Prólogo
Uma estrela no céu.
Era muito tarde, cerca de onze da noite. Minha mãe costumava me dizer, antigamente, que esse era o horário para decidir uma vida inteira. Era o que eu estava fazendo, mais ou menos.
Olho para o lado de fora, ansioso. Jace está apertando minha mão com força enquanto observa o mesmo que eu. Lagrimas se acumulam em seus olhinhos pequenos e isso faz com que eu fique assim também. Lá está vindo ela, andando torta na entrada de casa e com aqueles olhos.
Aperto mais forte a mão do meu pequeno e giro o tranco da porta, me afastando enquanto o medo se alastra por todo meu corpo. Só tenho doze anos e mesmo assim estou tremendo dos pés a cabeça por que mamãe vai nos machucar feio se conseguir entrar. Tento parecer forte, Jace precisa de um exemplo.
– Ela tá dodói de novo... – Ele resmunga e quase no mesmo momento ela bate com força contra a porta, rodando a maçaneta freneticamente.
Pego a bolsa com as nossas coisinhas, pouca coisa, e arrasto Jace comigo para a parte dos fundos da casa. Enquanto me esgueirava com ele para fugir, conseguia ouvir mamãe gritando desesperada o meu nome. Elliot, Elliot... Isso me parte o coração em pelo menos cinco pedacinhos.
Jace olha pra trás, um monte de vezes. Não sei como explicar que, devido a mamãe estar doente de novo, precisamos partir da cidade. Venho planejando isso a tempos, tentando arrumar coragem de partir de uma vez por todas.
Agora que finalmente estou fora... Estou morto de medo de não ser capaz de proteger Jace do mundo inteiro.
– Para onde vamos Hyung? – Jace perguntou, depois de estarmos longe o suficiente para mamãe nem sequer tentar nos seguir.
– Vamos para casa. – Abri um sorriso, fazendo-lhe carinho na cabeça.
– Mas nossa casa é pra lá! – Ele apontou para onde tínhamos deixado mamãe aos prantos.
– A nossa casa é onde estivermos juntos Jace. – Parei em sua frente e lhe beijei a testa, ele sorriu de forma doce. Tinha só cinco anos.
Ele pensou em alguma coisa, mas não disse nada. Seguimos até o metrô em silencio pelas escuras ruas de NY. Quando chegamos lá fiquei olhando para a plataforma distraído, pensando em o que me fez fugir.
Mamãe era uma viciada, segundo a senhora da drogaria Keller. E ela nos fazia pedir esmola até a exaustão para comprar suas coisas perigosas. Há tempos ela vinha nos batendo forte, chorando e quebrando as coisas.
Achei que chegaria o dia em que teríamos que fugir dela, planejava que fosse um pouco mais a frente. Mas mamãe descobriu que eu comprei um bilhete de passagem uma cidadezinha longe e percebeu que eu escondi dinheiro.
Estava com tanto medo, mamãe mal nos dava de comer o dia inteiro. Eu tinha pesadelos que Jace fosse morrer de fome ou que um dia ela nos machucaria de verdade. Agora, se eu parar um pouco para pensar, lembro de mamãe nos batendo no viaduto para que fossemos pedir moedinhas.
Jace merece mais e eu faria o que fosse necessário para mantê-lo quente e seguro comigo.
Pegamos o trem que parava perto da rodoviária na saída da cidade, nosso ônibus era as 22h da noite. Fora a passagem eu tinha um pouco para alimentar meu irmão por alguns dias e estava contando com a possibilidade de criar uma casa na arvore na floresta da cidade quando chegasse.
Pegar comida do lixo nunca mais, eu esperava. Iria plantar uma horta e daria comida orgânica para Jace até ele ter um tamanho considerável. Trabalharia na cafeteria da cidade depois dos quinze anos, arrumaria uma vaga num curto legal e planejava todo tipo de coisa melhor que essa vida que levávamos.
Isso me dava uma esperança gigantesca para seguir em frente.
Descemos duas ruas da rodoviária e andamos a passos longos, tentando evitar o perigo a todo o custo. Quando chegamos lá, finalmente, senti um alivio gigantesco por estar longe de atrasado para o próximo ônibus. Hill era absurdamente longe e juntar dinheiro para ir foi complicado, ainda mais que tive de convencer o senhor Connor de que era o único jeito. Um senhor legal, ele me olhava com um sorriso e olhar triste toda vez que me via.
– Chan, estou morrendo de fome... – Meu irmão puxou minha blusa, seus olhos estavam marejados. – E sede... – Falou, baixinho.
