Adora não dormiu nem 4 horas depois que chegou da famigerada balada onde encontrou sua ex bêbada. Já era de se esperar que nesses dias ficaria assim, tomada pela insônia e ansiedade mesmo estando morta de cansada.
Afinal, faltavam 3 dias para Catra ir embora.
Ou não ir embora, no caso, e ouvir sua proposta. Isso não saía de sua cabeça. Catra não saía de sua cabeça, na verdade.
Depois de relutar sem sucesso contra os pensamentos inquietos na cama, decidiu levantar e preparar um chá de camomila. Sentou no sofá e ligou a televisão em algum canal aleatório com a programação tediosa de domingo. Não conseguia parar de pensar nela, era como se houvesse um imã gigante a puxando para aquele maldito dormitório, um que ela estava solenemente tentando ignorar. Bebeu alguns goles do chá em busca da calmaria prometida no sachê que Perfuma gentilmente deu para ela. Obviamente não funcionou, não porque era mentira, mas, porque seu nível de tensão era muito maior. Precisaria de um caminhão de camomila para acalmar.
Perdeu a paciência com a própria tentativa inútil de ignorar seus sentimentos e pegou o celular. Não queria ser invasiva, portanto, não iria simplesmente aparecer por lá. Umas mensagens para saber como ela estava, talvez, acalentariam sua alma:
oi, capitã da força da cachaça hauhauh
me dá um sinal de vida quando acordar só para eu saber se tá tudo bem
e bebe bastante água hj
toma um remedinho de ressaca também
amanhã estará novinha em folha p despedida <3
Obviamente não obteve resposta imediata. Pelo menos já tinha aliviado um pouco de sua aflição. Ela iria responder em algumas horas e tudo bem. Se precisasse, ela iria chamar, não tinha necessidade de alimentar essa vontade afobada de encontrá-la, até porque Catra de ressaca era mais ranzinza que o normal.
Passaram 6 horas desde a mensagem, que não foi respondida, diga-se de passagem.
Ok. Vai ver ela não pegou o celular ainda. Tá tudo bem, não precisa entrar em pânico por uma banalidade dessas.
Ou precisava, sim...
A quem queria enganar? Estava enlouquecida de preocupação, sedenta por uma resposta, doida para vê-la.
Lembrou imediatamente do que Scorpia havia falado, sobre dar o tempo que Catra precisasse. Querer invadir o dormitório assim já a faria começar com pontos negativos, certo? Tinha que ter uma forma de amenizar essa inquietude. Numa aposta, mandou também mensagem para a parceira de crime:
Scorpia, pelo amor de deus
Pode checar se a Catra tá viva?
Aliás, vc tá viva? Tbm estava alucinada ontem
Scorpia:
Oie!
eu tô viva, cheguei agora da casa da Perfuma pq dormi lá
e Catra ta viva tbm, acabou de sair do quarto dela aqui com a maior cara de ressaca kkkkk
A âncora que atracou a angústia no seu coração finalmente foi retirada e Adora pôde respirar em alívio. Catra não entrou em coma alcóolico depois que ela foi embora. Ainda bem.
Só teve alguns segundos para suspirar aliviada e mais mensagens chegaram:
Scorpia:
agora ela ta aqui xingando todos os seres vivos do planeta
menos vc, q evolução o:
ela na vdd acabou de me dizer q lembra q foi vc quem a trouxe p casa
só n lembra exatamente como, ou do q rolou
MEU DEUS ADORA
ELA FALOU Q VC Q BOTOU ELA NA CAMA E DEU UM BEIJINHO NO ROSTO
Q COISA MAIS FOFA
Provavelmente Catra não fazia ideia que Scorpia estava explanando tudo em tempo real. Caso contrário, ela jamais deixaria isso chegar à ciência de Adora. Permitiu-se sorrir boba ao imaginar sua ex conversando com a melhor amiga ainda com a cara amassada e a voz rouca de sono.
