Teu rosto tem feições suaves, mas tua pele fricciona os dedos por causa dos pêlos da barba.
Paulo nunca foi artista, nunca teve tempo e dinheiro para se dar a tal luxo. São Paulo era homem da terra, de braços fortes, de pele morena de sol, de pés descalços e respostas curtas e diretas que deixariam qualquer filósofo corado. Somente agora, com a riqueza do ouro verde entrando em seus bolsos que deixou velhos hábitos embaixo dos panos e começou a adaptar-se à elite, a se transformar. De novo.
Cachorros velhos também aprendem novos truques, pensou com uma risada frouxa, sentado naquele banquinho de madeira desconfortável em frente a uma tela, mãos sujas de carvão. Estava só no ateliê, luz da manhã fria da capital não incomodando-o, sua camisa dobrada até os cotovelos e suspensórios prendendo a calça larga, o salto dos sapatos de couro preto e branco soando no assoalho quando se mexia.
Não importa quantas vezes for, nunca conseguirá se cansar das curvas em teus cabelos, os leves cachos e fios grossos que tem tanto zelo em cuidar.
Intercalando com os compromissos cada vez mais frequentes de seu dia, as aulas consumiam-no por inteiro. Sejam as infindáveis de etiqueta ou de leis, economia, geografia, latim, piano… E por mais que já soubesse o básico de artes e reclamava da bagunça que gerava, aqui estava ele, com a mente nebulosa de pensamentos. "Sua arte" estava naquela de fazer santos, com um pedaço de madeira e uma faca, esculpindo paulistinhas – tinha também um apreço especial pelos retábulos de altares e pelas pinturas de teto de igrejinhas. Não se comparavam a nenhuma outra e nem aceitava que as comparasse, afinal, eram suas e somente suas.
Rangendo os dentes, soltou um 'tsc' irritado, despejando algumas tintas num palete e as misturando com força com o pincel comprido. Estava ali para se distrair, não se estressar com comentários que nem mesmo haviam sido feitos.
Mais claro… Não, a pele tinha uma cor oliva. E de todas as cores… Vermelho combinaria. Não o vivo, ou o bordô, mas um terroso, com adornos em dourado.
O Estado voltou a se sentar, olhando para a figura em preto e branco sem lhe dar a devida atenção, olhos puxados fazendo furos no tecido agora rabiscado: pensava que seria capaz de um crime se alguém o visse ali, com um avental com babados nas pontas, ou ainda mais se sujasse as calças de costura inglesa que custou um quarto de seu novo salário. Baboseiras modernas.
O pincel não deslizava com graça, e sua mão pesada quase derrubou a tela do tripé em alguns momentos. Teve que parar mais de uma vez para inspirar, se levantar e afastar, recalculando o que fazia e como não gostava da direção das pinceladas, da cor, do desenho, de sua falta de jeito. Seus lábios se comprimiram e decidiu por começar limpando as mãos, a mistura de tinta embaixo de suas unhas o dando agonia.
Não havia necessidade de aprender técnicas de pintura para Paulo, o básico somente já lhe era o suficiente, afinal, era muito mais um homem de negócios que artístico. Mas, se pudesse admitir para si mesmo, agora que estava longe de olhos atentos e somente com as vozes interiores que o acompanham toda a vida… Havia um capricho que gostaria de ter. Muitos na verdade, mas um deles, simples como esse, não pôde reprimir.
"Pode parecer invasivo, mas há algo que gostaria que fizesse." A voz morna e brincalhona soou em seu ouvido, mãos quentes passando por baixo de seus braços, abraçando seu peito e a presença tão real que fez o mais velho fechar os próprios olhos. "Pense menos neles, 'Paulin, não se perca naquelas expectativas. A voz do teu coração é alta e forte, não deixe que a amansem."
Olhando para a água suja, com tinta marrom pingando na toalha da mesa, pensou em como aquela frase o guiou até ali, o fez ouvir homens estapafúrdios com falso sotaque afrancesado, a passar horas em frente a pinturas e imerso em pensamentos de detalhes ao ponto de não conseguir rezar, perdido nas feições de Sant'Ana Mestra e nos mantos de São José.
A voz em seu interior zombou, dizendo que tudo aquilo tinha sim, um objetivo, um claro, supérfluo, besta, sentimental, íntimo motivo. A ponta de suas orelhas ardeu e sua mão tremeu, encabulado e incapaz de erguer os olhos para a tela que fazia momentos atrás.
Mas um dia depois, no mesmo horário, jogando as chaves numa cadeira com sua pasta, terno, chapéu e uma carta selada na mão, deixou com que seu peito ardesse e um riso tímido escapasse, a ponta dos dedos tocando o rosto da figura ainda a terminar. A rara luz matinal caía perfeitamente na pintura, iluminando conforme seguia pelo contorno de seu rosto.
Há quanto tempo não se viam? E ali estava São Paulo, pintando o amante sem nem mesmo o ter por perto, como se realmente tivesse decorado cada uma de suas particularidades. O tom marrom avermelhado de seus trajes realmente havia combinado com o olhar afiado, era o que conseguia pensar ao romper o lacre e retirar as folhas da carta, não se surpreendendo ao achar uma coitada flor amassada, uma calliandra. Olhando novamente para o quadro, para a flor e para os pincéis, ignorou as elegantes letras cursivas e se levantou, escolhendo por um avental um pouco mais viril dessa vez.
