X - Queridos leitores, hoje lhes oferto: Trauma. Amanhã? Quem sabe?
Ninguém espera que um espelho vire um alçapão caleidoscópico, os gritos de Mitch, Hesper e Icarus comprovavam isso bem.
Os três giravam sem rumo em um mar de reflexos que repetiam sua descida, distorcia seus corpos e os replicava em padrões florais feito aquelas mandalas indianas, só que infinitamente e por toda parte.
Mitch quis vomitar no meio da queda, até ver todos os reflexos convergirem em um só ponto e se segurar firme, temendo se chocar contra um espelho e morrer por um milhão de cortes.
Mas tal qual ele havia entrado ali, o garoto se viu atravessando o reflexo e rolando no chão, seguido por seus amigos, que caíram bem em cima dele, um após o outro.
- Porra… - ele grunhiu de dor, baixinho, sentindo a bunda de seus dois amigos atingir suas costas.
Eles saíram de cima dele em seguida. Mitch apalpou as costas como pôde e verificou se ainda tinham tudo com eles. A mochila do acampamento e as armas estavam intactas, e o embrulho de do Sr. D. estava poucos metros a frente, bem diante da gigante piscina.
Hesper apanhou o objeto, Icarus respirou fundo e perguntou: - Onde estamos?
Um calafrio percorreu todo o corpo de Mitch.
Ele sabia bem onde estavam.
Os olhos de Mitch vaguearam pelo ambiente, estudando o enorme pátio ladrilhado. O horizonte, entretanto, estava esquisito: O céu noturno, a propriedade imensa e todo o resto, refletiam e refratavam em padrões geométricos como os espelhos na galeria.
Ainda estavam no labirinto, mas o reflexo que se espalhava naquela área vinha diretamente da mente do filho de Laverna.
O garoto reconheceu tudo - A piscina olímpica e o jardim diante de uma enorme casa que parecia imitar um palácio grego antigo. A área com o gazebo e a estátua de seis metros de altura que imitava um homem vestido de armadura e usando um diadema solar como coroa. Tudo estava idêntico e no mesmo lugar.
Hesper estudou a estrutura e apontou para algo abaixo dela.
Aos pés da estátua, ele avistou uma pequena silhueta se distinguindo dos arbustos: Um jovem garoto vestido em roupas surradas com um cabelo curto e ruivo, sardas por todo o rosto e um olhar desconfiado.
- Ah, Deuses. - Mitch vociferou, observando a cena se desenrolar. - N-Não pode ser!
Ele deu um passo para trás, cada vez mais nervoso. Seus amigos o encararam, confusos.
- Isso é uma memória, não é, Mitch? - Icarus adivinhou, ladeando-o diante da piscina. - Do tempo que você fugiu de Nero?
- É… - disse o filho de Laverna, frágil. Seu olhar se guiou para o gazebo, vendo sua forma mais jovem se esgueirar na direção da construção, atraído pelo cheiro da comida e pelo luzir dos talheres dourados. - Ah, não, não…
Mitch deu meia volta e correu, seu coração batia forte contra o peito e seus passos se agitaram. Hesper e Icarus gritaram para que ele voltasse, mas o garoto foi direto para a parede oeste do local e botou tanta força no movimento que bastou o apoio de um banquinho errante, para que em uma acrobacia digna de parkour, ele estivesse do outro lado do muro em uma cambalhota.
Mitch ofegou e se apoiou nos joelhos, respirando fundo enquanto o ar frio da noite infestava os pulmões.
Ele piscou e notou os ladrilhos onde pisava - cor de creme e uma borda de granito escuro diante da piscina. As pinturas retratavam pequenos bois e símbolos solares ao redor da borda, tudo no mesmo tom dourado.
As silhuetas de Hesper e Icarus o ladeavam, eles pareciam igualmente confusos.
- Não dá para fugir. - Hesper falou, compadecida.
Sua mão encontrou o ombro do garoto, que tremia no lugar e os fitava exasperado.
