Olhar para si mesmo. Olhar e ver além da sombra. Apesar da sombra.
Não olhar é ver somente aquele que quer estar presente.
Mas não é você.
Nem nunca será.
Perceber quem grita de dentro dessa imagem que não é aquela definida que está em sua vida, fazendo de conta que é você, é poder ser você.
É saber que há vida.
Há momentos em que não há mais como fugir. Não há mais um tempo para ignorar a mais pura e verdadeira realidade.
É apenas você e você.
Uma imersão na intimidade é difícil e quase sempre a experiência é dolorosa. E não é muito incomum que nessa imersão algo precise ser deixado de lado.
E até esquecido.
De algum modo essa voz interior acordou Jeon e chegou a hora dele ouvir a mesma voz que Tae não permite mais calar.
*
-Não virei para o almoço de domingo com essa família que a senhora marcou.
-Você não pode fazer isso, Jeon! Não pode! Tem compromisso no domingo? Vai estudar? Quer que remarque? Você não pode faltar a esse almoço, Jeon! Posso fazer isso se for impossível para você estar aqui no domingo. Só nesse caso. Posso dar um jeito de remarcar, mas você não pode faltar!
-Posso, sim. Não remarque porque eu não virei no domingo nem em dia nenhum. Não estou interessado em me casar porque já tenho alguém em minha vida, mãe.
-O quê??
-Tenho alguém em minha vida. Estou amando alguém e não vou encontrar com ninguém que vocês marquem.
Jeon vai levantando para sair mas sua mãe o impede com a única maneira que ela encontra no momento para fazer com que ele mude de ideia:
-Sente-se! Não quero você saindo com nenhuma garota interesseira! Nenhuma! Você não sabe nada da vida! E não se engane: em sua idade, ninguém ama ninguém! Portanto, não se iluda. Não vou nem considerar essa bobagem que você acabou de falar.
Jeon sabe que nesse momento qualquer conversa com sua mãe será perda de tempo e será completamente inútil.
-Estou atrasado para meus horários de estudos, mãe. Eu tive que vir aqui porque não me fiz entender bem que não estou interessado em um compromisso que eu não escolhi.
-Acho bom você sentar. Caso contrário, não precisará mais de horários para estudar, querido.
-Bom, pelo menos estudo em uma instituição pública. Vocês não podem impedir que eu frequente a faculdade.
-E quem disse que quero isso? Estudar é privilégio, mas é antes de tudo obrigação. Já que você escolheu ser um mero médico, termine o curso. Mas lembre-se que está apenas começando. Agora, uma perguntinha, querido filho: como será sua vida sem dinheiro? Sei que vocês, filhos, acham tudo isso bobagem. Que todos os pais estão errados e vocês podem escolher o amor, não é?
-Exatamente.
-Pois não é! Se não fizer o que estou lhe mandando, quero ver você sobreviver sem dinheiro! Tirou o rastreador do seu carro, não me dá satisfações como antes, não me conta nada, nem me explica mais seus gastos... isso vai mudar, Jeon. E você vai sentir isso logo, logo.
-Não está mais preocupada com o fato de suas amigas saberem que seu filho está abandonado pela família rica? Que estarei jogado por aí, morando em qualquer kitnet de pobre? Isso se eu puder alugar um!
-Antes disso, você mudará de ideia, querido. Tenho tanta certeza disso que nem vou mandar você sair do apartamento luxuoso que você vive! Você não aguentará nem três meses com a contenção financeira que farei! Será um corte profundo, Jeon! Isso eu posso lhe assegurar!
-Contenção financeira? Mãe, vai mesmo cortar a minha mesada? Vai fazer isso comigo?
-Não vou deixar você passar necessidade, claro. Mas digamos que com o aperto financeiro você irá reconsiderar minhas ordens. Espere e verá!
-Ordens... mãe, veja só como está falando! Ordens...
-E o que você queria? Não sei mais por onde anda, quase não lhe vejo...
-Estou sempre ocupado. E mãe, por que é tão importante para vocês me jogarem para alguém para assumir um compromisso na minha idade?
-Querido filho, seu pai tem pretensões políticas altas. Isso você sempre soube. Essa jovem de quem lhe falei é filha de um importante político que indicará seu pai...
-Não quero ouvir mais nada, ok?
-“Ok”? Jeon, que modos são esses?
-Boa noite, mãe. Vai querer recolher meus cartões de crédito agora?
-Bem...
-Demorou muito para responder. Boa noite. Vou continuar com eles!
E Jeon volta para seu apartamento com seus amados cartões de crédito!
Mas antes, diante da ameaça de ficar sem seus cartões queridos, ele passa em lojas e compra algumas coisas que está precisando. São várias compras, entre elas, roupas, acessórios, coisas para seu apartamento, gêneros alimentícios, e principalmente dezenas e dezenas de porcarias em forma de salgadinhos e... livros! Muitos livros!