Incrível como uma cena tão simples já fazia seu coração bater forte.
E mais mensagens:
Scorpia:
fudeu
ela viu seu nome na minha tela
agoruahsufgo
isdjigo o s
Adora começou a rir. Que porra estava acontecendo? Será que a resmungona estava tentando pegar o celular da mão da amiga?
É. Com certeza era isso.
E esse momento descontraído era mais uma prova de que Catra estava bem e é só isso que importa. Sorte que ela e Scorpia nunca falaram sobre o plano por mensagens, não há nenhum histórico perigoso para as mãos curiosas de sua ex. Aproveitando o seu novo humor mais leve, Adora respondeu na conversa:
para de tentar pegar o telefone da Scorpia, Catra
deixa de ser fofoqueira
Depois de poucos minutos, veio um áudio:
“Oi, Adora, sou eu. Tô bem, tô viva, graças a você. Valeu por te me trazido para casa, seja lá com que milagre tenha conseguido fazer isso... E outra coisa: essa palhaçada aí que a Scorpia te passou, do beijo no rosto, eu não falei tão meloso assim como ela fez parecer, tá? Eu só comentei normal porque... Porque foi a única coisa que lembrei, é... E essa traidora fica querendo me queimar. Enfim... Hoje vou vegetar sozinha no meu quarto até essa dor de cabeça e esse enjoo fodido passar, mas, amanhã antes do jantar de despedida, você pode passar aqui se quiser... Para me ajudar a fazer as malas... Mas só se quiser, não se sinta na obrigação, nem nada... E obrigada, de novo, tá? Um beijo.”
A voz de Catra estava levemente ofegante, provavelmente por causa da batalha pelo celular com Scorpia. Também estava meio arrastada, talvez pelas dores que sentia. Contudo, tinha lá no fundo uma ternura, uma preocupação em demonstrar à Adora que estava mesmo agradecida pelo gesto na noite anterior.
Ela respondeu logo em seguida por texto, aceitando inclusive o convite para chegar mais cedo amanhã. Esse pedido, sim, foi efetivo para acalmar sua euforia de querer correr para lá. Hoje não a veria, mas só de ter ouvido sua voz estava bem. Conforme sua ansiedade foi se esvaindo, aí veio a fome, o cansaço, o sono. Pelo visto, também seria o seu momento de vegetar em casa. E ainda tinha o bônus de ser feriado no dia seguinte, realmente poderia dedicar parte do tempo à sua ex.
Foi um bom e merecido dia de descanso, tanto físico quanto mental.
Graças a ele, estava renovada, mais do que pronta para olhar bem nos olhos de Catra e lançar o sorriso mais genuíno que tinha e, em pequenos gestos, já começar a atiçar mais ainda o desejo dela de ficar.
Estava na porta do apartamento esperando ser atendida, tinha acabado de bater. Ouviu sua ex pedindo para esperar um minuto e respirou fundo, segurando o tal charme que provavelmente a morena chamaria de ‘sorriso idiota’ bem na sua cara. E tudo bem. Esse era o jeito dela de dizer que gostava, Adora sabia disso.
Catra abriu a porta e a recebeu com uma blusa de manga curta larga, shorts de dormir e cabelo bagunçado. No meio da tarde. Linda, como sempre.
– Oi, Adora – o cumprimento típico. O tom, porém, era um pouco mais nervoso, como se estivesse escondendo algo por trás do aceno discreto e sorriso torto. – Ainda bem que veio, porque Lonnie e Scorpia me deixaram na mão com a arrumação.
– Não tem problema, tô aqui para isso, né – a loira respondeu e sorriu. Não o sorriso que estava planejando porque foi pega de surpresa pela insegurança da outra. Mesmo assim, foi um simpático.
A morena tirou o corpo da frente da porta para que a ex entrasse. Enquanto caminhavam para o centro da sala, onde já tinham umas boas pilhas de roupas bem dobradas, Catra coçou a nuca e continuou encarando-a como se quisesse avisar algo.