- E-eu não…Eu não posso fazer isso, pessoal… - ele agarrou a cabeça e tremeu, fitando os pés e ignorando o quão bem conseguia ouvir seu eu mais novo remexendo nos talheres e comemorando por ter achado comida depois de tanto tempo saltando de sombra em sombra.
Icarus o tocou no outro ombro, sua voz calma saiu hesitante: - Ei, Mitch, estamos aqui.
- Olhe para a gente. - Hesper falou, sua voz soando contra os ouvidos de Mitch naquele tom melodioso sem esforço que ela falava. - Nós não vamos a lugar algum. Estamos contigo!
- Você não está sozinho. - Icarus falou, apertando seu ombro e dizendo: - N-não precisa estar.
O garoto ergueu a face trêmula e assentiu devagar.
Ele respirou fundo e fitou o gazebo, sabendo bem o que vinha em seguida.
Assim que viu o jovem Mitch por um resto de queijo na boca, ele avistou a silhueta que se aproximava, de roupão dourado e uma face despreocupada.
Mitch deu um passo instintivo para trás.
Hesper fitou o homem que se aproximava do gazebo e Icarus ficou mais perto do amigo romano. Os três encararam sua feição, que se aproximava e subia os degraus para o gazebo devagar.
Seu eu mais jovem fez menção de se esconder, seus cabelos se agitaram em bronze luminoso e ele deslizou para baixo da mesa velozmente, tão rapidamente que era difícil de perceber. A luz do gazebo se acendeu em um tom cálido.
A feição do Rei foi iluminada.
Mitch se empertigou, percebendo que ele e os amigos agora estavam dentro do gazebo, fitando-o de perto.
Era um homem de quase um metro e oitenta de altura, ele tinha uma feição que parecia ter sido esculpida por Fídias, um daqueles escultores famosos.
O rei tinha um rosto jovem de no máximo trinta anos, que o fazia parecer um daqueles super-modelos gregos, com o nariz bonito e volteado, barba bem-aparada e um bronzeado natural por todo o corpo torneado. Os cabelos eram longos, morenos e sedosos, contornando ombros fortes ocultos pelo roupão dourado de cetim.
Em suas mãos, havia um cálice de puro ouro, cheio de vinho frisante. Seus olhos - duas esferas de ouro enriquecidas com brilho - miravam a mesa no centro do gazebo, de onde tinha uma vista perfeita da propriedade e de sua enorme estátua dez metros ao lado.
Seus pés descalços deram mais um passo adiante, ele deu um suspiro e se espreguiçou.
- Saia de onde está, criança. - a voz dele era aveludada e gentil, como um sopro de verão. - Você é bom se escondendo, mas pouco foge de meus olhos, receio.
O jovem Mitch fingiu não ouvir.
O homem moveu a mão direita à frente do rosto, como um mágico fazendo um truque.
Luz dourada encheu todos os objetos: Pratos, cadeiras, talheres e cálices. Todos se moveram de súbito no mesmo lufar de ar quente. A mesa se afastou com mais um gesto, revelando o garoto assustado, se apoiando nas mãos e pés.
- E qual é o seu nome, criaturinha? - o homem inclinou o rosto com um sorriso amigável. Cadeiras e cálices orbitavam ao seu redor, filetes de luz emanavam da mágica incandescente que flamejava entre seus dedos bronzeados. Tudo o rodeava, como o sol no meio do espaço sideral. - Poucos passam de minhas defesas sem serem percebidos, sabe? É muito curioso.
Mitch engoliu em seco ao ouvir o dito pela sua versão mais jovem: - E-eu sou Septimus.
Os olhos do homem brilharam de satisfação.
Ele moveu as mãos em um gesto gentil - restos de comida se acumularam em um prato de porcelana, que repousou em seus dedos. Champanhe brotou em um cálice flutuante e se moveu na direção de Septimus.
O menino ruivo ofegou, surpreso pela magia e pela comida à sua frente.
Ele apanhou uma coxa de peru e começou a mastigar.
O rei deu risada diante dele.
