~Pov Ioan~
Após um pouco de esforço abro os olhos com dificuldade. Meus olhos ardem por causa da claridade. Diferente de quando desmaiei, estou em um local macio, possivelmente a cama. Um dos meus braços estava preso, algo pesado estava em cima dele, faço força para levantar o outro, porém sinto uma forte dor no peito, barriga e braços, como se estivessem queimando ainda. Mesmo assim me forço a ficar sentado.
— Alguém aí?
Não há resposta.
Meus olhos agora estavam acostumados com a luz. Olhando ao redor vejo o quarto que alugamos, duas camas — uma de solteiro e uma de casal —, a intenção era que eu dormisse sozinho enquanto Alícia ficava com Bianca, porém não deu certo, o que estava segurando meu braço era a pequena garota. Bianca dormia sozinha na cama de solteiro.
— Fico feliz que esteja bem — falo soltando-a de meu braço levemente para que não a acordasse.
Estou usando as mesmas roupas de antes, mas as ataduras em meus braços foram trocados, provavelmente por Bianca. Dessa forma parece apenas que estou machucado, quem iria imaginar que tenho marcas de poder demoníaco por baixo delas?
— Sei o que está pensando... — Ouço uma voz feminina.
Olho em volta por instinto, mas sabia que não iria encontrar ninguém. Era o único acordado no cômodo, a voz era familiar, tenho um sentimento de déjà vu, entretanto não consigo lembrar quem era a dona.
— Quem está aí?
Uma lenta risada como resposta.
— Já esqueceu da sua querida amiga Nahemah?
Quando fala consigo notar um estranho movimento perto da janela. A luz, que entrava, formava uma sombra no chão, esta que agora havia começado a se mover.
— Isso me deixa um pouco triste.
A sombra parece torna-se líquida e logo em seguida começa a subir, como se alguém saísse de dentro. Da escuridão surge alguma cor, em poucos segundos estava uma mulher, seus cabelos eram cinzas, mas seus olhos negros pareciam me hipnotizar.
As memórias de nosso primeiro encontro retornam, como se nunca houvessem desaparecido.
— Mexer com a memória das pessoas é um pouco rude. — Levanto da cama, ela está à poucos metros. — Então, isso é um sonho?
— Não me lembro de dizer que só poderia falar com você por meio de sonhos. — Ela caminha, ficando a pouco mais de um metro de mim. — Você ainda tem muito o que aprender, fofinho.
Olho para as garotas, se entrarmos em combate aqui será muito problemático.
— Não se preocupe, não irei fazer mal algum à vocês — diz sentando-se na cama, próxima as pernas de Alícia. — Estou bem decepcionada, sabia?
— O que quer dizer?
— Sua luta contra os homens-besta. — Ela suspira. — Esperava mais de você.
Lembro-me do combate, minha concentração estava em seu pico, mesmo assim não a notei.
— Você estava na floresta?
— Estou sempre te observando, fofinho. — Sua forma de falar realmente me irrita, como se sempre estivesse tentando me provocar. — É o meu trabalho, embora não possa negar que tenha um interesse particular em você. — Ela dá uma risadinha.
Suas palavras me revelam algumas coisas interessantes.
— E qual seria seu trabalho?
Pergunto, mesmo pensando que não irá contar tão fácil assim.
— Bem, acredito que não tenha problema em falar, até porque não fui instruída a fazer tal coisa. — Sério mesmo? — Esse foi um trabalho que me passaram, estou colaborando com o Rei Demônio.
Ao ouvir "Rei demônio" tento invocar magia. Visto pelo lado dos demônios sou alguém com relações próximas a rainha que foi deposta, além do fato dela ser ter relações com humanos, também podem ter descoberto que ela manteve minha identidade escondida. Porém, a magia não sai.
— Sinto muito, meio que cancelei qualquer utilização de magia nesta sala, apesar de não fazer diferença alguma se nossa luta fosse com ou sem magia. — Nahemah fala calma, tem certeza absoluta que não conseguiria causar qualquer dano.
Estou totalmente encurralado. Na verdade ela é um desses oponentes, esses que ando encontrando um atrás do outro, assim como Osíris e Lion, posso ser derrotado em um único golpe, mesmo usando todas minhas forças.
Mesmo com minha ação ofensiva, Nahemah não parecia querer lutar.
— Bem, já que não tenho poder para fazer nada — Sento-me na cama. — Qual o seu trabalho?
— Apenas lhe observar, reportar caso ache necessário — diz como se fizesse força para lembrar de seus deveres.
— Mas, qual o propósito disso? Porque estão me observando?
Estou abusando da sorte, entretanto, enquanto ela continuar contando sem reclamar, irei fazer minhas perguntas.
— Estamos observando alguns heróis que foram convocados para esse mundo.