– Pelo visto, já adiantou bastante coisa – Adora comentou distraída colocando as mãos na cintura. – Começou muito cedo?
– Na verdade, não – Catra cruzou os braços forçando uma naturalidade. – É que eu tive ajuda da S-
– Ei, já que você falou que posso ficar com uma blusa sua de lembrança, pode ser essa? – Uma voz não muito estranha, falando no idioma local com um pouco de sotaque, vindo do quarto de Catra.
Adora chegou a encarar a ex e arquear a sobrancelha pedindo silenciosamente para contar quem estava ali com ela. Não precisou, já que a dona da voz saiu caminhando casualmente para a sala com o olhar vidrado em uma blusa aleatória e só parou quando levantou a cabeça e a viu.
– Oi, Sara. – Até tentou forçar um sorriso, mas a maneira como batia o pé no chão freneticamente e mantinha as mãos na cintura era mais intimidador.
– Oi, quanto tempo! – A italiana jogou a blusa em um dos braços para deixar a mão livre e cumprimentá-la.
Antes que abrisse a boca, Catra colou ao seu lado e apoiou a mão em seu ombro, suplicando em silêncio para que não repetisse o escândalo aleatório do teatro. Adora apenas lançou um olhar afirmativo e voltou a encarar Sara, com uma fisionomia um pouco mais amigável, correspondendo o cumprimento. Não iria repetir a cena. Jamais. Aquilo foi completamente errado e não tinha esse direito. Nem se namorassem ainda.
Era só um pouco inevitável a pontada de ciúme que surgia toda vez que olhava para essa mulher.
– Sim, faz um tempo... – A loira respondeu com uma risada breve. – Juro que dessa vez não vou dar uma de doida, tá?
– Por favor, só vim me despedir mesmo, nem vou atrapalhar muito vocês... – A italiana acompanho a risada, ainda visivelmente tensa.
– A Sara passou aqui para se despedir e acabou se empolgando na hora de me ajudar – Catra complementou, também em tom simpático, na medida que alternava o olhar entre a ex e a amiga gringa.
Era impressão sua ou ela estava justificando indiretamente que não causou esse encontro de propósito? Ela estava com receio de magoar Adora? Era até engraçado pensar nisso, em como, há alguns meses, ela justamente usaria essa situação para inflar os ciúmes até que explodisse de raiva. Não era o caso agora. Estavam em termos reais de melhora, de caminhar para um respeito mútuo aos limites. E era justamente por isso que não deveria nem se incomodar em ver Sara por perto, é a vida de Catra e ela faz o que quiser, encontra quem quiser.
Sara não era uma ameaça, nunca foi. Qualquer um que fez o tempo de Catra mais feliz nessa jornada deveria deixar Adora satisfeita, independentemente de qualquer coisa. Independentemente de qualquer ciúme sem sentido.
– Não tá atrapalhando nada, pelo menos não a mim, eu só vim ajudar também. – Adora disse depois de voltar a sorrir mais genuinamente enquanto encarava Sara. – E você fez parte da história dela nesse intercâmbio afinal. Nada mais justo que uma despedida, não é?
Sentiu a mão de Catra apertar um pouco mais seu ombro e quando a fitou, viu o par de olhos azul e âmbar que mais ama brilhar junto com um sorriso largo que se formava no rosto cheio de sardas. Uma forma de expressar o quanto ela estava orgulhosa de sua atitude, a loira imaginou. Durou milésimos de segundos, mas, foi o suficiente.
Sara ficou por mais tempo, pelo visto se sentiu mais confortável depois da garantia da mais alta. Acabou não ficando tão entrosada nos assuntos que, empolgadas, a gringa e sua ex puxavam. Na maioria das vezes acenava com a cabeça por educação ou lançava alguns sorrisos.