- É um prazer conhecê-lo, jovem Septimus. - a voz do homem soou cheia de empatia e gentileza. Ele se sentou no chão e sorriu, um halo de luz se amontoava em sua cabeça, como uma coroa cálida e translúcida. Septimus se distraiu com a mágica dos objetos flutuantes ao seu redor, mas a voz do homem logo o trouxe de seu estupor. - Meu nome é Aëetes.
Icarus arquejou, Hesper fitou o amigo e murmurou: - Quem?
- O rei da Cólquida. Pai de Medéia. - murmurou o filho de Hécate, exasperado. - Bruxo e necromante, tentou matar Jasão e os Argonautas.
- E-esse mesmo. - Mitch viu a visão mudar de súbito, o reflexo a frente se desfez em fractais de memória em padrões caleidoscópicos de repetição, replicando o encontro entre Aëetes e ele. O jovem garoto perdido e o rei ambicioso e perigoso.
Havia um corredor de memórias refletido diante deles, se ampliando em uma galeria que se repetia e se desdobrava pela paisagem com um silvo de energia, como se ligassem monitores.
- O Rei-Bruxo me tomou sob sua asa depois daquilo. - Mitch falou, trêmulo. - De início, foi muito bom. Ele era…legal.
As memórias adiante refletiam aquilo - Os dois conversando numa mesa gigantesca. Mitch passeando pela livraria de Aëetes e vendo-o ensinar um monte de coisas. Desde um pouco de grego antigo até suas origens, onde descrevia seu irmão Perses como um usurpador e sua filha como uma trágica traidora.
Ele adorava falar sobre si mesmo.
As horas passadas brincando na piscina e o conforto, toda noite, de repousar em uma cama segura enorme.
Mitch segurou o choro ao parar diante do dorminhoco Septimus em um reflexo.
Icarus respirou fundo ao seu lado. Hesper cruzou os braços e negou com a cabeça.
Septimus despertava na memória, rumando entre os corredores chiques do palácio de Aëetes, explorando tapeçarias belíssimas que retratavam seu antigo Velocino de Ouro e seu reino de outrora: A gloriosa Cólquida.
Inscrições em laz, grego antigo e minoico enfeitavam as colunas do palácio, assim como os guardas que patrulhavam seus corredores: Spartoi vestidos como seguranças de terno, com crânios reluzentes com chamas douradas dentro de seus olhos esqueléticos.
O jovem Septimus se esgueirou por todo lado, sabendo se aproveitar de como as sombras ocultavam seus passos. Cada cômodo era recheado de afrescos, artes ilustrando a silhueta luminosa do Rei e também a traição que sofrera por sua própria filha, Medéia.
A maioria, entretanto, representava o que ele queria que todos vissem: Um rei benevolente e podre de rico, sempre encimando outrem e entronizado nas artes onde fosse representado.
Ele sentia seu coração palpitar, logo parando diante da enorme porta dourada com o AA da empresa de Aëetes: A Associação Áurea, seu conglomerado de riqueza ao longo dos anos. O que quer que houvesse ali atrás, era algo valioso, supunha o jovem semideus.
Mitch, Hesper e Icarus, que estavam observando tudo de uma coluna próxima, viram então o rei surgir atrás do garoto e falar em voz ríspida: - O que fazes, Septimus?
- O-oh, milorde! - o pequeno se virou, subitamente encurralado.
O rei o fitava com seus olhos luminescentes, ladeado por dois seguranças spartoi. Dessa vez, ele usava um roupão e um turbante reluzente na cabeça, o mesmo tom de luz cálido lhe servia de halo.
A feição calculista de Aëetes decifrava o jovem, que engolia em seco e se mexia nervosamente no lugar. Um rato encurralado por um leão.
- Pensei que havia deixado claro que essa área era restrita.
- E-eu entendo perfeitamente, milorde! Só estava dando uma volta.
Aëetes cruzou os braços e meneou com a cabeça, estreitando os olhos.
