“Vilde comandava o feudo desde a morte do pai, sendo o primogênito. Ecpata sonhava em ter o controle, mas o mais velho estava ciente de seu veneno e das doenças que acompanhavam suas horas. Nomed vivia na boemia e só volvia ao lar, para buscar seu quinhão mensal e sanar a fome de prazer que regia sua existência. Quando o neto da bruxa fora adotado, Daibo se apegou ao pequeno e o amava intensamente, enquanto o via crescer, mas o irmão mais velho nunca lhe permitiu tocar na criança. A fome, doenças e a guerra assolavam o país e todos começaram a acreditar que tudo acontecia à família por conta do assassinato cometido contra a velha curandeira e viram em seu rebento, o sacrifício necessário para que o deus sol trouxesse de volta a fartura e a felicidade do povo. Assim a criança fora levada ao mais alto morro da região, onde seria sacrificada sob o escaldante sol do meio dia que matava tudo o que se tentava plantar para comer na região. Daibo suplicou a Vilde pela vida de seu amado e foi forçado a forjar um punhal para tirar a vida da criança, Ecpata previu doença e morte duradoura, sendo decapitada por isso e até Nomed intercedera junto ao senhor daquelas terras, seu irmão mais velho, pela vida do infante, mas o exército fiel manteve o sacrifício e o pequeno foi colocado no local no primeiro dia quente do corrente ano. Sua sede, seu choro, o desidratar de sua pele e sua consequente morte, não amoleceram o coração do mais velho, que depois de enfiar o punhal no pequenino, mandou matar seus outros irmãos para que parassem de se lamuriar. Quando o último batimento deixou o coração da criança sacrificada no topo do monte, também parou o coração do senhor daquelas terras e nem a morte e o inferno tomaram aquelas almas gananciosas, fadadas ao esquecimento no vazio escuro e eterno, na completa ausência da luz.”
– Vilde, Ecpata, Daibo e Nomed. Em que idioma estão esses nomes? – perguntei ao velho enquanto caminhávamos pelo campo verde florido rumo a um eterno pôr do sol.
– A pergunta correta a se fazer seria porque eu te contei essa história, jovem.
– Tem algo a ver com o próximo passo de minha evolução?
– Não. Você foi muito bem descobrindo o que o calor do sol lhe traz. Isso, porém se trata de seu passado, uma vida que você viveu pouco, mas que deu significado ao caminho que você percorre agora.
– Eu era o filho da bruxa? A criança sacrificada para o deus sol?
– Sim. A luz que o leva para onde quiser desde que esteja sob o jugo do sol, é presente desse passado. Infelizmente, o punhal que o matou naquela vida, pode matá-lo também nessa. Você herdou três sinas de morte: a vontade de quem possui seu amor, o definhar da vida não doada e a lâmina do deus sol.
– Pelo menos assim – pensei expressando em voz alta – não terei que morrer apenas pela mão de meu alfa.
– Ele não precisa matar você, basta partir seu coração.
– Vilde, Daibo, Ecpata e Nomed se tornaram os demônios da morte, guerra, peste e fome, não foi?
– Exatamente. E apenas aquele que sentenciou você, pode usar a adaga do deus do sol com eficácia. Mantenha-se longe dele e estará seguro quanto a isso.
– Eles não sabem que eu fui o filho morto da bruxa. Talvez não conheçam essa lenda.
– Aquele que o amou um dia, nutre um ódio tão profundo agora que jamais poderia esquecer.
– Ele tentou me matar com uma adaga ritualística – me lembrei horrorizado. Na verdade, ele tinha conseguido, mas a luz amarela me salvara daquela vez, já que apenas o demônio da morte poderia usá-la contra mim com sucesso.
– Quando você despertar, não nos veremos outra vez. Minha missão está cumprida. Obrigado por me dar o prazer de ser seu avô, pelo menos por um tempo.
– Eu que agradeço pela ajuda, espero não decepcioná-lo.
– Nossa família remota do primeiro milagreiro, aquele que ressuscitava os mortos. Talvez um dia você se torne tão notável quanto ele.
– Sobre quem o senhor está falando?
– Adeus Gabriel, persevere na luz!
Acordei assustado no meio da madrugada. Scott dormia tranquilo ao meu lado e olhá-lo assim, acelerava meu coração e fazia o sangue bater todos os recordes de velocidade em minhas veias. Cobri seu corpo nu com o lençol fino e me sentei na cama, com os pés no chão. Uma vida passada! Era o que o velho viera me contar em sonho. Ele não era meu avô de fato, mas me senti ligado a si enquanto estivemos juntos e guardaria uma saudade boa de sua pessoa espiritual.