Decidiu deixar que elas ficassem mais envolvidas no papo enquanto quebrava a cabeça tentando achar uma solução para enfiar tanta coisa dentro de apenas duas malas. Como Catra tinha feito isso para vir? Adora apostou que ela veio com espaço já escasso do Brasil e comprou outras peças ao longo do intercâmbio, que agora não fazia ideia de onde enfiaria.
Mais duas horas nesse cenário e Sara decidiu ir embora. Despediu-se educadamente de Adora e foi até a porta do apartamento acompanhada de sua ex.
As duas falavam alguma coisa uma para outra em um tom mais baixo, algo que a loira não conseguia entender muito bem pela distância que estava. Pela segunda vez naquele dia, o ciúme começou a aflorar. Uma certa insegurança de que, talvez, estivessem trocando palavras que propositalmente não queriam que ela escutasse por causa do teor.
Fechou os olhos e respirou fundo. Não era da sua conta. Será que era tão difícil entender? Soltou o ar e automaticamente voltou a fitá-las.
Catra tinha os braços envolvidos na cintura de Sara, que a agarrava pelo pescoço. Um abraço longo, bem, bem apertado. Por que não conseguia parar de olhar? O esforço era grande, não era para se sentir mal, não era para ter esse sentimento... E quando achava que não podia ficar pior, Sara segurou o rosto de Catra com as duas mãos e deu um beijo na testa dela. E Catra? Fez o mesmo.
Ela. Fez. O. Mesmo.
Catra não a deu nenhum beijo, nem no rosto, nem na mão ou na testa, mesmo depois que fizeram as pazes.
E lá vai mais uma técnica de respiração para espantar o ciúme que virava inveja agora.
A morena deixou que a gringa saísse, fechou a porta e caminhou na direção do sofá em que Adora estava sentada estática.
– Tá tudo bem? – A de cabelos curtos sentou ao lado da ex e delicadamente encostou o próprio ombro ao dela na tentativa de tirá-la do transe.
“Vamo, Adora. É só responder que sim, tá tudo bem... Tá tudo bem. Sem surto.”
Começou a batucar a ponta dos dedos na coxa e virou para encarar a mais baixa.
Era só fingir que estava levando isso de boa. Era só... Foda-se:
– Achei lindo esse abracinho de vocês. E o beijo então? Nossa... Pensei que fossem se comer na minha frente depois.
Sua voz ácida, cheia do sarcasmo que não queria que saísse. Não conseguiu evitar, não depois dessa cena toda.
A de olhos heterocromáticos imediatamente colou a lábio inferior ao superior, tentando manter uma fisionomia séria no meio da grande vontade de rir. O que não deu certo por muito tempo.
– Meu Deus, Adora, você estava morrendo de ciúmes! – A frase veio escandalosa, assim como as risadas em seguida.
– N-não é isso! – A raiva completamente substituída pelo constrangimento. Adora podia apostar que estava com o rosto vermelho de vergonha agora, ótima combinação para os olhos arregalados de pânico. – Eu demorei um parto para te convencer a me dar um abraço, e nela até beijinho você dá!
– Você quer um beijinho, é isso? – Catra perguntou ainda risonha, levando as mãos às laterais de Adora para fazer cócegas.
A gargalhada típica da mais alta ecoou pela sala ao mesmo tempo que, sem sucesso, tentou desviar das mãos de sua ex para amenizar a tortura.
– Não! Para, sua idiota! – Adora tentou soar ameaçadora enquanto perdia o ar e apertava os olhos de tanto rir.
Catra parecia estar ainda mais movida com a gargalhada da outra. Sem perceber, a loira estava deitada com as costas no sofá e sua ex apoiada por cima de seu corpo, sem parar de fazer cócegas. Ela mesma só percebeu a posição quando sentiu as mãos de Catra pararem e o peso do corpo dela cair totalmente sob o seu. A morena ainda ria, mesmo deitada com a cabeça em seu peito.
E as risadas iam morrendo e morrendo até virarem respirações mais calmas. Um silêncio confortável e triste ao mesmo tempo. Poderia ser o último contato físico delas.