- Septimus…
- Ok, certo! - disse o menino, exasperado. - Eu ia meter o bedelho onde não deveria…De novo!
Mitch massageou suas têmporas, Septimus ainda tremia.
- Que bom que admitiu, me faz confiar mais em você. - disse Aëetes, repousando a mão recheada de anéis cintilantes em seu ombro. Ele se curvou, e falou próximo do ouvido do garoto, puxando-o para perto.
Calafrios subiram pela espinha dos meio-sangues ao ver aquilo. A figura de Aëetes envolvia Septimus em um abraço, era perturbador vê-lo tão perto, o garoto praticamente sumia entre seus braços e feição.
- E se eu te mostrasse o quê há ali? Em breve, muito breve. - ele apontou para a porta, o coração de Mitch se acelerou e ele negou com a cabeça. Septimus assentiu, animado. - Ótimo, mas tem que fazer tudinho que eu disser, tá bom? Seja um… bom menino.
Mitch deu para trás de súbito, a imagem refletida por todo lado se tornou a porta dourada. Ele se viu diante dela, ofegante e suando frio.
Estava vagamente consciente de Icarus e Hesper ao seu lado, calados, mas próximos. Náusea revirava seu estômago e a cabeça parecia pesada.
Mitch quis gritar com Ariadne, onde quer que ela estivesse. Aquele labirinto era terrível. Embora o garoto bem soubesse que a única direção que tinha era em frente, ele se sentia cada vez mais encurralado por um passado que pouco sabia se queria ou poderia enfrentar.
Era demais, doloroso demais.
A presença de seus amigos se achegou dele, o garoto respirou fundo e endireitou sua postura, com uma lágrima cruzando o rosto quando ele se virou para os dois e disse: - V-vocês vêm comigo?
Hesper segurou em seu ombro e Icarus entrelaçou seus dedos.
Mitch deu um passo adiante e abriu a porta.
[...]
Ao cruzarem o recinto, se viram em mais uma série de corredores recheados de espelhos.
No final dele havia algo - Uma enorme tapeçaria.
Um soluço se alojou na garganta de Mitch, Icarus e Hesper pararam junto com ele diante da obra.
- Para o quê estamos olhando, Mitch? - perguntou a filha de Apolo, devagar.
- O mês seguinte de minha estadia com Aëetes. - ele apontou para a parte de cima, mostrando o jovem Septimus junto ao Rei-Bruxo entretidos em uma conversa. Haviam viajado para Orlando e visitado a Disney naquela época. - Ele ficou mais grudento, mas parei de roubá-lo em segredo. E-eu queria ser um…bom filho. - os olhos de Mitch rumaram para o centro da tapeçaria, que flamulava levemente. Era a figura de Septimus vestido em uma armadura grega e com uma cimitarra nas mãos. Aëetes estava ao lado, ambos fitavam a porta de antes e eram ladeados por esqueletos. - Ele me ensinou um monte de coisa e disse que estava na hora de me mostrar o que havia atrás da porta. Disse que era importante para todos e que um semideus como eu poderia ser promissor ao seu lado, grande como outros heróis feito Hércules e Orfeu. Isso se eu cooperasse.
Mitch fitou o fim da tapeçaria e apertou a mão de Icarus, que o fitou enrubescido, Hesper respirou fundo ao encarar o mesmo ponto detalhado no tecido brilhante.
- Eu não obedeci.
A figura final era uma silhueta humanoide caída diante de um furioso rei de olhos de fogo. As mãos de Aëetes eram labaredas douradas e intensas de cor. A tapeçaria flamulou mais algumas vezes diante deles.
Os três respiraram fundo ao verem-na estendida adiante, só que com outras imagens em sua extensão. Mitch pegou os dois amigos pelas mãos, reparando que estavam naquela sala.
Septimus entrou pela porta, guiado pelo rei, cuja mão repousava em seu ombro coberto de armadura.
Seus olhinhos estudavam a sala com curiosidade, o rei gesticulava adiante, apresentando-o tudo em que havia trabalhado e dizendo: - Este é meu escritório, Septimus, bem-vindo.