Sim, Jeon é um excelente aluno e como já sabe dos livros que vai precisar nos próximos semestres ele aproveita e faz um kit médico para os próximos anos. Também aproveita e renova seu estetoscópio, seu aparelho de pressão arterial e outros mimos acadêmicos. Tudo novo! Tudo!
E enquanto faz todas essas aquisições ele se diverte imaginando as faturas chegando nas mãos de sua mãe.
-Nunca fui exagerado assim em compras, mas... vai que... não vou arriscar ficar muito pobre. Então, preciso me prevenir.
Estoque de tudo renovado, Jeon escolhe um bom restaurante para jantar depois desse encontro pesadão com a sua mãe.
E vai para um bem caro e sofisticado!
*
Durante seu jantar...
-O que será que ele está fazendo agora? Bem que ele poderia estar comigo neste restaurante jantando bem e aproveitando o tempo. Mas é muito orgulhoso.
Sei...
Depois de um tempo, Jeon olha para o relógio e vê que já é meio tarde. É sexta-feira e já faz alguns dias que ele e Tae mal se olham.
-Será que está dançando em alguma boate? Certamente está pegando alguém...claro... ele não é de perder tempo. Não sei como consegue economizar tanto para frequentar certos lugares! Como é que ele consegue?
Trabalhando, querido!!
*
Já passa das onze horas da noite. Jeon chegou em casa e depois de trazer um estoque de lojas completo para seu apartamento, ele se prepara para estudar.
-Eu deveria ter tirado print das conversas dele no telefone. Não... das conversas, não! Só tinha coisas sem graça. Deveria ter printado seus penteados! Qual será que ele escolheu para rebolar nas boates hoje? Ridículo! Fotinhas com vários looks do seu hairstyle parafinado!
Jeon está inconformado com esta possibilidade. Imaginar Tae super lindo, sexy, com as camisas transparentes que ele adora, seu cabelo maravilhosamente loiro...
E a imagem dele beijando Jung Hae ainda não foi apagada de sua memória e o faz ter praticamente uma síncope acadêmica.
-Não consigo estudar imaginando ele pegando o povo por aí! Todo liberadão nas noites do mundo... Espero que Jung Hae não tenha voltado e tenha dado de cara com um portal pelo metaverso que ele adora, lá na fazenda dele, e tenha sumido para sempre. Cara insuportável!
A imagem de Tae beijando o Jung na boate ainda é um tormento para Jeon.
-Tomara que um boi tenha engolido ele!!
Jeon pensa melhor a respeito do seu desejo:
-Odeio minha consciência! Tudo bem, Deus, engolido é demais, mas tomara que tenha uns quatro bois correndo atrás dele até ele não aguentar mais!
Jeon malvado...
-Não estou bem das ideias hoje. Preciso deixar de desejar o mal e me concentrar em estudar.
Vinte minutos depois...
A mente de Jeon não se fixa em nenhum conteúdo. A atenção dele está de férias. Pelo menos a atenção necessária para os estudos, está.
-Tenho certeza que ele saiu para se divertir!! Esse é o cara que me ama? É?? O rebolativo Tae?? E ainda dormi com eleee!!! Como fui fazer isso??
***
Pouco tempo depois...
Apartamento de Tae:
-Você?? O que faz aqui, quase de madrugada? Ah... já sei... é seu costume visitar a casa dos outros a essa hora! Nem pensei que era você porque tocou a campainha como uma pessoa normal. Dê meia volta, não tenho tempo para você!
-Precisa essa ignorância toda?
-O que quer, Jeon? Estou ocupado!
-Ora, vejam só... onze horas da noite e está ocupado? Trabalhando em quê a essa hora?
-Jeon, quer dar uma volta pelo inferno e ver se há algum conhecido seu por lá?
Tae vai fechando a porta.
-Espere. Posso entrar? Precisamos conversar. Isto é... se é que você não está acompanhado.... sexta-feira... não foi para boates... está mesmo acompanhado?
-Estou.
-Está??? Como assim? Está me traindo na minha cara??
-Não estamos namorando, Jeon. Posso ficar com quem eu bem entender. –Tae fala baixinho.
Jeon entra no apartamento olhando tudo ao redor.
-Quem está aqui? O Jung Hae? Aquele deus da boiada voltou para as noites e boates? É ele que está aqui??
-Jeon, por favor... vá embora...
-E por que está falando tão baixinho?
-Jeon, estou trabalhando. Volte para a tormenta de onde veio.
-Trabalhando?? Fazendo o quê, a esta hora?
-Programas, Jeon, como de costume!
-Quero saber quem está aqui com você!
