cautela."
Respiro fundo, e levanto o rosto para a garota.
Mesmo tendo passado alguns minutos, ela não parece ter voltado a si. Ainda estando em algum lugar da própria mente.
Tento chamar sua atenção, o que se mostra em vão, levando em conta seu grau de distração
Então chamo-a pelo seu nome, que até o momento não havia tido consciência de saber.
"Amélia"
Um nome bem simples, e não é feio.
Talvez Gertrudes combinasse mais com ela. Um nome detestável, para uma mulher insuportável.
Somente quando chamo-a pela segunda vez, que recebo sua atenção.
Sua cabeça antes abaixada, se levanta rapidamente. Os olhos transbordando de surpresa.
Noto que ela aparenta confusão, e os olhos estão vidrados, como se estivesse sob efeito de drogas.
"Será? Não creio... Vejamos então."
_Tem como você se manter viva enquanto está aqui? Não estou com muita paciência para dialogar com uma múmia. _Informo de forma seca, a voz tão fria quanto cacos de gelo.
Espero que a ação gere alguma reação, mas só recebo um calmo e inútil aceno de cabeça.
Encaro-a por alguns segundos, até ter certeza que minha suposição está correta.
"Está dopada."
Mesmo com uma enorme desconfiança brotando em mim, levo tudo em frente. Agindo normalmente.
Como uma pergunta precisa de uma resposta, faço disso minha arma para obriga-la a falar algo.
_Onde conseguiu isso? _Indago de forma calma, mesmo que a ansiedade corra nas minhas veias.
Ela hesita por vários segundos, até que finalmente diz algo.
_No... Gabi...nete. Do. Raul. _Responde com a voz baixa e entrecortada.
"Está drogada de remédios."
Sinto o coração errar um batida, e meus pensamentos se perderem por um instante.
"Ela esta doente por sua culpa idiota!"
_Está doente? _Pergunto tentando soar o mais indiferente possível, quando na verdade sinto-me extremamente culpado.
_E ainda assim se aventurou no meio da neve? Você é louca, ou quer morrer? _Digo antes que sequer tenha tempo de responder.
Vejo que minha reação saiu do controle no momento em que ela me encara confusa e surpresa.
Deixo de seguir minhas próprias regras, e me aproximo da garota, deixando-a ainda mais estática.
Chego perto o bastante para toca-la, mas não o faço antes de pedir sua permissão.
_Posso? _Indago empregando uma voz baixa e calma. _Só vou medir sua temperatura.
"O que está fazendo seu tolo?"
Percebo a burrice que fiz no momento que recebo autorização para toca-la.
Quando mais novo, sempre almejei não ser temido por todos, e só agora percebo o quão tolo fui.
E agora estou no mesmo ambiente que outro ser humano, que não me teme, e nunca me senti tão desconfortável e irritado.
Com a mão erguida, toco-lhe a testa. A pele quente e molhada de suor, me deixando mais consciente da enfermidade da garota. E da culpa.
As bochechas vermelhas, e a tremedeira que tanto me incomodava, realmente tinha um motivo.
_lhe deram algum remédio ou tônico? _Pergunto já me afastando.
Demora-se alguns instantes até ela assimilar a pergunta.
_Sim.
_Sabe o que era? _Questiono tentando manter a calma, esperando com paciência sua demora a responder.
_N-não. _Responde com dificuldade.
Respiro fundo, controlando o repentino pânico que sinto.
Com exceção do cachorro, e alguns outros casos raros, não tenho nenhuma experiência com pessoas enfermas.
_Como se sente? _Questiono-a.
_Acho... Que estou b-be... _Diz evidentemente tentando manter a voz firme, mas sendo interrompida por um ataque de tosse.
Suspiro resignado, tomando nota que é inevitável tentar fugir. Vou ter que impedi-la de sucumbir ainda mais.
Com a tosse já sob controle, ela me fita nos olhos. O rosto vermelho e suado, a agonia em sua expressão.