– Certo, por que não vai na loja enquanto eu confirmo nossas passagens? – Pedi ao passo que tirava uma nota de vinte do bolso e lhe dava. – Vou te encontrar em um minuto! – Passei a mão em sua cabeça.
– Ok! – Ele abriu um sorriso radiante e correu para dentro da loja. Suspirei, tremendo.
Encontrei Tio Connor na cabine de bilhetes, ele imediatamente ergueu os olhos para mim e exibiu o mesmo sorriso de sempre. Mostrei os dois bilhetes, ele os carimbou com alguma relutância e os devolveu para mim.
– Avisarei os fiscais, mas não garanto que sejam pegos... – Eu concordei, apertando barra de minha camisa velha. – É um longo caminho, criança.
– Obrigado Connor, você tem minha gratidão. – Me curvei em agradecimento e então sai lentamente de perto.
Olhei para os bilhetes em mãos e então para a loja de conveniência do outro lado do corredor de espera da rodoviária. Bancos de madeira maciça estava em fileira ali do lado e maquinas de guloseimas enfeitavam a parede. Caminhei apressado até a loja para encontrar meu irmão e leva-lo de uma vez.
Entrei e imediatamente os olhares se recaíram sobre mim, e a caixa mascava chiclete até então. Um cheiro bom de biscoitos de chocolate invadia o lugar, fazendo meu estomago ficar ainda mais dolorido. Peguei uma garrafa de água para comprar e um pacote de guloseimas e me coloquei a procurar Jace pelos corredores.
Ele deve estar no de doces, certo? Não estava. Fui olhar no de salgados e também não. O de sabonetes, o de utensílios domésticos, o de refrigerante. Jace não estava em nenhum deles. Entrei em desespero, sentindo todas as partes do meu corpo afundarem por dentro.
– Você viu um garoto de cinco anos? – Perguntei para a caixa, ela tomou um susto ao me ver correndo em sua direção.
– Um de cabelo preto? – Parecia desinteressada. Comecei a chorar.
– Onde ele tá? – Perguntei, em pânico.
– Ele foi embora com os pais, ué. – Ela me olhou como se eu fosse a criança mais louca que ela já viu.
– Como assim? – Aquilo me quebrou, sinto como se fosse desmaiar. – Pra onde eles foram? – Gritei mais alto do que deveria.
– Sei lá garoto, qual o seu problema?
– É meu irmão! – Gritei de novo, batendo a mão na bancada. – E ele não tem pais.
Larguei as coisas e sai correndo, olhando para todo lado em busca do meu irmão. Corri por toda a rodoviária, empurrei as poucas pessoas e girei ao redor sentindo tudo desmoronar. Depois olhei pelo lado de fora, nenhum sinal dele.
Cai de joelhos gritando, gritava como um louco. Uma senhora tentou me ajudar, mas não conseguia sequer aceitar isso direito. Não, ele não podia ter sido levado dessa forma, não agora que íamos conseguir ser feliz! Eu planejei tudo Jace, por favor não faça isso comigo. EU imploro!
Corri pela rua, era quase 9 da noite e eu perderia o ônibus em se não o encontrasse logo! Nada importava, eu tinha que achar Jace urgentemente. Pensei em todo tipo de explicação, tentando me manter calmo. Talvez Jace foi apenas no banheiro e pediu ajuda.
Voltei a rodoviária e procurei, cabine por cabine. Nada. Jace havia sumido do mapa.
Soluçava muito quando bati com força na porta e cai, sentindo tudo morrer por dentro de mim de novo e de novo. Mal podia respirar ou enxergar, sai as cegas de lá e sentei em qualquer lugar para me perder nessa tragédia de uma vez.
– Por favor, cadê você? – Segurei meu corpo, meu rosto todo melado de tanto chorar. – Eu não posso perder ele agora! – Gritei, as pessoas me olhavam sem entender.
Olhei para o céu. Quando vovó vivia ela tinha me ensinado a pedir as estrelas para realizar meus desejos. Queria ser uma nesse momento, ter o poder de voltar no tempo e impedir isso de acontecer. Era a única coisa que eu mais queria nesse momento, e a vida toda eu nunca quis nada de ninguém.
Para alimentar minha fantasia de vez... Uma estrela cadente caiu, rompendo-se contra a atmosfera num feixe brilhante. Fechei os olhos e fiz um pedido, certo de que uma fada da estrela poderia me ajudar com isso. Mesmo com doze anos eu acreditava que poderia funcionar, afinal era a única coisa que eu poderia fazer.
