Não sei quantos dias haviam se passado. Uma semana? Meses? Anos? Minha noção de tempo se perdera no isolamento, na saudade, nos olhos vermelhos que sempre via ao fechar os meus e com eles abertos na escuridão quase constante do confortável aposento.
Me alimentavam por uma pequena abertura e a qualidade não era das piores. Depois de roubar meus sonhos e esperanças, meu querido tio me deixara ali para sempre e talvez nunca mais visse nem mesmo seu odioso rosto grisalho e enrugado. Acabei me lembrando de suas feições na primeira vez em que nos vimos e percebi uma significativa diferença, como se ele estivesse agora mais abatido, cansado e velho do que da primeira vez em que fora a casa de meu alfa para o seu aniversário. Mesmo com tudo que me causara, não consegui desejar sua morte, apesar de muitas vezes me imaginar socando aquela cara prepotente e toda sorridente que sempre consegue tudo que quer.
Depois de não sei mais quantas horas, já que não sabia a diferença entre dia e noite ali, vieram outra vez até mim. Dois soldados uma vez mais me lavaram, me vestiram e perfumaram e eu sabia que receberia o velho ainda hoje. Colocaram-me em outra cabine, mais limpa, iluminada e confortável, de onde eu podia ver o claro do céu nublado lá fora. Sentia o leve balanço calmo do mar e o cheiro incrível de pizza que preenchia o ambiente. Não entendi porque daquele mimo à essa altura de meu cárcere, mas aproveitei para matar a saudade daquele alimento saboroso que parecia que não provava há séculos. Depois de vinte minutos ele chegou, todo sorridente, mas estava ainda mais desgastado e abatido do que antes e notei um fio transparente que passava em suas narinas e sumia dentro de seu paletó.
– O senhor está bem? – Perguntei testando a voz depois de tanto tempo de solidão e me senti um idiota porque pareceu soar preocupado. Fechei a cara antes de ouvir a resposta.
– Não finge que se preocupa – ele falou sorrindo mais – eu estava com saudade do meu sobrinho, tenho viajado pelo mundo todo e não tive tempo de vir até você mais vezes.
– Eu tô adorando o cruzeiro de férias titio – respondi forçando um sorriso – em que lugar do mundo estamos?
– Voltamos para Fremont hoje – ele respondeu fingindo que acreditou na minha interpretação de parente bonzinho – tenho negócios aqui com algumas pessoas perigosas. Nada que deva preocupar você, já que está totalmente seguro aqui. Ninguém conseguiria entrar – e completou depois de uma pausa – muito menos sair!
– E a que devo a honra da visita?
– Quero me aproximar de você.
– E quem disse que eu quero ser seu amigo, seu parente ou qualquer coisa sua? Você roubou minha vida me prendendo aqui.
– Não seja dramático Gabriel – ele disse sério – você tem sangue Or Doré, devia se mostrar forte em qualquer situação.
– Achei que se pronunciava Ordore, falei distraído e curioso.
– Foi abrasileirado quando seu pai o levou para lá. A pronúncia correta vem do francês, berço de nossa família séculos atrás. Nós caçamos criaturas há muito mais tempo que os Argent e outros imitadores baratos. Nossa linhagem é gloriosa e deveria ser eterna! E eu não roubei nada de você, como meu único parente vivo, tudo será seu depois de minha morte.
– Eu não ligo para a droga do seu dinheiro, você não entendeu ainda? Só quero minha família, meus parentes de verdade que me acolheram, meu...
– Namorado? – Ele não pareceu feliz ao dizer.
– Sim, meu namorado! – Respondi áspero quase gritando – minha vida particular não é da sua conta.
– Claro que é da minha conta – foi a vez dele se exaltar – você é o futuro da família Or Doré, a continuação de nosso nome e história!
– Não foi por isso que vim aqui, não tenho tempo agora para essa discussão. – Ele disse depois de prolongado silêncio, recuperando a calma e recolocando os óculos escuros.
– Eu sei que não tem tempo – falei vitorioso, pois havia conseguido mais informações em seus olhos durante a conversa. – Você não sabe tudo sobre mim, mas eu já sei muito sobre você, titio.
– E o que você sabe? – Perguntou me encarando duvidando que eu poderia saber algo preso naquele inferno há tanto tempo.