_É... Me parece que está espantosamente bem. _Digo ironicamente, me referindo a seu comentário anterior.
Diante da provocação, ela abaixa a cabeça, mas não antes que eu veja um pequeno sorriso se formar em seus lábios.
"Efeito do remédio."
_Qual for o remédio que lhe deram, é forte demais. Não posso medica-la. Já está dopada demasiadamente. _Informo ainda encarando-a. Tento pensar no que faço primeiro.
_Não estou d-dopada. _Diz levantando a cabeça e me encarando com petulância. _E não quero... mais nenhum remédio.
Ao terminar de fazer suas objeções, ela cruza os braços diante do corpo. Do mesmo modo que uma criança mimada faria, ao receber uma reprimenda.
Observo o quanto "não dopada" ela está. E diante dos calafrios que aparenta ter, as gotículas de suor salpicando a testa e as bochechas, os olhos vidrados e sonolentos.
Não consigo decidir se está dopada, ou extremamente doente.
Me dando por vencido, ignoro a garota, e assim dando o assunto por encerrado.
Lembro-me da bandeja de prata sobre o criando-mudo, que se encontra exatamente ao lado do sofá com a garota.
Encaro a mesinha, onde repousa a bandeja contendo xícaras, e o bule de porcelana.
Sem dizer nada me ocupo de servir uma xícara do líquido fumegante, em quanto a garota permanece calada.
Ainda com o silêncio reinando, entrego o pequeno pires com a xícara por cima, nas mãos da garota.
Ela encara o líquido, a hesitação presente em sua expressão. O vapor dançante chama sua atenção por alguns instantes, antes que finalmente leve a peça de porcelana até os lábios.
Me afasto, voltando para a poltrona que antes ocupava.
Mesmo não sabendo qual próxima ação tomar, espero um pouco impaciente, a garota esvaziar a xícara.
O que parece se tornar impossível de acontecer, já que ela transforma o ato de beber um chá, num gesto longo e tortuoso.
Aproveito a falta de atividade, para observa-la.
Mesmo não tendo uma beleza invejável ela é bonita, de um modo um pouco modesto.
Os contornos do nariz, queixo, as maçãs do rosto, sempre suaves, sem carregar as expressões, lhe dando assim um ar inocente.
"Inocente, não inofensivo."
Repentinamente noto um fato que quase tinha-se me passado despercebido.
Nunca vi seus cabelos, nem mesmo sei a cor.
Como várias mulheres aderiram o hábito quase inútil de usar toucas ou chapéus para cobrir os cabelos, se torna um tanto impossível vê-las sem tal adorno.
E ao que parece a criatura aderiu o mesmo costumes de algumas damas da alta sociedade.
Respiro fundo, encarando a touca horrorosa de lã crua ,sobre sua cabeça.
"Alguém deveria colocar fogo nisso."
Se passam alguns segundos, até que a lerdeza da garota volta a me incomodar.
Encaro-a, enquanto a mesma permanece alheia a tudo que não seja o objeto em suas mãos.
Aproveitando a inatividade e o silêncio, me encarrego de voltar aos papéis, que não faço ideia de como ou quando, foram parar em meu bolso.
Com os papéis já em minhas mãos, relanceio um último olhar na garota, antes de começar a lê-los.
Se passam vários minutos, e o assunto só fica mais interessante, a cada linha lida, começo a entender melhor, qual foi o caminho que Raul tomou para o fracasso.
E até que não posso culpa-lo tanto. Ao que parece o azar do Visconde, é grande. Mesmo em investimentos que tinham tudo para dar em conquistas, deram em fracasso.
Contínuo a leitura, até que algo me chama a atenção.
"Conta bloqueada?"
Ele tem dinheiro mas não pode sacar, a conta está bloqueada. Não o pertence completamente.
Normalmente contas bloqueadas, vem de heranças deixadas por parentes. Que não acham que certo indivíduo tenha capacidade para receber certa quantia de dinheiro, antes de certa idade.
