Chloé bocejou, resistindo à vontade de encostar sua bochecha na superfície plana da mesa da sala de reuniões do palácio. Seus olhos piscaram apáticos com a entrada dos membros da alta corte, que não deixavam de lhe lançarem seus olhares analíticos, reprovação escrita em cada traço.
Normalmente Chloé se encolheria em seu lugar, não acostumada a ser encarada com olhares tão duros, mas Chloé estava cansada, com os pés doendo de tanto andar, a garganta ardendo após pronunciamento atrás de pronunciamento, sua coluna protestando contra o espartilho e seu estômago roncando enfurecido. Ela não estava com tempo para se importar com olhares.
Ao seu lado estava Lila, ainda impassível, mesmo com sua possível condenação ao ter que confessar que enfeitiçou o príncipe Félix. A sala toda estralava com o barulho de Nadja digitando furiosamente em uma máquina de escrever antiga, juntos dos passos agitados do rei pela sala.
— Eu realmente espero que você tenha uma boa explicação para esse circo, Tomoe — o rei apontou um dedo para a bruxa que estava sentada em cima da mesa, com os braços cruzados e uma sobrancelha erguida para todo esse show.
— A única coringa aqui é sua feiticeira real — Tomoe não se abalou quando disse isso, olhando diretamente para Lila. — Não estaríamos tendo esse tipo de discussão se controlasse sua filha também — virou a cabeça na direção de Chloé com impaciência, talvez até um pouco de condescendência, como fazemos quando crianças fazem algo especialmente ingênuo.
— Não fale de Chloé assim — o cenho do rei André se franziu, seu corpo largo se colocando entre Chloé e Tomoe.
— Ou o quê, meu Rei? Eu sou mais forte do que você, tenho mais poder do que você e não é a minha instituição que está quase começando uma guerra — Tomoe inclinou sua cabeça para o lado, lábios finos abertos em um sorriso desafiador. — Eu tenho Argos e o reino de Akuma na minha mão, eu não experimentaria me desafiar se fosse você — sua voz estava baixa, intimidadora enquanto se inclinava na direção do rei.
André não se deixou abalar, embora um observador mais atento notasse como ele engoliu em seco e seu dedos se contorceram atrás de algo para agarrar.
— A MLB sempre prestou apoio à Miraculous — o rei lembrou firmemente, olhando para seu conselheiro de relance, ninguém importante para essa história.
— Mas nossa lealdade sempre esteve com Akuma — Tomoe afirmou, saindo de onde estava sentada na mesa para se erguer em toda a sua altura na frente de André. — Quanto a Miraculous, não tivemos escolhas, Argos pediu que executássemos o tratamento da verdade nas mulheres que se confessaram no baile, não pudemos protestar contra isso ou levantaria suspeitas.
Um suspiro coletivo pareceu deixar a sala mais leve, então a MLB não os havia traído. Ainda.
— Poderia ter avisado — Chloé disse ao acaso, mais para sentir que estava fazendo parte da conversa do que qualquer outra coisa.
Má ideia. Mesmo por trás dos óculos escuros ela sabia que os olhos de Tomoe se concentraram nela, perigo escondido neles. Talvez fosse a postura confiante da bruxa. Talvez fosse seu número de feitos, seus segredos jamais contados e seu poder imensurável. Chloé se encolheu sob o olhar.
— Por favor — Tomoe bufou com isso. — Já fizemos mais que o suficiente livrando Félix daquele feitiço.
— Isso é sigiloso — o rei estralou, não querendo que Chloé ou Lila soubessem mais do que o necessário.
— Estamos sub rosa¹, Rei — Tomoe apontou para as rosas no teto. — A pergunta é, o que é tão importante que me fez vir até essa sala?
— Você ouviu meu pronunciamento — não foi uma pergunta.
É claro que Tomoe tinha ouvido. Todo mundo ouviu. Chloé estremeceu ao lembrar da quantidade de teatralidade que teve que imputar em sua linguagem corporal e falas ao longo do dia, como se o reino de Miraculous estivesse absolutamente ofendido com a desconfiança de Argos, afirmando que Lila passaria sim pelo tratamento da verdade, que eles não tinham nada a esconder.