A verdade é que o poderoso Álvaro Or Doré estava morrendo. Um câncer intratável foi descoberto recentemente e suas viagens urgentes foram para visitar os melhores médicos do mundo e conhecidos curandeiros sobrenaturais por todo o globo terrestre. Todos, no entanto lhe deram o mesmo ultimato: morreria em menos de um mês, pois sua doença estava tão arraigada que só um milagre poderia salvá-lo.
– Eu sei que não mereço – ele disse abaixando as vistas e tirando os óculos outra vez – mas sou seu único parente vivo e vou deixar toda minha herança para você.
– Quanto tempo você tem? – Perguntei me sentindo estranho, um misto de pena e raiva se digladiando dentro de mim.
– Vinte dias no máximo – ele contou triste e pela primeira vez eu enxerguei a verdadeira face daquele homem cruel. – Mas posso cair morto agora, já que está em cada parte de meu corpo.
– Eu sou seu prisioneiro e você meu captor, porque eu te ajudaria? Porque o manteria vivo se eu posso me libertar quando estiver morto?
– Porque você é como sua avó materna – ele me olhou nos olhos ao dizer isso. – Uma pessoa boa em uma família ruim. Eu sei o que me tornei e sei para onde irei. Não posso mudar minha natureza, não tão longe na vida, mas se me deixar morrer, você será meu assassino e você não é assim.
– Você a matou! – Falei assombrado. – Deixou minha avó materna morrer à míngua porque ela não queria ser como o resto da família. Você é um monstro e merece morrer!
– Eu sei que mereço, mas sei também que você não vai deixar. – Me diga quais são suas condições, eu aceito qualquer coisa a essa altura, até devolvo suas posses.
– Você roubou minha poupança, o dinheiro que minha mãe depositou na esperança de que um dia eu estudasse?
– É claro que não, aquilo é insignificante! Você terá muito mais quando...
– Não! – O interrompi com veemência. – Eu não quero nada que venha dessa família podre.
– Sua família, você goste ou não – ele falou azedo, fechando a cara e recolocando outra vez os óculos escuros.
– Minha família é Scott McCall e nossa alcateia. Que me protegeram, me acolheram e me deram um lar. Onde estava o senhor e seu nome famoso, quando eu passei seis anos sendo perseguido e assassinado por monstros e demônios?
– E-eu não sabia, não conhecia você, eu...
– Não se importava. – Conclui com raiva, sabendo que era a verdade.
– Sim – foi tudo que ele disse virando o rosto.
– E se eu não curar você?
– Eu não posso obrigá-lo. Não em tempo pelo menos, já que não tenho sua “família” como moeda de troca. – Fiquei furioso com a cara de pau dele em falar algo assim e ainda querer minha ajuda, mas me mantive calado e ouvindo. – Estou disposto a fazer o que você exigir e eu sempre cumpro minha palavra.
– Quero voltar para minha família e quero que você deixe Beacon Hills e os Estados Unidos da América para sempre. Nenhuma loja de fast-food ou posto de atendimento de nada deve estar relacionado aos Or Doré. Não quero seu dinheiro, não quero ouvir sua voz e nem ver sua cara para sempre. Eu não sou da sua família, meus pais estão mortos e você não é nada para mim. Se entender e aceitar isso, ajudo você.
Ele demorou um pouco para digerir aquilo e juro que vi tristeza se escondendo naquele rosto enrugado e abatido, mas o velho malvado respirou fundo e como eu imaginei, dava mais valor à própria pele e a tudo que tinha do que a um parente distante filho de um irmão que ele odiava e mandou matar.
Enquanto eu voltava para Beacon Hills no luxuoso carro de meu tio malvado, assisti pela televisão interna o anúncio que ele fazia à imprensa sobre seu câncer ser falso, uma estratégia de marketing que não deu certo e que estava deixando os negócios na América por tempo indeterminado. Vendo-o o sorrir daquele jeito para as câmeras, fiquei na dúvida se fiz a coisa certa. Ele era um problema para o mundo, mas pelo menos minha consciência estava tranquila.