Por exemplo, um Visconde que esteja muito doente, e que tem um filho muito novo, e acha que o pirralho não terá capacidade de herdar uma herança, antes dos vinte anos. A conta é bloqueada.
Se decretado no testamento tal ordem, o filho não receberá nada até os vinte. E até completar tal idade tudo fica aos cuidados de alguém escolhido pelo morto.
Mas só não entendo uma coisa, de acordo com este mesmo papel, Raul já recebeu sua própria herança.
Volto ao começo da folha, vendo se não deixei nada importante passar.
"Se a herança não é do Raul, de quem será?"
Depois de me certificar, que realmente não deixei nada passar, começo a ponderar qual o destino decretado para essa herança.
Raul não tem irmãos, nem mesmo uma irmã. Talvez um primo distante? Um tutelado?
"Ou o antigo visconde teve um filho bastardo?"
Impossível... Mesmo que haja um bastardo, os homens da aristocracia jamais exercem nem mesmo uma ajuda descente a seus bastardos. Quem dirá uma herança.
"Deve haver outra explicação."
"Tem que haver."
Respiro fundo, deixando de lado os papéis, e levantando a cabeça.
E a esperança que a garota me responda algo sobre tal assunto, desaparece no momento que fito a criatura.
"Só pode ser brincadeira."
Respiro fundo, desejando que o ar puro nos pulmões acalme-me um pouco.
Tão simples quanto uma rosa florescendo no interior de um vulcão, a garota pegou no sono no sofá de um possível estrangulador de donzelas indefesas.
Eu nunca machuquei uma mulher na vida, e nunca machucaria, mas ela não sabe disso.
"E mesmo assim adormeceu na toca do lobo."
Jogo a cabeça para trás, e sou incapaz de reprimir um grunhido de frustração.
Fico em silêncio, tentando manter meus pensamentos em ordem, e quando isso se prova inútil, me levanto.
Pego a manta no braço da poltrona que antes ocupava, e caminho até a garota.
Pela posição _Quase deitada sobre o braço do sofá, e ainda com as pernas fora do mesmo. _em que ela adormeceu, fica bem claro que foi por acidente.
Estendo a manta sobre a garota, me abaixo um pouco, e com um movimento cuidadoso porém calculado para não haver muito contato, coloco suas pernas sobre o sofá. Deixando-a numa posição mais confortável.
Observo-a se ajeitar por si mesma, se agitando um pouco, e depois voltando a dormir pesadamente.
Sem pedir permissão _Já que isso me parece impossível, estando ela dormindo. _coloco minha mão esquerda em sua testa.
Como da primeira vez, a pele continua úmida, porém menos quente. Uma mudança insignificante, mas já é alguma coisa.
Sou livrado um pouco da culpa sobre mim. Mas não da responsabilidade.
Se passam alguns segundos, então me retiro da sala, deixando-a dormindo tranquilamente.
[...]
"Acorda... Acorda... Acorda..."
O rosto delicado se contorce numa expressão sonolenta, sendo seguido por um bocejo.
Segundos depois ela abre os olhos, que brilham como esmeraldas com a luz bruxuleante do fogo.
Demora-se alguns segundos, até ela tomar conta de minha presença.
_Está se sentindo melhor? _Pergunto com a voz o mais calma possível.
Mesmo com minha tentativa de ser afável, ela parece se assustar, sentando-se imediatamente, com a coluna ereta e rígida, como se fosse feita de mármore.
_Ah... Me des-culpe.... Não foi minha intenção... Ah não acredito que fiz isso. _Profere tudo em um único fôlego. Palavra atropelando palavra.
Me surpreendo, como alguém no estado dela, pode dizer tantas palavras com tanta veemência.
_Está tudo bem. Se acalma. _Tento acalma-la, usando o mesmo tom que usaria com um cavalo agitado.
E para minha sorte, surtiu o mesmo efeito.