O ruivo mais jovem fitou o local.
Havia uma pequena escadaria que dava para a sala, que estava recheada de coisas cintilantes, valiosas e sinistras em igual medida.
Em um canto à direita, o garoto viu um tear enorme e reluzente, de madeira envernizada e com partes metálicas de Bronze Celestial. No centro, uma enorme pira flamejava com tons esverdeados - Ignis Graecus, como Nero costumava chamar aquilo, o temível Fogo Grego.
O horizonte era encimado pela enorme tapeçaria, havia um pequeno trípode diante de um enorme buraco na parede, como um recorte profundo e escuro.
Pouco a frente, depois da escadaria, havia um grande tablado de mármore branco. Uma espécie de altar, com um trípode recheado de incenso flamejante que enchia o ar com aroma de mirra. Uma adaga repousava adiante, potes com ervas e outros instrumentos mágicos reluziam diante de um enorme papiro escrito em minoico. Uma caveira humana repousava em um suporte de bronze, os olhos secos fitando-os.
Aëetes apresentou tudo a ele e apontou para sua tapeçaria.
Os olhos dele, cheios de orgulho, vibraram em luzejos junto com suas palavras.
- Essa é minha visão, o que desejo trazer para todo o mundo!
Septimus fitou o mesmo ponto que ele.
A tapeçaria era simples de entender - Representava Aëetes encimado em um trono maior que todo o globo terrestre. O sol era sua coroa, a lua repousava em sua mão e na outra, havia os fios de um imenso tear que pendia entre seus dedos.
Aquilo enviou um calafrio simultâneo por Septimus e por Mitch, que assistia junto aos amigos logo atrás de sua versão mais nova.
- O que você quer com tudo isso? - a voz de Septimus soou hesitante.
Aëetes deu de ombros e caminhou para a direita, se aproximando do tablado e apoiando o cotovelo no altar de bruxaria dele. Seus olhos dourados encararam o filho de Laverna e disseram: - O que sabe sobre as Parcas, minha criança?
- Nona, Décima e Morta são as deusas do destino. Filhas de Júpiter. - a resposta automática veio diretamente de sua memória. Ele lembrava das aulas com Nero, terríveis como fossem.
- Nós gregos temos outros nomes para elas, mas é o mesmo princípio. - ele encarou sua tapeçaria e suprimiu um suspiro. As chamas do trípode brilhavam adiante, lançando o mesmo tom verde de luz pelo ambiente levemente escuro. Estavam mais fundo na terra que o resto da mansão, reparou o filho de Laverna. - O quê eu quero é ser o dono de meu destino, Septimus. Eu poderia mudar…TUDO!
O ruivo meneou com a cabeça: - Você não gosta do mundo?
- Ele poderia ser bem melhor com um líder competente ditando as coisas como deveriam ser, não acha? - disse Aëetes, com um sorriso amistoso. Ele se aproximou de Septimus e o rodeou com um braço, trazendo-o para perto. - A Cólquida prosperou sob meu reinado por éons, meu caro, lembra?
- Até Jasão levar o velocino, tô sabendo. - disse ele, mais nervoso a cada amontoado de luz que parecia emanar dos olhos do Rei-Bruxo. - Como você quer fazer isso?
- Oh, fico feliz que tenha perguntado. - a voz do rei desceu um oitavo. Sua postura se endireitou. - Venha cá!
O rei deu uma volta ao redor de seu altar e rumou sala abaixo.
Septimus o seguiu até estar de frente para um túnel que afundava na pedra maciça, se perdendo em escuridão adiante.
- Este é um dos túneis dos kimmerioi, um povo que vive em um complexo sistema labiríntico de cavernas que pode nos levar para o Mundo Inferior, onde as Parcas residem. E para navegá-lo, tenho um pedaço importante disso comigo, querido!
Ele mostrou um novelo de lã dourada, reluzindo entre os dedos.