Na hora o seu ar faltou. Adora envolveu os braços no corpo da outra e a aninhou. Sua respiração não estava mais ofegante só pelas risadas que sua ex arrancara de si, era também pelo descompasso que o abraço repentino dela a causou. Sentiu os olhos começarem a arder, anunciando lágrimas teimosas. Foi forte e as segurou.
– Eu quero que seja muito, muito feliz tá? – A de cabelos curtos confessou com a voz baixa, de quem expunha uma certa vulnerabilidade, enquanto envolvia os braços na cintura de Adora. – Aqui é mesmo o seu lugar... Você já tinha esse brilho fascinante antes, mas... Aqui você é o Sol. Continue assim e encontre sua felicidade.
Não tinha como mais. Suas lágrimas vieram silenciosas escorrendo por seu rosto. Se segurou com todas as forças para que seu corpo não estremecesse embaixo do de sua ex.
Com toda certeza do mundo não podia perder essa mulher de novo. Não tinha capacidade nem de pensar em como seria. O que faltava para ser feliz completamente estava bem ali, por cima dela, abraçando-a.
Ainda não podia fazer a proposta, não antes de pegar o maldito do papel oficializando a extensão para o processo seletivo da bolsa. E como só saberia se deu tudo certo amanhã, era melhor não contar e criar expectativas sem fundamento.
– Ei, Catra – Adora controlou a voz para dizer serena em meio ao choro silencioso. – Me responde uma coisa?
– Uhum... – Ela aninhava o corpo ainda mais contra o da ex, encostando a testa no espaço entre o ombro e o pescoço dela.
– Existe alguma coisa nesse mundo que te faria ficar? – Adora soltou. Uma das mãos acariciava as costas da menor e a outra, o couro cabeludo.
– Eu... – A morena levantou o rosto e a encarou surpresa. Estava completamente sem reação. – Eu conheço essa pergunta... Ela já foi minha...
– E qual é sua resposta? – A loira continuava acariciando a cabeça da ex, uma forma de mostrar que não queria pressioná-la, que a intenção da pergunta não era a mesma que a de Catra anos atrás, era uma resposta sincera que procurava.
– Existe. – A mais baixa deu um sorriso triste ainda encarando e limpando as lágrimas do rosto da outra mulher com a ponta do polegar. – Um milagre no qual um ser mágico me oferece um desejo e eu posso pedir pra ele me dar tempo e dinheiro o suficiente para ficar pelo menos mais um semestre. Isso é o que me faria ficar.
Adora riu brevemente, induzindo Catra a fazer o mesmo. Era bom saber que ela tinha tudo para ser esse ‘ser mágico’ e estava morrendo por dentro por não poder contar nada ainda.
– Você é... – A mais baixa cochichou e deu um beijo estalado na bochecha da loira. – A minha coisa mais linda.
Ali Adora morre, mas passa bem. Atônita com o que acabara de acontecer e também com o apelido nostálgico.
Antes que pudesse reagir, ou falar, Catra já tinha saído de cima de seu corpo e esticado as mãos para ajudá-la a também levantar. Ela tinha um sorriso vago no rosto, um que escondia o peso desses últimos momentos que passavam antes do embarque.
Aceitou a ajuda da ex e levantou do sofá, ficando em pé de frente para ela, para ouvi-la falar:
– Preciso de você para me ajudar a colocar todas essas coisas do chão dentro das malas em... – Olhou para o relógio na parede do lado direito – 40 minutos. É o tempo que temos até eu ter que começar a me arrumar para o jantar de despedida.
Espantando a tristeza ocupando a mente com tarefas inadiáveis e sorrisos forçados. Tudo para não desabar. Essa era a tática do dia para Catra e Adora percebeu.
As malas foram devidamente arrumadas.
A parte de fechar que foi mais difícil e só foi possível graças à força bruta da mais alta que literalmente socou alguns itens para que houvesse espaço o suficiente para as duas extremidades do zíper se encontrarem. Claro, usou o momento para impressionar sua ex fingindo casualidade ao flexionar os braços.