Ela abaixa a cabeça, do mesmo modo que uma criança de cinco anos, e murmura algo que demoro para entender do que se trata de um pedido de desculpa.
_Como está se sentindo? _Pergunto, com o objetivo de esquecer o assunto interior.
E como se eu nada tivesse dito, ela continua na insistência chata de continuar o assunto.
_Me desculpe... Eu não pretendia... Acabei dormindo. _Diz entre pausas sofridas. O rosto totalmente rubro por um provável constrangimento.
_Sua voz não mudou muito. _Faço uma pausa, observando o incômodo no seu rosto. _E sobre suas desculpas, não tem nada a ser desculpado. E assunto encerrado.
Contínuo imóvel e impassível, concentrado em suas diversas reações.
Me parece estranho alguém que seja tão legível, e fácil de decifrar.
Cada sentimento dela é tão fácil de ver, como se estivesse escrito numa folha de papel.
Se passa um minuto inteiro com o silêncio predominando. Até que finalmente ela decide por quebrar o silêncio.
_Você... Chegou a ler os papéis? _Indaga me encarando direto nos olhos. Sem nenhuma intimidação.
Por um motivo que desconheço, sinto uma estranha satisfação
_Sim, cada linha. _Respondo com a voz novamente intimidadora e fria.
_E entendeu tudo? Tem alguma dúvida? _Indaga eufórica.
Com menos delicadeza que o esperado, ela se inclina levemente para frente. Deixando sua euforia transparecer em cada expressão.
E acabo por me deixar contagiar.
_Tenho algumas perguntas. Mas a primeira é, aonde conseguiu exatamente isso. São informações um tanto importantes.
Então em questão de segundos, vejo a garota literalmente ser curada tamanha sua animação. Se eu não soubesse que está tão doente, não acreditaria.
_Ah. Então... É que peguei no gabinete do Visconde, foi de madrugada. Escolhi os papéis que pareciam mais importantes. _Diz em uma única jorrada de palavras.
Segundos depois de falar tudo, ela respira fundo, recuperando o ar perdido. E não me passa despercebido sua pequena expressão de dor.
_Fala devagar. _Informo calmamente.
Com o entusiasmo contido ela acena com a cabeça, mordendo o lábio inferior em seguida, como se o ato a ajudasse a se acalmar.
_O que quero saber é, como que você conseguiu entrar e pegar papéis tão importantes. Não tem algum cofre? Gavetas com segurança? _Indago, sentindo-me um pouco agitado na espera da resposta.
Isso parece pega-la de surpresa. Com um suspiro longo, ela leva uma das mãos até a bochecha, espalmando a mesma com a pequena mão.
_Ah... É isso. _Indaga como se isso lhe causasse sofrimento.
_Então? _Pergunto tentando incentiva-la a continuar.
Vários segundos se passam, até ela finalmente responder.
_Tem um cofre... E os papéis estavam lá. Mas... A porta estava aberta, Raul deve ter esquecido. _Informa com a voz firme, mas sem me encarar diretamente.
"Mentirosa, pequena Dalila."
_Ah... Muita sorte a sua. Não acha? Justo quando precisa de informações, Raul deixa o cofre aberto. _Sorrio no final da frase, deixando claro que não acredito em nada que ela disse.
E me surpreendo quando ela suspira derrotada, e me encara sorrindo irônica. E espantosamente o sorriso a deixa menos infantil.
_Tá... Okay... É mentira. O cofre não estava aberto... Eu que abri, eu sei a senha. _Diz fazendo movimentos desconexos com as mãos, apenas parando-as no final da frase.
"Sabe a senha?"
Com todo autocontrole que adquiri durante anos, mantenho a calma, respirando lentamente, e me concentrando em esconder a surpresa.
_ Raul é burro a esse ponto? Pelo jeito qualquer empregado da casa tem acesso a documentos importantes e ao dinheiro. _Digo com a voz fria, e completamente consciente do quanto minha aparência pode se encontrar macabra.