- Parte do fio de Ariadne. - falou Mitch, ladeado pelos amigos. Eles fitavam o desenrolar entre o rei e o jovem garoto, enquanto ele o envolvia com seu plano maléfico. Mitch ficou reto e disse: - É agora.
- Então…Você quer que eu vá ao mundo dos mortos e roube o tear das Parcas para que você domine o mundo?
- Quando você fala assim, até parece pouco razoável. É um nobre propósito. - insistiu o Rei-Bruxo, a compostura pomposa de sempre. - Com o fio, você chegará bem diante de seu palácio, sem erros. Com o tear delas, colocarei a minha tapeçaria em movimento. É isto ou usurpar seu trono...Mas isso seria complicado demais.
Ele apontou para sua tapeçaria megalomaníaca, um brilho ambicioso cintilou no fundo de suas íris. Era como se um esfomeado avistasse pão fresco.
- E porque eu? - Septimus perguntou velozmente, recebendo um olhar de soslaio do rei. - Você é forte! Você pode ir e conseguir tudo!
- Eu poderia, mas o Submundo é fechado para certos imortais, a não ser em ocasiões especiais... - explicou ele, movendo a mão em desdém. Ele se agachou e arrodeou o ruivo com seu braço esquerdo. - É muito mais trabalhoso, mas ainda possível. Mas tu, um grande herói filho de Laverna, Deusa do roubo?! Você é perfeito, Septimus!
Septimus deu um sorriso bobo ao ouvir o nome de sua mãe, ela nunca o reclamara afinal. Seus olhinhos escuros se encheram de brilho, as mãos ficaram irrequietas, nunca havia sido elogiado assim. Estava feliz.
- Eu posso ver minha mãe se fizer isso?!
- É claro! - proclamou o rei, tomando o garoto em seus braços e rodopiando-o no ar em um meio-abraço. Seus olhos resplandeciam, dourados. - Tudo o que quisermos, será nosso!
Mitch tinha uma feição trêmula assistindo aquilo. Icarus desviou o rosto e negou com a cabeça, Hesper falou, ríspida: - Mas que desgraçado!
- Fica pior. - murmurou o ruivo, vendo a memória se desenrolar com o Rei-Bruxo lhe estendendo o fio de Ariadne e lhe ofertar um sorriso de cumplicidade. - Fica muito pior.
- E então teremos tempo para brincar e roubar e fazer tudo o quê quisermos?!
- Sim! - declarou Aëetes, sorridente. - Você só tem que fazer sua parte, mas antes, tem que prometer.
Mitch segurou seu fôlego, vendo a feição de Septimus ir de animado para calculista em segundos. Algo imperceptível para a maioria, pois Septimus sorriu logo em seguida exibindo seus dentinhos idiotas e tomando o fio de Ariadne em mãos velozmente, com um vulto de movimento acobreado.
O Rei-Bruxo piscou, nem percebendo o toque leve do garoto que acabara de furtá-lo.
O filho de Laverna tinha uma Falha Fatal que também era um de seus maiores poderes.
Ele era um tremendo mentiroso.
- Tá certo! Eu juro pela minha cabeça! - ele sorriu e correu para longe, o Rei-Bruxo reparou que já não tinha o novelo de fio e piscou, confuso.
- O quê? Não, você tem que jurar pelo Estige, Septimus! - ele o repreendeu, caminhando em sua direção. - Pelo Estige!
Septimus soltou um muxoxo e correu com seus sapatos, risonho e nervoso simultaneamente. Sua mente cheia de lembranças dos discursos grandiosos de Nero, de sua alienação e violência. Ele conhecia aquele tipo de gente bem. Aëetes, entretanto, parecia convencido de que sua visão de mundo era melhor e que não era um megalomaníaco maluco.
E Septimus estava cheio de gente assim.
- Ou talvez pelo meu corpo! - gritou o semideus-ladrão. - Sim, pelo meu corpo juro que vou fazer o que você quer, velho! Só porque você pediu!