-Não tenho que lhe dar satisfações e... esqueceu que ninguém pode nos ver juntos? Não podemos nos falar em público, Jeon! Foi você mesmo que quis assim, lembra? E eu estou com alguém aqui.
-Está... está mesmo...
-Professor, está tudo bem? –Um aluno para o qual Tae está ministrando aula vem até a sala depois de ouvir vozes um pouco exaltadas.
-Está sim. Em um instante eu voltarei. Estou... estou com um novo aluno aqui. Pode voltar que eu chego já. Em dois minutos.
Jeon respira aliviado e Tae o olha com raiva por causa das insinuações que ele está fazendo depois de chegar no meio da noite, cheio de direitos, depois de proibir Tae de falar com ele na faculdade para que ninguém saiba que eles são namorados.
Ou eram.
-Vá embora, Jeon. Está me causando problemas. Ainda tenho mais quatro alunos hoje.
-De madrugada?
-Sim, por que? É meu controlador agora? É meu contador? Estou sem tempo durante o dia. Já cheguei mais de oito horas da noite porque moro longe da universidade e não tenho um carrão importado feito você, Jeon. Agora, vá! Está me atrapalhando!
-Eu não vou.
-Não??
-Não. Não vou. Esperarei você terminar suas aulas. Precisamos conversar.
A campainha toca.
-Está vendo? É o próximo aluno! Você está me atrasando!
Tae abre a porta. É uma jovem.
-Olá, Judy. Entre. Estou terminando uma aula mas pode entrar e ficar na sala de estudos enquanto eu finalizo a aula.
Tae passa para a sala de estudos com a sua aluna e ignora Jeon, que fica no meio da sala de estar. Ele resolveu realmente esperar Tae terminar de ministrar suas aulas particulares para conversar com ele.
-Isso lá é hora para trabalhar? Essa estória está muito mal contada. – Jeon... ainda com suas suspeitas acesas.
Dez minutos depois, Tae volta da sala de estudos com o aluno que estava lá antes e abre a porta para ele ir embora.
-Tem certeza que seu pai já está lá embaixo lhe esperando?
-Sim. Obrigado.
-Até a próxima aula.
Tae fecha a porta e vai voltar para a sala de estudos onde já está a outra aluna esperando.
-Quanto tempo dura a próxima aula?
-Quarenta minutos. Você deveria saber. Passou um tempão me vigiando do seu carro embaixo do prédio enquanto meus alunos entravam e saiam daqui. Se a campainha tocar, abra. Faça alguma coisa útil.
-Eu estudo medicina. Não sou porteiro!
-Mas vai ser hoje. Estou atrasado para as aulas então o próximo aluno chegará logo e ainda não terei terminado. Trate ele muito bem porque ele é muito bonito!
Tae volta para o trabalho e Jeon vai fazer um cafezinho para passar o tempo.
-Bonito... tentando me fazer ciúmes...
Não. Ele não estava tentando lhe fazer ciúmes, Jeon.
Quando a campainha toca outra vez, algum tempo depois, Jeon percebe essa triste realidade. Para ele, claro.
-Olá. Sou o Beto. O professor Taehyung está?
Tae não estava brincando. O Beto só tem de modesto o nome. Ele realmente é muito bonito e Jeon fica enlouquecido: altão, despojado, jovem, parecendo um ator de doramas que está sozinho e incompreendido, com um ar de solidão, meio anos cinquenta, mas cheio de uma juventude linda.
-Ele ainda está em aula. Acho que vai demorar. E vai demorar muito porque está muito atrasado. –Jeon, querendo boicotar a aula do BB – Beto bonito.
-Eu espero. Posso? Eu gosto demais das aulas do professor Taehyung.
-Hum...
Muito chateado, Jeon sinaliza para o Beto entrar.
-Sente-se. Vou avisar para ele que você chegou.
Jeon vai até a sala de estudos no exato momento em que Tae estava indo falar com ele porque ouviu a campainha.
-O aluno... o tal lá...
-O Beto?
-Sim. Chegou. E você não vai dar aula para esse cara, Tae! -Jeon fala baixinho, já na porta da sala de estudos para que a outra aluna não ouça.
-Com licença. –Tae pede licença para Judy e pega no braço de Jeon e o leva para seu quarto.
-Está me empurrando, Tae? Ansioso para dar aula para esse melancólico que está lá na sala?
-Não. Eu não vou dar aula para ele, Jeon.
-Não? Muito bem. Ele tem uma super cara de galinha com aquele jeitão de hippie reformado, enrustido e... por que esse povo não frequenta um cursinho normal, hein? Aulas de madrugada? Isso só pode ter outras intenções!
-Não diga besteira, Jeon! Eu não vou dar aula para ele!