Isso foi uma surpresa. A única pergunta é "Eles sabem tudo o que aquele deus estagiário me contou ou apenas uma parte?", talvez saibam apenas dos heróis.
— Vocês sabem sobre mim. — Lembro que ela leu minhas memórias, mas não tenho como ter certeza se ela poderia acessar as que tenho sobre aquele deus. Ele não colocaria algo como um bloqueio nelas? — Como descobriram.
— Não havia como não sabermos. Existem diversos heróis e, atualmente, andam aparecendo cada vez mais. Iríamos descobrir, uma hora ou outra, bastava colocarmos a mão em um de vocês.
— Se seu trabalho é apenas me observar, porque está fazendo contato direto? Não seria melhor caso não soubesse? — Essa era a pergunta que mais me incomodava.
— Docinho, direto ao ponto, né? — Ela ri mais uma vez. — Existem diversos motivos, como disse antes, tenho um interesse particular em você, suas lembranças foram maravilhosas, ao vê-las decidi que iria ver até onde conseguiria ir.
— Ficará apenas como uma espectadora?
Nahemah me encara por algum tempo.
— Claro que não, isso seria muito chato, não concorda? — Um sorriso se abre, esse, diferente dos outros, me causa um arrepio. — A parte mais legal de um jogo, não é jogar?
Ela vê tudo isso como um jogo?
— Se veio até mim provavelmente é porque quer algo, caso o contrário você não teria entrado em contato comigo. — Pelas sua expressão acredito que estou certo. — Qual o seu plano?
— Tenho uma proposta.
~Pov Bianca~
Acordo, mas sinto meu corpo pesado. Foi uma noite ruim de sono, fiquei preocupada demais para dormir, pensando que Alícia poderia perder o controle novamente ou Ioan não conseguir se curar de seus ferimentos.
Ele estava sentado na cama de casal, olhando para a janela. Observo-o por um tempo.
— Bom dia — diz ao notar que estou acordada.
— Bom dia — respondo-o.
Meu olhar vai em direção ao seu peito, que estava muito machucado antes. Ontem tirei sua camisa para que pudesse ver se podia fazer algo, mas sua cura estava começando a fazer efeito, mesmo um pouco mais devagar que o normal.
— Você está melhor? — Seu olhar segue o meu, até seu peito.
Ele mexe um pouco os braços.
— Ainda dói bastante, mas estou melhor que antes.
Me sento na cama. Depois que conversei com Alícia, sobre nosso passado, percebi que também não tive uma conversa decente com Ioan até agora.
— Então... Vocês irão me contar sobre o que aconteceu com Alícia?
Ao ouvir minha pergunta ele olha para a garota, sigo-o. Alícia estava dormindo tranquila, enrolada em suas cobertas.
— Prefiro deixá-la decidir, mesmo achando que ela certamente contaria, me desculpe — responde.
— Não precisa, entendo perfeitamente o que quer dizer, acredito que não seja certo falar sem sua aprovação.
Ficamos calados por alguns segundos, mas quebro o silêncio novamente.
— Então... e você?
— Eu? — Ele parece um pouco confuso.
— Queria saber um pouco mais... — Percebo que essa pergunta pode parecer um pouco estranha. — ... Sobre você também, pode me contar? — Já comecei a falar, acho melhor terminar.
Ele fica calado, olha para o teto por um tempo.
— Se não quiser falar, não irei te obrigar, nem nada do tipo. — Talvez ele realmente tenha achado estranho.
— Na verdade, acho que não tem problema.
Ioan me conta um pouco sobre sua vida. Fiquei surpresa ao saber que ele não tinha nem ao menos um ano de idade. Nós humanos temos pouca informação sobre raças do continente demoníaco, então grande parte fica por parte de nossa imaginação. Me contou também sobre algumas pessoas que foram importantes para ele, Lucio, Chloe, Wallace e Moura, aqueles que o ajudaram naquele tempo.
Após o tempo que tinha passado no reino dos vampiros, decidiu sair em uma aventura para conhecer mais sobre o mundo e foi nesse momento que conheceu Alícia, que estava à deriva no mar. Depois disso foi mais ou menos a época em que nos conhecemos, dessa parte eu já sabia muito sobre.
— Então vocês se conheceram assim. — Alícia havia me contado sobre como o conheceu no meio do Oceano, mas achei que havia sido um pouco exagerado, que ainda estava próxima da costa perdida. — Acho que foi o destino que uniu vocês dois.
— E você, como...
Ele mesmo se interrompe e fica calado. Pelo jeito sente-se desconfortável em me perguntar, nosso primeiro encontro não havia sido um dos melhores. Acho que deveria ter me sentindo assim também.
— Quer saber sobre meu passado?
Balança a cabeça em positivo.
— Não precisa dizer nada caso não queira.
— Na verdade, acho que preciso compartilhar com alguém. — Olho dele para Alícia. — Sinto que vocês são pessoas em que posso confiar.
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