- VELHO?! - a voz do feiticeiro se elevou, os objetos na sala se afastaram dele em um surto de força invisível, sua coroa de luz solar cintilava em halo áureo sobre seus cabelos sedosos, a túnica elegante se movendo sozinha. - COMO OUSA ME DESTRATAR ASSIM?!
Septimus cuspiu no chão e estendeu sua mão para o Fogo Grego, em suas mãos, estava o fio de Ariadne. Seus olhos escuros iluminados pelas chamas bruxuleantes.
Aëetes parou de se mover, exasperado.
- Não…Septimus, querido, o quê está fazendo? Não é isso que queremos, certo?
- N-não… - negou Septimus. - E-eu só queria uma casa. Eu só queria…O mínimo.
- Posso te dar isso e muito mais! Olhe pra mim! - ele deu um passo adiante, Septimus se aproximou do fogo e sentiu a quentura contra sua pele branca. - Você não precisa fazer isso, querido! Não precisa ficar sozinho, você tem a mim!
- Você se importa comigo? Seja sincero, jure pelo Rio que falará a verdade! JURE!
Lágrimas desciam no rosto de Septimus, um choro copioso se derramava de Mitch e seus amigos. Eles o ladeavam, o garoto tremia e soluçava baixinho, aquilo era terrível.
O Rei-Bruxo abriu a boca, mas nada falou. Ele se retesou, os olhos presos no fio precioso.
Septimus entendeu o que aquilo significava - a terrível verdade de sua vida, de que ninguém se importava com ele, se repetia. E ele já estava farto daquilo.
Aëetes deu um passo adiante, o ar ficou cheio de calor.
O ruivo atirou o fio ao fogo, mas o feiticeiro ergueu a mão e uma rajada luminosa o envolveu, fazendo-o voar em sua direção. Ele sorriu para si mesmo, apenas para ver Septimus interceptá-lo em um salto, os cabelos cintilando junto às pontas dos dedos como o cobre de uma moeda aquecida.
Ele fitou o rei com o novelo em mãos, vendo-o tentando arrancá-lo de suas mãos com mágica, labaredas se erguendo de seus dedos.
- Como?!
- E-eu roubei. É meu agora. - falou Septimus, com um brilho esperto cruzando sua face assustada. Seu roubo sobrenatural prevenindo os truques do feiticeiro inimigo.
Aëetes avançou em sua direção, mas o garoto atirou o objeto contra o fogo.
O rei berrou ao vê-lo se tornar cinzas entre as chamas verdes. Septimus correu ao redor do trípode, mas o homem começou a levitar, cada vez mais irado. Os olhos se tornaram duas poças em chamas, com labaredas alaranjadas lambendo suas sobrancelhas e o ar se enchendo de sua mágica terrível. Todos os objetos se inclinaram em sua direção.
Sua feição assomou sobre Septimus, uma órbita de objetos - adagas, papiros, móveis e todo o resto - rodopiou ao seu redor como se ele fosse uma estrela enquanto sua voz chamejava palavras mágicas.
O ruivo ofegou e tremeu de medo, vendo o rei mover a mão envolta em fogo mágico.
O ar ao seu redor se tornou dourado, Septimus empunhou sua arma ao se ver arrastado por um puxão gravitacional na direção do Rei-Bruxo e moveu a cimitarra em um lampejo de movimento.
O objeto partiu a base do trípode e o Fogo Grego explodiu em uma onda de labaredas esmeralda, consumindo o carpete imediatamente.
Septimus foi levitado diante do rei, que bufava e ofegava irado, vendo as chamas se alastrarem pelo ambiente e tomarem vários objetos. Seu tear ardeu em brasas e a tapeçaria se tornava cinzas flamulando, enquanto tudo se iluminava e enchia de fumaça negra.
Aëetes fitou-o fundo nos olhos, sua face era um misto incandescente de raiva, incredulidade e ultraje.
- EU SOU SEU SENHOR! EU LHE DEI TUDO E VEJA COMO ME RETRIBUI?!