-Ainda bem.
- Você vai!
-Eu?? Por que eu?
-Escute. A Judy, a aluna que estou com ela agora, me pediu dois horários hoje e eu preciso resolver exercícios com questões de provas com ela. Não posso negar. Ela vai fazer prova de vestibular em poucos dias e eu preciso de dinheiro! Entendeu? Não posso perder alunos! E eu também não posso perder esse aluno novo, o Beto, entende? Pode fazer isso para mim?
-Mas logo eu?? Nunca dei uma aula, Tae!
-É química e biologia, Jeon. Duas aulas para o vestibular. Você sabe disso melhor do que qualquer professor! Vamos logo!
-Eu não vou, Tae! Não sou professor!
-Só hoje, Jeon! Você me fez muita raiva esta semana!
-Eu não sei por onde começar, Tae!
-Eu vou lhe dizer o conteúdo de hoje e ele também. Não há nada de química e de biologia para o ensino médio que você não saiba. Ande! Não posso me atrasar mais. Vou lhe apresentar a ele. Vou para a sala de estar com a minha aluna e você vem para o estúdio onde há o quadro de aula e o projetor. São duas aulas. E capriche! Tem que empolgar ele para que volte. São duas disciplinas e ele falou que está com muita dificuldade.
-Mas... eu não sou professor, Tae...
-Hoje será.
Assim, empurrado, literalmente, Jeon vai pagar por seus maus-tratos com Tae ministrando as aulas de Química e Biologia para o BB – Beto bonitão.
-Esse é o professor Jeon, Beto. Ele será seu professor hoje. O professor Jeon é muito competente. Você vai gostar. Jeon, venha para o estúdio com o Beto.
No estúdio...
O Beto espera pelo professor Jeon que ainda não sabe como começar a aula.
Mas Jeon é Jeon, então...
-Vamos ver... diga-me quais são suas principais dificuldades. Ou prefere fazer uma revisão antes?
-Prefiro uma revisão, professor. Era isso que estava marcado com o professor Taehyung e depois no segundo horário, podemos ver alguns pontos onde tenho mais dificuldade?
“E ainda por cima é falante! Era só o que me faltava!”- Pensamentos de Jeon sobre o BB.
Mesmo assim, de cara feia, e seguindo sua intuição acadêmica, Jeon fez o o seu melhor e no final deu uma aula muito boa e agradou bastante o aluno de Tae.
Jeon é muito bom em todas as disciplinas. Especialmente a biologia e a química do ensino médio que para ele é pura diversão. E, como é muito inteligente e sagaz, encontrou logo as dificuldades do Beto e deixou ele maravilhado com a sua facilidade de fazê-lo compreender o conteúdo das disciplinas com uma aperfeiçoada didática.
Claro! Jeon lindo e cheio de conhecimento, quem não gostaria?
*
No final... após as aulas:
Café e lanches para o professor Jeon como recompensa por seu esforço, mesmo que a contragosto.
-E então? Como está, professor Jeon?
-Como me fez passar por isso, Tae? Nunca tinha dado uma aula antes!
-E os seminários na faculdade? Você é quase o melhor aluno do curso de medicina, Jeon.
-Quase o melhor?
-Sim. Eu sou o número um.
-Você ainda está competindo comigo, Tae? Pensei que isso tivesse acabado.
-Na faculdade? Voltei a ser seu rival no curso, Jeon, e, portanto, voltei a ser o número um.
-Não acredito no que está dizendo.
-Está bem. Não acredite. Você verá com o tempo. Então, gostou da aula?
-Você deveria perguntar ao Betão. Me olhou de cara feia no começo porque queria as suas aulas. Depois, ficou tudo bem.
-“Betão”?
Tae ri com as conversas de Jeon.
-Acho que ele ficou meio frustrado mesmo quando a aula começou porque não era você.
-Talvez no começo. Mas ele saiu maravilhado com sua aula, então sei que você se saiu muito bem, apesar dos pesares.
-Que pesares são esses?
-Você é muito antipático, Jeon.
-Eu não! Só não sou todo educadinho como você.
-Preciso tratar bem todos os alunos e alunas, Jeon. Acredite, eles são uma pequena, mas importante fonte de renda para mim.
-Você gosta mesmo disso?
-De dar aulas?
-Sim.
-Eu preciso, Jeon. Antes de tudo é uma necessidade. Eu gosto, claro. Mas é muito difícil porque não tenho tempo suficiente. E olhe só: é madrugada, não estudei, estou cansado e tenho que acordar cedo para estudar, fazer trabalhos da faculdade e adivinhe: tenho mais aulas para dar amanhã, que na verdade, já é hoje.
-Hum... mas eu lhe ajudei hoje.