Quando o carro parou no posto de gasolina na entrada de minha nova cidade lar, eu não quis esperar o motorista abastecer e ligar para seu patrão confirmando o trabalho feito. Desci apressado e desandei a correr na direção de casa, eu precisava vê-lo depois de tanto tempo, pedir perdão por ter sido tão descuidado e beijar aquela boca quente. Era quinze para uma da tarde, a viagem fora longa, eu estava exausto, mas continuei correndo. Pelo horário, Scott deveria estar em casa para o almoço, assim como sua mãe e Chris. Coloquei a chave na fechadura da frente – meus captores me devolveram até isso – e entrei apressado, encontrando o Argent no corredor da cozinha, todo a vontade tomando uma xícara de café e ninguém mais.
– Onde... – perguntei esbaforido.
– Bom te ver também, Gabriel – ele respondeu com um sorriso, sorvendo calmamente seu café.
– Desculpa – falei recuperando o fôlego aos poucos. – Eu estou com tanta saudade que perdi minha educação. Bom te ver também Chris, onde estão Melissa e Scott?
– No hospital, os dois. Por onde você esteve? Todo mundo te procura há cinco dias.
– Cinco dias? – Fiquei perdido com a informação, achei que havia se passado pelo menos um mês. – Há quanto tempo eu sumi?
– Cinco dias – ele repetiu enfático. – Me conte o que houve e te dou uma carona até hospital.
Contei para o caçador tudo que se passou nesses longos cinco dias e ele não parecia nada feliz, especialmente com a menção da verdadeira pronúncia de meu sobrenome.
– Eles não são caçadores – ele disse com raiva – são violadores de túmulos, ladrões e sequestradores, como você acaba de descobrir.
– Meu tio é o último deles – falei e corrigi depois. – Na verdade eu sou, mas não quero ter nada a ver com esse sobrenome maldito.
– Quando você se casar, coloque McCall no lugar dele – sugeriu Argent com um sorriso largo.
Eu ficaria muito feliz se isso fosse possível, mas no momento, tudo o que queria era ver Scott. Claro que também queria reencontrar o grupo todo, minha mãe Melissa e tudo o mais, mas a saudade estava insuportável, principalmente agora que sua chama de alfa queimava tão intensamente em meu peito com a proximidade.
Corey, Liam e Maltec conversavam do lado de fora na frente do hospital e eu os abracei rápido, tentando me livrar logo dos abraços para procurar meu alfa, que estava lá dentro com Lydia. Tentei não pensar no que poderia ter acontecido com nossa banshee na minha ausência e acertei o joelho nas partes íntimas de Maltec que não queria me soltar, falando coisas insensatas em meu ouvido. Não parei para ver a reação deles quando me soltou, apenas ouvi o riso abafado de Corey atrás de mim e perguntei na recepção onde estavam. Chamaram Melissa, que me abraçou por um tempo, me largando porque sabia que eu estava ansioso demais para encontrar seu filho.
Um misto de emoções conflitantes me atingiu ao entrar naquele quarto. Lydia parecia bem, de pé e Scott ao lado dela de costas para porta, ambos velando uma morena deitada na cama, com ambos os pulsos enfaixados.
– Ela não está se curando – disse angustiado meu alfa ainda sem se virar e absorto demais pela culpa para me perceber ali – o que foi que eu fiz?
– Scott – disse Lydia apontando para mim com a cabeça, já que ela me viu primeiro.
Quando encontrei seus olhos negros, quando ele abriu aquele sorriso e aquelas covinhas apareceram, o universo deixou de fazer sentido e a gravidade parecia não existir. Aqueles quatro passos pareciam quilômetros e quando me aconcheguei em seus braços, chorei incontrolavelmente temendo ser um sonho bom e acordar outra vez no escuro da cabine daquele navio solitário.
Lydia teve que pigarrear algumas vezes para interromper nossa infinita sequência de beijos e a coisa não evoluir demais naquele local público.
– Onde você estava? – Scott perguntou recuperando o fôlego ao separar seus lábios dos meus, nossos corpos ainda colados. – Eu te procurei por todo lugar.
– Meu tio me sequestrou, mas está tudo bem agora. – Respondi como se fosse a coisa mais normal do mundo. – O que está havendo aqui?