A luz do sol me ensinara que eu podia estar em qualquer lugar próximo, sem precisar morrer. Bastava focar em alguma coisa ou pessoa, até um sentimento ligado ao local e conseguiria estar lá. Eu já tinha feito isso quando fugi de casa e quando resolvi abandonar o bando para manter Scott seguro do homem carneiro, mas ainda não tinha realizado testes, então não contei para meu alfa sobre a descoberta e resolvi aproveitar o silêncio da noite para isso. Não sabia qual distância conseguiria alcançar, então tentaria algo simples no início. Foquei meu pensamento na cozinha, no fogão, o local onde minha sogra me aceitou na família, onde eu cozinhava para passar o tempo e desejei ardentemente estar lá, mas a luz amarela me levou para dentro do quarto de Melissa. Assustado, esbarrei na penteadeira e o barulho de um frasco se quebrando, despertou o casal. Rápido como um raio, Chris Argent sacou a pistola na mesa de cabeceira e, apenas de cueca, apontou para mim. Levantei as mãos espantado.
– Gabriel – ralhou a mulher se sentando na cama também seminua – o que faz aqui? Como entrou se a porta está trancada?
– Eu só estava testando uma coisa – falei destrancando a porta com a chave que ficava do lado de dentro apressado – perdão, não queria acordar vocês.
Fui depressa para a cozinha, tomei um copo de água para me recuperar do susto e pensei em Scott dormindo pelado lá sozinho. Não podia deixar meu alfa assim e a luz amarela me levou de volta para seu lado sem dificuldade alguma. Parece que era mais fácil focar em pessoas do que em lugares e coisas. Precisava treinar essa nova habilidade, mas já me sentia muito mais feliz. Quero ver quem me manteria preso agora.
Como ainda demoraria para amanhecer e eu não queria acordar Scott e nem voltar a dormir, tive uma ideia maluca: e se eu tentasse focar em alguém que não sabia onde estava? Resolvi visitar Cibelle e dar um susto na minha prima sacana. A luz amarela me levou para o necrotério do hospital onde minha sogra trabalha. Em cima de uma das macas, o corpo dela jazia ressecado como uma ameixa, como se tivesse sido sugada por um vampiro e ao lado em outra, um recém nascido morto, magro e desnutrido, só pele e osso como se nunca tivesse se alimentado.
Corri para a criança com a certeza de que era o filho de Cibelle, meu filho, a semente que ela me roubou. Toquei seu corpinho minúsculo e percebi um resquício de vida. Ele abriu os olhinhos verdes, com seus poucos cabelos ruivos como os da mãe e mesmo quase morrendo, sorriu de algum modo, reconhecendo o laço entre nós. Tentei curá-lo, mas meu dom se recusava a acessar o corpo do garoto. Ao invés disso, me protegia de seu toque como se o recém nascido tentasse absorver algo de mim. Ouvi vozes e passos e antes que a porta se abrisse, a luz amarela me levou de volta ao quarto de Scott, que acordou assustado.
– Gabriel – ele me fitou preocupado com o pequeno embrulho nas mãos – isso é um bebê?
Numa troca de olhares, palavras não foram necessárias. Ele se levantou e veio até mim, tomando a criança nos braços e sorrindo para o serzinho esquelético como se fosse a coisa mais linda do mundo. A criança grudou no dedo dele e os olhos de meu alfa se acenderam em vermelho. A força vital de Scott começou a fluir para o pequeno e eu tentei separá-los, temendo o pior.
– Não – disse o rapaz decidido – ele precisa viver. Eu vou ficar bem.
Uma transformação inacreditável se deu diante de meus olhos. O cabelo ruivo liso e ralo do bebê se tornou preto, volumoso e levemente enrolado. Seus olhos brilharam vermelhos e se tornaram castanho escuro. Sua aparência esquelética aos poucos dava lugar ao rosado lindo que todo bebê deveria apresentar tendo aquela etnia.
– É o que estou pensando mesmo? – Scott finalmente traduziu em palavras.
– Eu o trouxe do necrotério. Havia sido dado como morto, como sua mãe.
– Então, sua prima...
– Sim – respondi simplesmente desviando o olhar. Não queria parecer triste por aquela mulher.
– Eu sinto muito Gabriel. E o que faremos? Já se decidiu?
– Ele deve ter meu dna, já que Cibelle o roubou de mim, então eu posso registrá-lo como pai.
– Faremos o exame então – ele disse com um sorriso enorme – acho que não vamos precisar adotar.
– Gosto da maneira como você aceitou isso tão fácil, Scott. Amo você.
O bebê dormia tranquilamente e já não sugava mais a força vital de seu novo pai lobo. Adquiriu alguns traços de sua aparência física e ainda guardava alguns dos meus. A ficha ainda não havia caído totalmente, a única coisa que eu pensava era que precisávamos manter isso em segredo de Álvaro. Esse menino nunca seria um Or Doré. Ainda rindo como um bobo, Scott se curvou com cuidado para não acordar a criança e me deu um beijo nos lábios, dizendo feliz:
– Gabriel, nós temos um filho!
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