-E não vai ficar me passando isso na cara o tempo todo como fez quando comprou meus remédios, não é?
-Eu não comprei apenas. Eu cuidei de você.
-E você vai continuar passando isso na minha cara para sempre?
-Não. Desculpe.
-Oh!! Me pedindo desculpas? Onde arranjou essa humildade?
-Hoje não foi um dia bom para mim.
-O que foi?
-Problemas pessoais, Tae.
-Jeon... está tarde. Não quero brigar com você. Preciso dormir. Faz uma semana que você me evita e não perde uma oportunidade para fazer uma confusão.
-Mas eu esperei esse tempo todo e preciso conversar, Tae.
-A essa hora? Eu já entendi que você não quer ser visto comigo, não podemos no falar em público e essas coisas todas que você falou.
Jeon fica um pouco surpreso com a forma como Tae está lhe tratando. Antes tão carinhoso, sempre buscando contato corporal, e agora apresenta uma certa e definida distância com ele, sem procurar em nenhum momento intimidade nenhuma, nem mesmo um olhar mais sedutor como antes fazia.
-Já me esqueceu, Tae?
-Já. –Tae levanta-se da mesa onde eles estavam tomando café e vai lavar sua xícara em uma clara atitude de quem não quer conversar sobre esse assunto.
-É verdade? Já me esqueceu???
-Jeon, não dá certo. Você é muito complicado. Eu acerto tudo com você, ficamos bem e depois...
-Eu só lhe pedi para não falar comigo na faculdade, Tae!
-Depois vai me pedir o mesmo no shopping, nas lojas, no cinema, nas ruas, com amigos... não!
-Mas, Tae, você também dificulta tudo!!
-Jeon, entendo a sua posição. De verdade... eu compreendo. E sei que não podemos andar por aí abraçados. Tudo bem. Mas o que você me pediu foi demais: você me disse para a gente deixar de se falar na faculdade!
-Eu não falei isso!
-Falou! Foi demais, Jeon! Fingir que nos odiamos? Não e não! Nós já conversamos sobre isso quando você dormiu aqui.
-Sim... quando eu dormi aqui...
Jeon tenta se insinuar para Tae, dando a entender que gostaria de ficar lá esta madrugada, mas Tae faz de conta que não percebeu sua intenção.
-Agora lave sua xícara e vá para sua casa.
- Por que está me botando para trabalhar hoje?
-Estou falando isso porque você usou a xícara. Lave.
-Cadê todo aquele carinho e cuidado comigo, Tae?
-Acabou.
-Acabou?
-Você colocou um ponto final. Agora me deixe dormir.
Jeon levanta e vai para a pia lavar sua xícara.
Está triste. Definitivamente triste. E Tae percebe. Sabe muito bem que está sendo duro com ele. Mas Jeon não se decide... então...
-Jeon, conversaremos com mais calma depois, está bem? Preciso dormir. Estou de pé desde as seis horas da manhã e já são mais de quatro. E não se preocupe, não falarei com você na faculdade, ok?
-Está... está terminando comigo, Tae? É definitivo?
Jeon pergunta enquanto pega sua mochila e a põe nas costas, sem olhar para Tae.
-Terminar? Começamos algo, Jeon? Tivemos uma linda noite e no dia seguinte você me disse para não falar com você na faculdade onde passamos quase doze horas por dia! Isso tem sentido para você??
Jeon fica calado. Sua mão está no trinco, prestes a abrir a porta. Ele vira-se para Tae e lhe pergunta:
-Não está com saudades de mim? Estávamos há uma semana sem nos falar...
Tae não responde, mas seu olhar fala por ele:
-Jeon...
Jeon larga a porta e a mochila que está em suas costas e envolve Tae em um beijo apaixonado ao qual Tae corresponde totalmente.
-Eu estou com saudades de você, Tae. Não estou bem com tudo isso. Mas para você parece que a vida voltou rapidamente ao normal...
Tae o olha com doçura. Seu olhar está muito triste também. Ele deseja Jeon, gosta dele verdadeiramente, mas tem a sensação de que algo os afasta mais e mais cada vez que eles têm a oportunidade de ficarem juntos.
Jeon o beija outra vez. Um beijo cândido, suave, trazido em uma madrugada cansada que agora se apaga, se afastando deles, deixando um gosto amargo de despedida.
-Amo você, Tae. Amo você...
Tae permanece calado. Seu silêncio provoca um certo desespero em Jeon porque para ele é como se o silêncio de Tae fosse uma confirmação de que não está mais disposto a voltar para ele.
-Não vai me dizer nada? Não está sentindo minha falta?
-Jeon, não quero viver um relacionamento como se estivesse cometendo um crime. Não quero ter que correr e me esconder toda vez que uma pessoa se aproximar da gente. Eu entendo você, de verdade. Já lhe disse isso. Mas talvez não seja a hora da gente...