– Eu a machuquei, quase cortei seus pulsos – ele confessou angustiado – não queria fazer aquilo, foi como um transe. Por favor, você pode salvá-la?
– Dependendo do que eu ouvir da Lydia agora – falei desconfiado de que algo estava errado naquela história.
Scott suspirou passando a mão no cabelo e foi para próximo da cama da jovem banshee morena enquanto Lydia veio para perto da porta e me contou tudo, inclusive as partes que meu namorado pretendia me poupar. Na noite anterior, elas estavam na casa dos McCall para mais uma reunião de buscas, onde pretendiam me encontrar. Scott estava muito abalado, já pensando o pior, uma vez que faziam quatro dias de buscas infrutíferas e Megan – esse era o nome da banshee morena que voava e conjurava raios – resolveu consolá-lo, utilizando seus cabelos mágicos que deixam os homens em transe temporário e ficando a sós com ele na varanda. Quando ela começou a tocá-lo de maneira mais íntima, seu lado animal reagiu, cravando as garras nos pulsos da garota e quase a matando. Nenhum médico entendia porque ela não conseguia se regenerar, mas todos nós sabíamos: banshees não tem poder de cura e uma ferida causada por um alfa demora muito mais para curar em quem tem o dom e é praticamente fatal para quem não o possui.
Demorei um tempo para digerir toda a informação e me aproximei da cama tentando controlar meu ciúme. Cinquenta por cento do meu ser a queria morta agora. Os outros cinquenta por cento, os mesmos que salvaram a vida de meu tio perverso, me instigavam a ajudá-la. Me concentrei no que causou suas feridas: o lado selvagem de meu alfa a impediu de forma abrupta e como ele estava em transe, seu lado humano não conseguiu detê-la. Ela poderia estar possivelmente morta agora, com a garganta rasgada.
– Eu vou curá-la – falei finalmente – mas quero que vocês esperem lá fora.
Lydia saiu sem falar nada, mas Scott pegou meu braço direito e me fitou com olhar suplicante.
– Por favor – ele pediu – ajude-a, apesar do que ela fez, não merece morrer.
Eu bem que a queria morta, mas não ia permitir que meu alfa genuíno perdesse seu status por conta daquela vadia. Quando fiquei sozinho no quarto, segurei o braço esquerdo da infeliz e curei apenas o suficiente para que despertasse.
– Seu alfa gosta muito de você – ela disse com um sorriso misturado com a dor agonizante que estava parcialmente anestesiada em seus pulsos.
– Você consegue sentir isso? – Perguntei liberando uma onda de cura por todo seu corpo esbelto.
– É um poder de cura e tanto – ela respondeu sorrindo – mas porque não estou saudável ainda?
– É uma marca de cura – falei – a partir de hoje eu posso curar você sem te tocar e a grandes distâncias – blefei, mas ela pareceu acreditar, arregalando os olhos.
– Não sabia que você gostava tanto de mim – sorriu desconfiada.
– Se não fosse por meu alfa, eu a deixaria morrer agora.
– Então porque essa marca de cura? – Perguntou a banshee ainda mais desconfiada e acreditando na minha história inventada na hora.
– Você se lembra do nosso encontro na estrada não é?
– Sim ela respondeu fechando a cara, entendendo a ameaça.
– Se você se aproximar dele outra vez, se tentar seduzi-lo de qualquer maneira, se encostar nele ou olhar diferente, vou tirar seus poderes para sempre.
– Talvez valha a pena – ela disse desafiadora – ele é tããão quente – provocou.
– Acho que ele não ficaria com uma senhora de cento e três anos – falei sem emoção.
– O que? Como? – Perguntou Megan aturdida.
– O que acha que vai acontecer – falei imitando o sorriso sádico de Chris Argent – quando o poder místico que a manteve jovem por todo esse tempo desaparecer? Você vai precisar de andador e fraldão.
– Não! – Disse angustiada a safada – eu faço como você quiser, distância total do alfa bonitinho. Por favor, não a minha beleza e juventude!
Sem mais para dizer, restaurei completamente seu corpo belo e a deixei sozinha controlando a respiração de olhos fechados. Eu percebi que podia ser malvado quando queria, quando era necessário.
Talvez estivesse finalmente recebendo a influência do sangue ruim dos Or Doré.
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