– Você tem certeza de que é isso que vai pedir? – Uma voz infantil me acordou de minhas preces ao cometa. Encarei o lugar de onde vinha e encontrei um garoto com os cabelos tão brancos que pareciam neve.
– O que? – Perguntei, muito confuso.
Estava sentado sobre a mureta que dividia a entrada da rodoviária e a estrada por onde os veículos entravam. Tinha olhos estranhos, eles cintilavam como estrelas numa tempestade tortuosa no espaço.
– O seu pedido, bobão. – Ele sacudiu as pernas, sorrindo. – Você pediu agorinha, quando eu cai. – Ele olhou para o céu.
– Como assim você caiu? – Juntei a sobrancelha enquanto o analisava em busca de um machucado. – E como sabe do meu... – Ah, finalmente percebi aquilo e então fiquei paralisado sem saber como reagir.
– Confirme, se é isso que quer. – Ele cruzou os braços, impaciente comigo.
Fiquei em silencio por um tempo, processando o que eu estava vendo. Será que o choque de perde-lo me fez ver coisas? Pisquei varias vezes, apertando meu próprio braço para acordar.
Quando abri os olhos, porém, o garotinho descera da murada e caminhara mais para perto de mim. Estava com a cabeça pendendo e sorria como se fosse divertido me ver tão assustado, surpreso e confuso ao mesmo tempo.
– A estrela caiu e você me chamou, então tem direito a um desejo. – Ele levantou um dedo até a boca, seus olhos brilhando em expectativa. – Você quer que Jace nunca tenha se perdido de você hoje? – Vejo ansiedade em seu rosto.
– Quero. – Disparei, rezando para que isso não fosse uma brincadeira de mal gosto contra mim. – Mas como isso é possível? – Surreal, estava chocado.
Ele piscou e então percebi que tinha um olho de cada cor. Ele parece fofo para alguém que prega peças tão pesadas assim.
– Neste mundo Jace foi levado para longe por um casal e eles vão cuidar dele direito, mas você nunca o veria até estar velho o bastante. – Ele não me olhava, era como se visse além disso tudo. – A sua casa da arvore nunca vai acontecer.
A casa da arvore tinha que acontecer, não era justo. Como ele sabia dela não importava, eu só queria ele de volta pra mim.
– Você é um vidente? – Perguntei, depois de um tempinho. Ele sorriu achando divertido que eu acreditasse nisso.
– Um vendedor de estrelas é um vidente? – Ele colocou o dedo sobre o queixo, pensando. – Certo, vamos ao desejo. – Ele se aproximou de novo e tocou meu ombro. – Diga em voz alta.
– Certo... – Comecei a cabeça e voltei a segurar sua mão, então olhei para seus olhos que pareciam querer roubar minha alma. – Eu desejo que Jace nunca tenha sido levado, para que possamos chegar em Hill e vivermos bem.
– E eu concedo seu desejo, desde que saiba que ele tem um simples preço para o equilíbrio vencer. – Ele tocou no meu cabelo e o colocou atrás de minha orelha. – Quando a hora chegar, você ira conhecer um dos meus e se for capaz de ama-lo de volta o seu desejo se tornará permanente.
– Como assim? – Perguntei, juntando a sobrancelha com a confusão.
– Se não vencer isso, você voltara até antes de me ver e a perda de Jace será permanente. – Ele declarou, falando bem rápido. Então tirou uma bola brilhante do bolso e ergueu até a altura dos olhos.
– Voltar ao que era antes? – Perguntei baixinho, hipnotizado com as estrelas dançando dentro do orbe.
– Segure! – Ele instigou. Todas as coisas ao redor se tornaram borrões e o orbe passou a emitir uma luz que parecia me sugar para dentro.
– E se eu falhar em amar essa pessoa? – Perguntei, sem realmente me importar com a resposta. Eu faria qualquer coisa para ter o desejo dentro daquele orbe.
– Algo me diz que... Você vai cumprir sua parte. – A voz dele ditou distante, as coisas derretendo de vez.
Minhas mãos alcançaram o orbe e fui envolvido com um extenso calor, por todo o corpo. Fui consumido pelas estrelas e viajei na velocidade da luz, sentindo milhares de sensações gostosas em minha pele. Me senti abraçado pelo universo e depois fui engolido pela doce escuridão dele, de vez.
Quando uma pessoa chegar na sua vida, você deve abrir. Ela vai esgueirar-se em sua bruxaria e mostrar-lhe o amor doce e venenoso, uma voz ressoava em meio a escuridão. Não conseguia sentir meu corpo e fui envolvido por um inquietante silencio absoluto, senti como se eu estivesse a dormir.