-Tudo bem. Já entendi. Sou um imbecil mesmo por ter vindo aqui.
-Jeon...
Jeon se afasta, abre a porta e vai embora sem ouvir mais nada, deixando Tae...
Arrasado...
Foi preciso um esforço quase sobre-humano para dizer “não” a Jeon e não cair em seus braços novamente.
Tae está apaixonado por ele. Perdidamente apaixonado. Tanto quanto Jeon. Mas não está disposto a viver escondido da forma que ele quer. A dependência econômica de Jeon, alegada por ele mesmo como um entrave e como justificativa para esconder a relação deles é algo que de forma alguma Tae aceita. Por isso na última discussão que tiveram, Tae lhe disse ser um adulto, insinuando, portanto, que Jeon ainda não estava preparado para viver uma relação amorosa madura.
*
Jeon vai para casa e ao entrar, sente-se vazio e perdido no seu enorme e luxuoso apartamento.
Ele coloca a mochila no sofá. Está se sentindo sozinho e absolutamente triste. Mais do que quando saiu do apartamento de Tae.
-Ainda bem que os dias não se repetem, porque esse... – Ele filosofa.
Jeon vai até a cozinha e toma um copo de água. Está sentindo que precisa se alimentar, mas não tem fome. Ele atravessa a bela sala onde tudo está em seu lugar, formando uma perfeita harmonia decorativa, ao contrário do seu coração, e vai até sua janela de onde olha para a cidade brilhante lá embaixo, com suas mil cores que contrastam com a ausência de brilho que está sentindo.
-Droga... fiz tudo errado...
Jeon avista a paisagem luminosa que fica após os grandes edifícios que começam a apagar suas luzes e calcula que o apartamento de Tae esteja naquelas imediações.
-Por que ele mora tão longe de mim?
Ele lembra da conversa fria e insensível que teve com sua mãe. Só há bem pouco tempo Jeon começou a se incomodar de verdade com a pressão exercida por seus pais sobre ele. E sim, foi preciso conhecer Tae, e se apaixonar por ele, para descobrir que há um outro Jeon que necessitava renascer. Um outro lado seu que ainda não havia tocado seu verdadeiro eu.
Mas ele ainda é muito jovem e são muitos os obstáculos que existem para que uma relação com Tae possa ser vivida em liberdade, como desejam.
E um dos principais é o mundo da sobrevivência mesmo. Esse mesmo mundo que sua mãe ameaça desmoronar caso ele não faça exatamente o que ela quer, retirando sua segurança econômica.
-E ainda faltam cinco anos e meio para terminar esse curso! Meu Deus... é muito tempo!
***
-Ele está vindo!!!
O professor entra na sala de aula e todos fingem total disciplina. Entre risinhos camuflados de ironia e olhares sorrateiros, todo mundo se acomoda em suas bancas.
-Bom dia!
-Bom dia! – Respondem em uníssono.
O professor dá uma olhada geral para a sala de aula e percebe algo estranho.
-Espero que esteja tudo bem mesmo porque o dia de vocês será muito difícil!!
-A prova será mesmo hoje, professor? - Jeon pergunta.
-Sim. Eu avisei na última aula. Esqueceram?
-Pode começar, professor! Jeon está com medo de fazer a prova! – Responde Tae, provocando a gargalhada de todo mundo na sala.
-Eles se odeiam professor!
-Se odeiam!
-Se odeiam!
De repente, todos começam a fazer a prova enquanto ainda continuam dizendo a mesma frase:
-Eles se odeiam!
Nesse momento, vão surgindo das bancas escolares várias folhas de papel em branco que estavam sendo usadas para fazer as provas. De um modo assustador elas vão crescendo e se prolongando pelo piso da sala de aula, coladas umas nas outras, e todas, ao mesmo tempo, vão se unindo e formando um gigante caracol que sobe pelas paredes enquanto todos os alunos e alunas continuam dizendo a mesma frase, muito alto:
-Eles se odeiam, professor!
As folhas de papel continuam subindo pelas paredes até chegar a perfurar o teto, e ao atravessar as paredes, elas se enrolam nos canos de água que estão dentro das paredes e no teto, e começam a se enroscar neles até estourar todos.
A água começa a jorrar de todos os lados da sala de aula, de todas as paredes e do teto, e os alunos começam a correr apavorados, mas continuam dizendo a mesma frase alto, de modo ensurdecedor:
-Eles se odeiam , professor!
Em meio a gritaria, Jeon vê Tae no meio da sala, que está tomada pela água. Ele está sozinho, apenas ele está a afundar enquanto os demais correm em busca de salvar suas vidas. Tae está estático, sem poder nadar, nem sair do lugar em que se encontra, enquanto a frase repetida por todos, continua a ser dita:
-Eles se odeiam, professor!