Chloé não sabe se faria as mesmas escolhas que seu pai se fosse rainha. Se teria pulso para chegar na frente de todo o seu povo e mentir assim, manipular as mídias e as opiniões, mentir como quem fala às horas ou o nome completo, se vitimizando até o fim, enganando, manipulando, controlando.
— Vocês precisam resolver isso — foi a exigência do rei, tão seguro de sua posição de poder que nem fez questão de fingir que era um pedido educado.
— Como? Vocês realmente enfeitiçaram o príncipe, querem que na gente faça o quê? Vocês vão ter que fazer a fada passar pelo tratamento de uma forma ou de outra.
— Eu não se, Tomoe, cancelem, adulterem, matem Lila se for preciso! — André esbravejou, balançou os braços e bateu um punho na mesa, exigente.
— Isso seria um horror pro marketing — Nadja parou de digitar com isso, passando a mão pelos cabelos fora do lugar, os olhos arregalados com a possibilidade.
— Cale a boca, Nadja — Lila mandou, impaciente com a interrupção, o que fez Chloé erguer uma sobrancelha surpresa.
— Tudo bem, mas eu só estou dizendo que eu gostaria de ser informada da próxima decisão que tomarem, porque até onde eu lembrava a gente ia falar que as traições eram mentira, aí eu acordo hoje e... — Nadja se impediu de continuar quando uma mosca pairou muito próximo de seu rosto, provavelmente mandada por Lila. — Eu vou ficar quieta.
— O que eu ganho com isso? — Tomoe continuou logo em seguida, ignorando quaisquer conversas ou preocupações paralelas. — Além de prejudicar a integridade e honestidade da minha instituição, é claro.
— Você está brincando? — André riu, o que deve ter sido o som mais genuíno que saiu da sua boca ao longo do dia, incrédulo com a atitude da bruxa. — Você não pode estar realmente no meu reino, no meu palácio, comendo da minha comida e bebendo da minha bebida e perguntando isso — gesticulou furioso, sua voz apenas um pouco mais alta, mas já mostrando o quanto estava no limite, estressado até os ossos. — Meu reino é aliado da MLB há séculos, nós apoiamos vocês em cada campanha ridícula, em suas polêmicas supérfluas e em seus interesses egoístas — ele se aproximou da bruxa até que seus rostos estivessem a poucos centímetros de distância, sussurrando da forma mais controlada que pôde: — Você me deve isso, Tsurugi.
Eles se encararam por um tempo, energia nervosa fervilhando entre eles enquanto pareciam avaliar as cartas que um dispunha sobre o outro. Inabalável, Tomoe inclinou a cabeça quase que com curiosidade.
— Você está me ameaçando? — ela sorriu largo quando o rei se afastou dela, meio desacreditada, meio impressionada com a audácia dele.
— Só estou dizendo que sabemos de muita coisa sobre vocês, bruxas — o rei se recompôs, forçando uma falsa superficialidade amigável, a palavra “bruxas” sendo cuspida como se queimasse sua língua. — E o mundo está cheio de pessoas como Nadja, loucas para saberem o motivo do decaimento da...
— Tudo bem, tudo bem — o rei parece ter tocado em uma ferida, porque então Tomoe também estava sorrindo sob uma falsa camada amigável, balançando as mãos na frente do rosto em um gesto universal de "apenas cale a boca". — Nossa, não diga essas coisas assim — riu seca, passando uma mão pelo cabelo.
— Estamos sub rosa — André usou a frase contra ela, gostando de como isso fez o sorriso da bruxa sumir.
Tomoe torceu um pouco a boca para toda a situação em que se encontrava, mas foi isso, ela não tentou mais debater com André ou revirou os olhos como uma adolescente quando discordam dela. Tomoe se ergueu ainda mais em sua postura, virando-se para falar com todas as pessoas na sala quando se pronunciou, não parecendo nem minimamente abalada com a ameaça do rei de Miraculous, como se já estivesse acostumada a ser ameaçada e chantageada, o que, provavelmente, estava.