Você tem até o aniversario de vinte e um anos para cumprir sua parte, a voz voltou e me despertou no mesmo momento.
Um som absurdamente alto de trem invadiu meus ouvidos e me fez pular no assento, esfreguei os olhos e deixei a luz se adaptar até que a imagem de uma fileira de assentos vermelhos estivesse diante de mim. Senti um desespero estranho tomar conta de mim e então, quase ciente do que havia acontecido pouco tempo atrás, olhei em busca de Jace.
Estava sozinho no vagão e isso me deixou em pânico. Foi tudo um sonho? Eu apenas o perdi para sempre? Coloquei a mão no rosto tentando conter as lagrimas que com certeza viriam.
– Querido? – Uma voz feminina me chamou, quando me virei uma jovem de pele negra e cabelos castanhos ondulados me lançava um sorriso. – Estamos perto da estação de Hill, logo vamos encontra-los.
– Encontrar quem? – Minha sobrancelha se ergueu.
– Como assim Chanyeol? – Ela deslizou-se até sentar na poltrona em minha frente, vestia uma saia de cetim marrom e uma blusa de linho branca. – Desde que andou para Tompson você tem estado animado para que seja adotado, você e seu irmão.
– Eu e meu irmão? – Perguntei, uma fagulha de esperança cresceu no meu peito.
– Ah, é... – Ela inclinou o corpo em direção ao corredor e chamou alguém com a mão. Quando olhei na direção.... Ele estava lá.
Deus do céu. Meu irmão. Bem vestido brincando de bola no corredor com um homem de penteado estranho. Os dois olharam pra nós e eu achei que estivesse sonhando. Um sonho que eu odiaria ter que acordar.
– Ele gostou muito do Daven... – Ela sorriu absurdamente feliz, mas então uma coisa estranha transpassou por seu rosto. – Não sei se isso te deixaria triste, mas vi que gostou de ficar conosco... – Ela se inclinou até pegar minha mão. – Vocês são crianças tão doces... – Sorriu triste.
– É, por isso deveríamos adota-los. – Daven surgiu do meu lado, estava com um sobretudo e tinha cabelos ondulados e bagunçados como um ninho de pássaro.
– Adotaríamos todas as crianças que passam por nós, se fosse por você. – Ela sacudiu a mão, sorrindo de forma divertida.
– Isso aqui é diferente, Amélia. – Ele colocou a mão na cintura e puxou de trás de si meu irmão, que estava com um sorriso travesso. – Olha essa linda carinha. – Fez carinho no rosto do meu irmão. – E Yeol, que é um doce garoto corajoso que atravessou o país para dar um lar pacato ao seu irmãozinho.
– Eu atravessei o país? – Perguntei, confuso. Olhei em direção aos dois e eles estavam com um olhar engraçado. – Eu achei que estava indo para Hill.
– E você acha que NY é perto de Hill assim? – Ela sorriu compreensivamente e então fez um carinho em meu braço. – Não se preocupe, Hanna e Robert são pessoas realmente boas e eles tem até uma casa na arvore.
Uma casa na arvore. Jace não disse nada, mas a informação parecia realmente o agradar. Ele se sentou do meu lado e cruzou as pernas, segurando a bola de futebol nos braços. O encarei como se fosse de papel, como se fosse um sonho estranho que eu estivesse tendo.
– O que acha? – Perguntei ao pequeno Jace. Torcia para que ele desmanchasse agora. Só podia ser uma alucinação.
Eu juro que tinha perdido você minutos atrás, juro.
– Hanna parece bonita. – Ele disse, baixinho. Seus olhos incrivelmente verdes piscavam pra mim. Suspirei, aliviado. – Eu fico com a casa da arvore de dia.
– Você não tem idade pra isso. – Apontei e ele começou a rir, me achando um tanto bobo.
– Você é meio egoísta, maninho. – Ele se ajeitou e olhou em direção a janela, as perninhas balançando no banco.
Fechei os olhos, apertei eles muito. Me vi de novo no lugar das estrelas, como uma memória distante em minha mente. Senti-me flutuando e pensei que a estrela me deu um pedido que me levou para um mundo depois da morte.
Abri os olhos de novo e encontrei a garota do serviço social me olhando. Pisquei e Jace ainda estava do meu lado.
Meu deus, a consciência de que tudo poderia ter sido real se mistura. Eu acho que... Eu acho que uma estrela cadente me concedeu um desejo.
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