Jeon precisa salvar Tae e não tem muito tempo.
Ele não sabe o que fazer.
-Me dê sua mão... Jeon... sua mão... – Pede Tae.
-Minha mão... eu não lhe odeio, Tae. Eu não consigo lhe alcançar.
-Sua mão, Jeon...
Ambos estendem os braços tentando vencer a distância.
-Eu não lhe odeio, Tae.
Jeon estende sua mão e mesmo a uma larga distância ele consegue alcançar Tae, como se seu braço se prolongasse no espaço, tornando-se muito maior do que realmente é.
Como se tivesse uma força maior do que o seu corpo poderia fisicamente possuir, Jeon vai erguendo Tae, impedindo que ele afunde.
Enquanto ele o salva de morrer afogado, as vozes vão diminuindo até cessarem no momento em que Jeon consegue tocar Tae.
Jeon salva Tae e os dois saem correndo pelos corredores da Universidade que começam a desmanchar, transformando-se em fortes correntezas de água, perseguindo-os, como se tivessem vida.
Após atravessarem vários obstáculos, eles se livram finalmente do perigo de morrerem afogados.
-Tae, eu não lhe odeio, eu te amo! Eu te amo!!
*
O rosto de Jeon começa a esquentar com o calor do sol.
- Tae...
Jeon acorda.
Ele põe a mão sobre seu rosto que estava recebendo o sol quente da manhã enquanto sonhava.
Ele senta-se em um impulso, assombrado com o terrível sonho.
-Estou suado... que sol quente... adormeci aqui... Aii... que dor nas costas! –Jeon dormiu no sofá, perto da janela, razão pela qual estava sentindo muito calor durante o sono, quando a sua amiga consciência chegou e lhe acordou.
-Que dor!! Minhas costas estão acabadas!. Que sonho terrível... Pensei que não iria mais ter esses pesadelos. Aff... e essas coisas horrendas! Quanto mais tempo eu demoro para ter esses sonhos, mais terríveis eles são!
Jeon levanta, pega suas coisas e vai para seu quarto.
-Dormi de roupa, de sapato e abandonado por Tae e ainda veio no meio sonho para me torturar.
Jeon senta em sua cama e começa a tirar seu tênis.
-Espere... mas dessa vez não terminou mal...
Ele vai tirando a roupa lembrando do final do sonho.
-Sim... que estranho...
Esta é a primeira vez que um sonho de Jeon com Tae não tem um final ruim. Exatamente como aconteceu uma vez com Tae quando ele sonhou que estava se recuperando da flecha que Jeon, acidentalmente, atirou nele.
-Sim... nesse sonho terminamos bem... que sonho estranho... não sei o que é mais misterioso: os outros onde tudo terminava mal ou esse...
*
Os Sonhos:
Os sonhos estão diretamente ligados a todas as vidas vividas por Tae e Jeon quando eles se encontraram outras vezes, se apaixonaram, mas não terminaram juntos.
Em todas as vezes que se encontraram, por uma razão ou outra, suas vidas foram marcadas sempre por uma tragédia, e eles morreram.
E quase sempre, muito jovens.
Quase sempre um morre tragicamente, deixando o outro arrasado.
As vidas deles foram ceifadas precocemente em praticamente todas as vezes que se encontraram anteriormente.
Porém há ligações misteriosas em todas essas vidas que fizeram e fazem com que o final se repita de modo irremediavelmente nefasto.
Uma das linhas através das quais a tragédia se repete está relacionada ao tempo.
Tae e Jeon precisam desvendar esse mistério e quebrar a triste sina que os persegue.
Eles precisam descobrir o denominador comum para encerrar as tragédias e terminar o ciclo que os impede de ser felizes.
Em cada vida, há um universo entre os dois a ser desvendado. E em todas elas, vida e a morte estão unidas, mas podem ser separadas para permitir que eles possam viver plenamente em felicidade.
***
Jeon toma seu banho e se prepara para comer e depois, estudar. Ele está em sua farta mesa do café da manhã:
-Livros, olhem para mim! Me recebam com o amor que os humanos não me têm mais! Nem minha mãe, nem meu pai, nem meu quase namorado me amam! Nem tenho amigos porque todos me odeiam porque sou o melhor aluno do curso de medicina.
Ele começa assim seu café, saboreando algumas frutas.
-Ah... e tem o Jung Hae, aquele falso conselheiro da boate. Tão falso que passou de orientando do Tae a conselheiro sentimental naquela noite louca da boate.
Jeon come mais frutas e toma sucos.