"O teu amável sorriso é capaz de parar uma batalha, tu o sabes bem disso." O paulista resmungou, afastando-se dos afagos e pondo um dedo sobre os lábios macios, sede em sua garganta instantaneamente. Um beijo se depositou em suas falanges e suas pernas enfraqueceram ante os olhos de chocolate amorosos. "Mas tua língua ainda nos levará a guerra."
"Somente se o prêmio for de meu apetite." Respondeu, afastando a mão e entrelaçando seus dedos.
Paulo andou, rodou, perguntou, xingou, rezou, brigou, reclamou, suspirou e fuçou por semanas pela moldura perfeita. Nenhuma chegava aos pés da ideia fixa que tinha em mente, não pelo menos até lembrar-se de suas próprias instituições, que estariam mais do que animadas a atender a um pedido exclusivo seu. Em alguns dias sentia sua animação tomar vida ao ter o próprio diretor do Liceu de Artes e Ofícios trazendo a moldura em madeira entalhada no Palácio do Páteo, os detalhes com frutos e flores de café arrepiando-o dos pés à cabeça.
Não pretendia entregá-la ao seu objeto de inspiração, não, como disse, era um luxo, um capricho que gostaria de ter para si mesmo (na falta de admitir que não tinha coragem o suficiente para mostrá-la a outros olhos que não os seus). Então, quando passou o dia inteiro fixando a pintura na moldura, pensando em onde guardaria tal trambolho, não se deu ao trabalho de tirá-la de lá, seu escritório pessoal. Esqueceu-a ali, ao lado do sofá por dias a fio. São Paulo facilmente perdeu-se em papéis de solicitações, de arranjos e de investimentos, entrando no automático de uma locomotiva que só sabia acelerar.
Mas seus olhos ainda encontravam os acastanhados ali, escondidos e que insultavam-no com os lábios num eterno sorriso jovial.
Porém, a cor sumiu de seu rosto e um suor frio desceu por seu pescoço ao, numa tarde de sexta-feira após o almoço, encontrar um homem que não pertencia aquele estado de costas para ele, com o quadro em suas mãos. Não tinha as roupas formais de uma visita oficial, seus cabelos da nuca escondidos pelo lenço vermelho que afastava a garoa fria das ruas da capital paulista.
"Minas?" Muito contra a sua própria vontade, sentiu seu rosto se esquentar, a porta pesada da sala batendo com um ruído extremo em seus ouvidos. "Há quanto tempo!"
"Paulo, o que é isso?" A voz baixa perguntou, seus polegares deslizando pelas flores de café imersos em pensamentos.
"Um quadro." Respondeu simplesmente, não sabendo o que fazer com as próprias mãos. "Não deveria estar vendo isso, não é nenhuma obra de arte."
"Como? Foi feita por ti?" Rodrigo o olhou como se o paulista tivesse feito uma ofensa pessoal, e São Paulo deu de ombros, rindo baixo.
"Sim. Agora, se me der licença-"
"Este sou eu."
"Sim."
"Desenhou-me sem ao menos me ver pessoalmente."
"Eu sei que não-"
"Paulo, como pôde?" Afastou-se de suas mãos, colocando o objeto cuidadosamente no sofá e tomando uma inspiração. Segundos tortuosos se passaram antes de retomar suas falas, uma risada desacreditada sacudindo seus ombros. "Deus, como pôde? Acho que nunca amarei outro quadro meu como amo a este."
"O que? Mas acabou de ver?" Paulo sentiu-se confuso, ainda mais ao ver os olhos marejados e o sorriso encantado, abraçado com força desmedida por causa da animação mineira.
"Uma pintura, minha! A fez pensando em mim, como pôde pensar em esconder isso?" São Paulo apertou seus lábios e o abraçou de volta, bochechas ardendo sem conseguir formar uma frase para respondê-lo. "Veja isso! As pinceladas um pouco brutas, o jogo de luzes intercalado, as cores! Veja como se conectam, como se completam com os detalhes em dourado!" E desatou a falar, pontuando coisas de uma forma que se sentiu, mais uma vez, à frente de um dos críticos artísticos com sotaque francês, com o bônus de que dessa vez, seu sorriso e sua atenção estavam unicamente na feição radiante.
Estava apaixonado, e não conseguia mais negar. E podia ser que não fosse tão especial – mas sentiu-se ao interrompê-lo, guiando gentilmente o rosto para o seu e selando seus lábios, calmo, apreciador. Era sua forma de explicar o que fazia com um quadro de Minas Gerais no escritório, um que ele havia feito com as próprias mãos e desejos refinados. Sua crítica veio em forma de lábios ansiosos por mais, sempre quentes e habilidosos que tomavam o controle dessa vez, tirando a justificativa de sua boca ao invadi-la com a língua, sons de saliva, suspiros deleitosos e calor subindo pelo colarinho e na cintura da calça a assinatura final.
E quando deu por si, já estava encurralado na parede, atacado por um monstro mineiro cheio de beijos e mordidas de amor que o deixaram perdido no tempo.
"Está levando o quadro consigo?"
"Como se fosse possível dormir à noite sabendo que tal obra de arte estaria escondida para o resto de teus dias." Paulo riu, marcas de expressão no canto de seus olhos se intensificando com o sorriso genuinamente feliz, olhar rendido encontrando o afavelmente carinhoso que o fazia se arrepiar.
"Posso lhe cobrar a taxa de direitos autorais?"
"Não acho que esteja em posição de pedir por isto, cavalheiro." Recebeu mais um beijo, em mais uma discussão perdida para os lábios de Minas Gerais.
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