— Podemos adulterar o soro da verdade, a princesa só precisa não estragar tudo até lá e, no dia, Lila só precisa dizer que não enfeitiçou o Félix — olhou para cada uma das mulheres citadas enquanto falava, um aviso de alerta claro com o gesto. — Vou mandar minha assistente para discutir o pagamento.
— Não vamos pagar nada, você não me ouviu? Acabei de ameaçar contar a sujeira de vocês se não ajudarem — André se revoltou contra esse absurdo, ainda mais quando eles tinham todo o material necessário para chantagear a organização de Tomoe, mas a líder da MLB não estava mais ouvindo. — Tomoe — o rei chamou com raiva, observando incrédulo a bruxa simplesmente abrir as portas da sala com um gesto de mãos e sair da sala sem dizer mais nada. — Tomoe!
André soltou algo entre um grunhido e um bufo para isso, batendo os punhos na mesa para aliviar um pouco da tensão, mas esse foi o único gesto que ousou fazer para demonstrar isso. Ele tinha que continuar lidando com a situação, tinha que estar no controle, tinha que se preparar para o pior e o melhor dos cenários.
— E quanto a Dupain-Cheng? — alguém perguntou e era cedo demais para o assunto Dupain-Cheng, ele mal estava lidando com Tomoe e sua associação de bruxas corrupta.
— Espero que esteja morta em alguma vala — reclamou com escárnio, deixando seu corpo cair em seu assento real pelo que parecia ser a primeira vez no dia. — Sabem de algo sobre ela?
— Foi vista essa manhã em uma taberna perto da floresta das Joaninhas — Nadja contou sem tirar os olhos das palavras que digitava, trabalhando no que já deveria ser a sétima ou oitava matéria do dia sobre o mesmo assunto.
— Kim? — o rei olhou para o chefe da guarda, buscando um relatório.
— Ainda nada — o guarda foi direto ao ponto, sem rodeios ou floreios com estimativas esperançosas de que em breve pegariam Marinette, não quando eles nem mesmo sabiam onde ela estava, não quando eles não faziam ideia de como capturá-la. Maravilha.
André não se prestou a responder, levantando de sua breve pausa, ele saiu da sala batendo a porta de forma desleixada, os pés já caminhando no automático para seu próximo compromisso, onde teria que conversar e acordar precauções com qualquer que seja a pessoa influente da vez.
— Papai, espere — a voz de Chloé soou atrás dele agitada, saltos estralando contra o chão conforme se aproximava. — Quanto ao casamento...
— Ainda vai acontecer, Chloé — não deixou espaço para que a princesa continuasse sua fala, sua decisão já bastante clara e inalienável.
— Por quê? — Chloé protestou, agarrando a mão do pai para que ele parasse de andar, parasse de agir como um rei por um maldito minuto e mais como um pai. — Argos acaba de desconfiar da gente correndo para a MLB confirmar o que negamos, eles duvidaram da nossa palavra!
O rei se virou para ela, suas feições carecendo de emoções enquanto olhava para a filha com toda a frieza de um monarca. Chloé estremeceu, ela nunca imaginou que receberia esse olhar do seu pai, esse olhar de rei.
— E quando provarmos que tudo o que falamos é a verdade e que Lila não enfeitiçou ninguém, os Fathom vão oferecer muito mais do que estavam dispostos inicialmente como pedido de desculpas — André informou quase didaticamente, falando alto na esperança de que fosse ouvido e os boatos de que Miraculous era inocente ganhassem força. — Podemos ganhar muito mais do que o previsto com essa união.
Algo dentro de Chloé se quebrou. Ela imaginou que alguém que acaba de se atropelado por uma carroça provavelmente se sentia assim. Desolado. Impotente. Talvez injustiçado. Magoado. Quebrado.
Ela estava com raiva de tudo e todos por essa situação porque ninguém estava vindo para consertar essa bagunça.
— Pai... — Chloé choramingou, seus lábios tremendo, esperando obter algum consolo, alguma palavra de motivação do homem que a amou e protegeu a vida inteira.
— Haja como uma rainha, Chloé.
— Eu sou sua filha.
— Não — o rei afirmou, dando as costas para ela enquanto voltava a andar. — Você é nossa herança. Haja como tal.
Mas não era seu pai falando. Esse era o rei e ela era a futura a rainha.
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