Esperou que a mais baixa se arrumasse para caminhar com ela até o restaurante, onde seus amigos já esperavam ansiosos. Atrasaram um pouquinho? Talvez. Culpa da Ana Catarina que trocou a blusa umas cinco vezes para no final acabar vestindo a da primeira tentativa.
Ninguém reclamou do horário. Era visível como todos estavam igualmente comovidos com a despedida e queriam, acima de tudo, aproveitar os últimos momentos com a mulher de cabelos curtos e olhos coloridos. Para isso, foram ao restaurante indiano que Catra mais frequentou nesse período de intercâmbio, o favorito dela.
Não foi um evento muito demorado, até porque no dia seguinte todos teriam que trabalhar. Depois de umas 3 horas por lá, com alguns já anunciando que era melhor se prepararem para ir embora, Mermista insistiu em fazer um discurso emocionante sobre como Catra foi a pessoa mais interessante que ela conheceu nesse período.
– Sério, mulher, eu não sei o que vou fazer sem você aqui comigo! – Com a voz embargada, a de mechas azuis levantou abrupta da cadeira e foi até amiga para abraçá-la. – Se não vier me visitar, vou mandar uma bomba por correio para que ela exploda nessa sua cara ridícula
“Mermi é uma artista e tanto... Ou será que ela não tem fé em mim para conseguir fazer Catra ficar e já tá sofrendo com a ida permanente?”
Catra também levantou para se envolver no abraço e rir chorando no ombro da nova grande amiga.
– Aqui – Glimmer levantou também e entregou uma sacola de presente para a morena de cabelos curtos. Sua voz era quase tão instável quanto a de Mermista. – É um presente de todos nós para que lembre que sempre será do nosso grupo BR, até mesmo quando não estiver aqui.
– Não acredito... – Catra indagou entre dentes, fingindo uma raiva em meio à voz chorosa e a um sorriso emocionado. – Ai, sério! Vou matar vocês por me fazerem borrar meu olho de gato perfeito.
Adora olhou em volta só para confirmar se era a única já com os olhos marejados por toda emoção da cena. Não era. Todos estavam com as mesmas fisionomias de que não era esse o fim que queriam. Entrapta, Scorpia e Lonnie sofriam menos, até porque estavam envolvidas no plano. Já os outros, os que eram alheios à possibilidade de sua ex ficar... Esses sofriam tanto quanto Catra ali, abrindo o presente.
– Um colar com pingente com as iniciais ‘GS’ – A morena deu uma risada alta ao encarar o colar de prata que acabara de desembrulhar. – Deixa eu adivinhar... ‘Gata Selvagem’?
– Exatamente, minha cara gata selvagem – Sea Hawk respondeu estranhamente quieto depois de fungar, congestionado pelo choro.
– Ou pode ser de ‘gay sapatão’, você escolhe – Lonnie comentou no tom mais casual e estável de todos até agora. Ela sorria para a colega de quarto.
– Pode ser, gosto também! – Mais uma risada da mulher de olhos coloridos.
O segundo e último embrulho era um porta-retrato com a foto que tiraram no dia do aniversário de Bow. Todos reunidos no lago, fazendo diversas caretas diferentes e visivelmente extasiados de alegria.
Esse, quando Catra viu, foi o estopim. Ela cobriu o rosto com as duas mãos e deixou o choro vir por alguns segundos. Ao recuperar o fôlego, começou:
– Gente, foi muito muito bom conhecer vocês, sério... Por incrível que pareça, por mais resmungona que eu seja algumas vezes, vou sentir muita falta disso tudo aqui. Desse caos que é o Sea Hawk falando, das audácias da abusada da Glimmer, do otimismo irritante do Bow, que pode dar as mãos para Perfuma e Scorpia que são igualmente alegrinhas. Da minha melhor dupla de crimes que sempre sempre vai ser a Mermista. Da Lonnie, também, fazendo de tudo para acabar com a minha paz, dos assuntos muito aleatórios da doida da Entrapta e...