-Só me restam vocês. E eu estou quase abandonado pelo futuro também que não quer mais me tornar um médico! Sabem por que? Porque está dando tudo errado! Minha mãe me ameaçou ontem, sabiam? Tae me fez trabalhar forçadamente por várias horas: Fui porteiro, professor e lavador de pratos! E ainda levei um fora bem grande dele! Tudo em uma única noite! Ah, e me ameaçou em voltar a ser meu inimigo número um na faculdade! E sabem como ele me pagou? Me pondo para fora daquele apartamento frio e horroroso, cheio de pulgas, que só tem um banheiro, em plena madrugada!! Vocês pretendem me abandonar também?
Os livros de Jeon ouvem tudo ali, quietinhos, na sua confortável sala de estudos, completamente equipada com tudo o que ele precisa para se tornar um médico dono de um hospital ou de uma clínica luxuosa.
Ele está tomando seu breakfast rico, em sua sala de jantar top, e conversando com seus livros que estão vendo ele, lá de dentro da sala de estudos. Ele deixou a porta aberta para manter esse diálogo franco, matinal e direto com seus parceiros acadêmicos.
Ele continua com sua interação curiosa:
-Estão vendo como estou solitário? Já viram alguém conversando com livros? Pois é... esse sou eu hoje.
Ele toma metade de um copo de suco de laranja de uma vez e volta ao diálogo:
-Sou um enjeitado. Não confundam com ejetado.
Jeon pensa melhor.
-Confundam, não tem problema. É tudo a mesma coisa: enjeitado e ejetado. Dá no mesmo. Querem dizer a mesmíssima coisa que está doendo em meu coração: ser expulso. Tae me expulsou de sua vida! Assim... do nada!
Jeon parte algumas fatias de queijo e passa muita geleia sobre elas...
Após comer algumas ele continua:
- Tae disse que não me quer mais. Não me quer mais, pode? Deseja um amor público! Um amor social! Só serve se for assim. Um relacionamento publicizado. Tem que ser assim. E eu? Eu não tenho direito a minha privacidade? Tenho que ser uma borboleta social como ele? Todo mundo quer mandar em mim, livros! Todo mundo!
Jeon come várias colheradas de seu cereal com leite bem rápido porque tem mais denúncias que estão na ponta da língua:
-Mas isso vai mudar! A partir de hoje sabem o que farei para Tae, com Tae e por Tae?
Ele come mais ou menos a metade de um sanduiche e continua:
-Isso mesmo! Vocês acertaram: nada!! Isso é o que farei para, com e por Tae a partir de hoje: nada, nada, never jamais!!! Frieza, indiferença, descaso, apatia, desconsideração e todos os sinônimos existentes para a palavra indiferença! Isso é o que ele terá de mim, livros! Nada mais, nada menos e nada além disso!
Jeon toma o restante de seu suco de laranja e continua, conversando de sua mesa de jantar, com seus livros que estão em seu estúdio:
-Mas ele ainda vai vir atrás de mim! Tenho certeza! Minha consciência nunca falha.
Jeon põe uma xícara grande de café que ele toma com pão de queijo.
-Isso é o que dá ser uma pessoa boa como eu. Ninguém agradece. Ninguém reconhece! Nem sua mãe! Viram a minha? Quer me despejar! Hunrumm... isso mesmo. Será que ela vai ter mesmo coragem?
Jeon come a outra metade de seu sanduiche com um copo de leite quente e continua:
-Adeus hospital, adeus clínica de luxo em cirurgia plástica! Que tipo de médico eu serei sem dinheiro para investir em minha carreira? Um empregado? Um plantonista comum que vive com sono?? Eu amo dinheiro, livros! Amo! Não posso viver sem ele! O que eu farei sem meus cartões de crédito?
O diálogo de Jeon com seus livros é interrompido bruscamente pelo toque da campainha que soa insistentemente:
Toca, uma, duas, três vezes, quatro vezes seguidas, desesperadamente.
-Já vai! Até parece que é meu outro eu tocando!
A pessoa volta a tocar várias vezes.
-Eu já disse que estou indo!
Jeon abre a porta.
É Tae. E ele está aflito.
-Jeon... bom dia. Preciso de você!
-Já?? O que deseja, caro Taehyung? –Jeon, com sua nova postura fria, indiferente, com todos os seus sinônimos.
-Jeon, estou com um problema grande em meu apartamento e preciso que me ajude em algo. É sério.
-O que aconteceu, caro Taehyung?
-Os canos de água do meu apartamento estouraram! Todos!
- O quê?? – Jeon toma um grande susto com o que Tae lhe fala. Seu sonho chegando na realidade??
-Estouraram? Está... está me dizendo que...
-Sim. Está tudo alagado. Jeon! Fechei o registro geral. Foi um verdadeiro dilúvio! Preciso de um grande favor seu! Agora!!
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