Quando me sinto irritado, tenho uma inclinação a ficar assustador, e um pouco fora de mim. Nasci para ser um monstro, e nem mesmo máscara nenhuma é capaz de esconder isso.
_Só eu sei a senha. E o Visconde não faz a mínima ideia. _Explica calmamente, ainda agindo de modo descontraído. Sem nenhuma pitada de medo nem mesmo receio.
_E como justo você sabe a senha? _Indago entredentes me sentindo ainda mais irritado.
E para mais uma surpresa para o "Fantasma dá Ópera", ela cruza os braços sobre o busto, e me encara de modo sério e indiferente.
_Já te dei a informação. Não é preciso te contar como consegui. _Diz com a voz controlada e baixa. Como se eu fosse uma criança.
"Calma Erik... Seja coerente."
_É só me dizer onde consegui a porcaria da senha. Não é tão complexo.
Mesmo eu estando totalmente consciente que não preciso saber tal coisa, não consigo ser razoável. E acabo agindo por extinto. Como um animal provocado.
_Eu te digo... Se me dizer seu nome. _Diz com a voz levemente tremida. Não sei se pela dor da garganta, ou por receio.
Com um suspiro, esfrego a parte saudável do meu rosto com uma das mãos. E por mais que eu tente não consigo me acalmar completamente.
"Assuste ela e está tudo acabado."
_Para que quer meu nome? _Indago com a voz transparecendo calma. Falsa.
_Não sei, só acho injusto, vou ficar me referindo a você como Fantasma sempre? É estranho. _Sua forma de dizer é tão calma e baixa que me lembro que ela não está com saúde. Em parte por culpa minha.
Por que não? É só um nome, não a nada que ela possa fazer com um nome. Até mesmo Raul sabe meu nome.
_Erik, meu nome é Erik.
Espero por sua reação, que não passa de um inclinar de cabeça e depois uma leve concordância.
_Quem me deu a senha foi o antigo Visconde, o pai do Visconde atual. Eu era criança na época._Diz calmamente. Mas não me passa despercebido o relance de tristeza em seu rosto.
_Por que ele te daria a senha? _Indago me sentindo perplexo.
Não me para de passar pela cabeça o por que, um grande Visconde, daria a senha para a filha de uma das empregadas. Qual seria o motivo?
E não demora-se a ela responder.
_O antigo Visconde era justo. Ele derrubou um brinquedo que me pertencia no chão. Quebrou, então ele repôs. _Faz breve pausa, me encarando atentamente antes de continuar. _Me deu a senha, e mandou que eu pegasse o novo brinquedo no cofre.
"Um brinquedo?"
E... Eu não acredito... A porcaria de um brinquedo? O antigo Visconde só podia ser um tolo.
A prole de um serviçal, quase sempre pequenos ladrõezinhos. Dar a confiança de um cofre a uma criança?
Não aguento e acabo por perguntar.
_Por que ele faria isso?
Ela demora a responder , mas acaba por fazê-lo.
_Não sei, eu era uma criança. Mas ele acreditava fielmente na inocência... Para o antigo Visconde, seria impossível uma criança fazer um ato tão desprezível. Como roubar.
Depois de seu curto discurso, ela me encara. Piscando diversas vezes antes de bocejar.
_Acho melhor levá-la embora. _Informo-a já me levantando.
Já de pé, impeço que ela faça o mesmo.
_Espera aqui, vou pegar uma capa mais quente para você. _Informo, já me colocando em movimento.
E antes que ela possa protestar ou dizer qualquer coisa, já estou no lado de fora da sala.
Com suspiro de alívio, começo a caminhar em meio ao breu.
O ar gelado dos corredores escuros, me trazendo uma paz indecifrável.
Eu só espero que tudo dê certo, diante dos problemas que tenho certeza que me esperam.
No momento minha única prioridade é levar essa menina de volta para mansão de Raul, e que ela chegue sã e salva. E não pior que agora.
"Só espero que até o final disso tudo, eu ainda esteja são."
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