Faltava falar só de uma pessoa... Adora ficou encarando a ex paralisada. Que tortura essa despedida! Era difícil ficar quieta na mesa, só assistindo seus amigos e sua ex sofrendo por um embarque que, se os deuses quiserem, não vai acontecer.
E Catra continuou depois da pausa dramática, correspondendo na mesma intensidade o olhar:
– E de você, sua insuportável... Tudo que a gente passou aqui, o tanto que a gente cresceu... No início eu achava que estava amaldiçoada por ter te reencontrado, e agora vejo que foi pura sorte. Pura sorte de passar mais um tempinho do seu lado, porque você... Você é, de longe, a pessoa mais importante que passou pela minha vida.
A morena continuava olhando em sua direção, com os olhos marejados de novo, um sorriso ferido e os presentes imóveis em cada uma de suas mãos.
Adora limpava as lágrimas do rosto incessante, balançava as pernas tentando espantar a ansiedade, o ímpeto de falar demais. Em alguns momentos, sentia o olhar de Lonnie a repreendendo, talvez porque estivesse dando muita pinta. Ou talvez porque estava prestes a ter um ataque de pânico e tudo isso estava estampado na sua cara.
O silêncio ao redor era complacente, não era só Catra que esperava uma resposta. Todos esperavam. E o que Adora podia dar agora era só uma reação.
Ela levantou, foi até sua ex, tirou os dois presentes das mãos dela e os colocou na mesa. Em seguida, segurou o rosto dela com as duas mãos e colou sua testa à dela, fechando os olhos profundamente e depois os abrindo, deixando vir o que queria sentir naquele momento.
Era tão fácil ser hipnotizada pela proximidade dos lábios dela, da respiração descontrolada, pelos olhos semicerrados. Era tão fácil sucumbir quando sentia as duas mãos firmes em sua cintura puxando-a para mais perto.
E se elas se beijassem na frente de todo aquele restaurante?
Não era o que Catra queria. Foi o que a loira assumiu ao senti-la afastando o rosto do seu e só completando a distância com um abraço hesitante, encaixando o queixo em um de seus ombros.
Talvez esteja ultrapassando os limites. Será que acabou fazendo o que tinha jurado não fazer para a Scorpia e para si mesma? Será que Catra se sentiu acuada?
Merda! Não podia botar tudo a perder agora...
– Ei... – Tentou soar descontraída num anseio sem fim de consertar essa rápida recaída. – Tô torcendo para que esse ser mágico do qual falamos mais cedo apareça e você fique aqui com a gente...
A mais baixa soltou um riso fraco enquanto saía aos poucos do abraço.
– Tomara – ela sussurrou lançando um último olhar terno para Adora antes de suspirar longamente e voltar a sentar na mesa com os amigos.
A decisão unânime do grupo foi fingir que nada viram dessa cena para que voltassem à naturalidade do encontro. Também era uma forma de indicarem que estavam cientes da complexidade que era esse relacionamento e não iriam, de maneira alguma, julgá-las por isso. Que bom que esses adoidados tinham lapsos de sensatez uma vez ou outra.
No final da noite, o choro foi substituído por mais sorrisos e boas lembranças. Era como se tivessem passado pelos 5 estágios de luto ali mesmo, naquele jantar, e escolheram levar só as partes boas para o coração. Catra deixou claro, ao se despedir, que não queria ver ninguém no embarque no dia seguinte porque só a desencorajaria. E não foi um pedido indireto para que fossem, foi literalmente uma ameaça, do tipo ‘se alguém for, vou matar’.
Adora entendeu o recado. Entendeu cada entrelinha. Mas, iria ignorá-lo mesmo que tivesse grandes consequências. Até porque, quem garante que essas grandes consequências não poderiam ser boas? Amanhã.
Amanhã era o dia da maior aposta de todos os tempos.
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