- Você… - disse Septimus, fraquejando enquanto o ar incandescente ao seu redor mantinha seus membros imobilizados. A mágica do Rei-Bruxo era forte demais, seu coração trovejava no peito, mas os olhos estavam fixos na feição dourada do inimigo. - Você é só mais um tirano.
- EU SOU…
- Um bobalhão! - completou Septimus, cada vez mais próximo do rei enquanto tudo ao redor deles era consumido por fogo. O ruivo tossia e chorava, pela fumaça enchendo seus pulmões e o calor irritando seus olhos.
Aëetes parou ao ouvir o dito, contemplando então todos os seus planos arruinados. Ele inflou suas narinas de raiva, fogo branco dançou em seus olhos.
- Você jurou por seu corpo, não é, larápio?!
O corpo de Septimus se inclinou na direção do Rei-Bruxo, suas mãos tomadas por labaredas douradas em cada falange flamejaram diante de seus olhos. Suor desceu na face do garoto, as íris negras dele se iluminaram com as chamas incessantes na palma do inimigo.
- Eis o preço de ser um herói, ladrão!
Septimus gritou, sentindo os dedos do rei afundarem em sua carne e as labaredas entrarem em sua barriga, derretendo sua armadura e tudo o que tocavam.
Mitch, Hesper e Icarus desviaram os olhares, de pé no meio das chamas verdes e intocados pela memória. O corpo de Septimus se enchia de fogo e os gritos sufocados do garoto só pararam quando Aëetes soltou um berro terrível.
Toda a órbita dele se expandiu em uma onda de força, Septimus, ou melhor, a silhueta altamente carbonizada do garoto, foi arremessada longe junto com tudo, sumindo entre as chamas e decaindo para o nada obscuro do túnel dos kimmerioi enquanto a sala inteira ardia em colunas de fogo esmeralda.
A visão ficou mais brilhante e distante, Mitch estava ajoelhado e a via cada vez mais longe.
O horizonte chamejante se tornou um ponto de luz terrível se replicando como pequenas luzes em uma árvore de natal. Estrelas, perdidas no espaço sideral.
Eles estavam em uma encruzilhada de três caminhos, iluminados por um mar de luzinhas feitas da maior tragédia que Mitch havia vivido. As respirações erráticas deles servindo-lhes de melodia, o eco dos gritos de Septimus ainda assolando seus ouvidos.
As lágrimas dele encontraram o chão, Mitch afundou o rosto contra as palmas e sentiu o abraço de seus amigos. O soluço alojado em sua garganta saiu imediatamente, ele se debruçou inteiro sobre Icarus e Hesper.
- Vai ficar tudo bem, Mitch. - disse a caçadora, firme em suas palavras.
- Nós conseguimos. Você conseguiu.
Mitch quis gritar e dizer E o que porra ganhei com isso?!
Mas ele não conseguiu, apenas soluçou e chorou, amparado. O rosto de Icarus se uniu ao dele, seus braços rodearam a cintura dele. Hesper envolveu seus ombros em um abraço, a face dela estava dura e trêmula.
O silêncio assentou sobre eles pelos minutos seguintes.
Uns dez minutos parados, alguns soluços trocados e lágrimas derramadas.
Mitch fitou seus amigos e disse com um meio-sorriso mórbido: - E foi assim que eu morri.
Icarus negou com a cabeça e pousou sua testa contra o cabelo dele.
- Não é engraçado.
- Nem um pouco. - disse Hesper, tomando sua mão entre os dedos. Ela assentiu em seguida e meneou com a cabeça. - Mas quê tu foi um fodão, foi.
- Isso significa muito vindo de você, amiga. Tu é o máximo. - respondeu Mitch, respirando fundo e assentindo para si mesmo. - Então, continuemos?
Os braços de Icarus o envolveram de novo, Hesper tocou em seu ombro.
- Sem pressa. - disse a filha de Apolo.
- Ok…Ok… - Mitch assentiu e relaxou ao toque dos amigos, respirando fundo e querendo chorar de novo. - É-é justo.
Os três ficaram parados, respirando juntos.
MITCH.
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