Fazia duas horas que eu estava o esperando e nada.
Durante o tempo em que ele ficou fora, eu aproveitei para dar uma geral na casa. Fiz uma faxina pesada, principalmente em meu quarto e separei mais roupas para doação; na cozinha, joguei fora os enlatados que estavam fora da validade e passei bem longe do quartinho secreto atrás da escada.
Na estante da sala, no entanto, encontrei um envelope lacrado que parecia possuir outro papel dentro e fiquei curiosa para saber o que era, mas, ao julgar que poderia ser algo estritamente pessoal, achei melhor deixar ao lado da cama do Justin.
Minha limpeza estendeu-se quase até o fim da tarde e, depois, eu subi para o quarto e tomei um longo banho relaxante. Me arrumei cuidadosamente para o jantar; um vestido justo na cor vinho, sandália de salto médio, cabelo solto e maquiagem leve.
A ansiedade ardia em meu peito, enquanto eu cantarolava pelo quarto, tentando contê-la.
Entretanto, parte de meu ânimo despencou quando o horário combinado chegou e passou, e nada do Justin chegar. Em um vicioso intervalo de tempo, retoquei meu batom centenas de vezes e perambulei pela sala em um loop quase infinito; o fato de estar sem celular deixando-me muito mais inquieta.
No instante em que descalcei as sandálias, perdendo as esperanças, à porta abriu e ele entrou feito um furacão.
— Justin! Por onde andou? Estou te esperando há horas — ralhei e meus olhos subitamente arregalaram-se quando analisaram o rosto dele, mais precisamente o sangue que escorria de seu nariz e o hematoma esverdeado se formando ao redor de seu olho direito. — Meu Deus, o que aconteceu com você?
Ignorando minhas perguntas, ele se desvencilhou e caminhou apressado. Apesar de estar estupefata, eu não levei nenhum segundo à mais ou à menos, para apressar o passo também e segui-lo na direção da cozinha.
Em silêncio e fugindo de meu olhar, ele abriu a geladeira e pegou a forminha de gelo no congelador, desfez os cubos com brutalidade dentro da pia e, em seguida, improvisou uma bolsa com o pano de prato, pressionou contra o olho ferido.
— Com quem você brigou, Justin? — perguntei, tentando soar firme, ainda que estivesse sufocada pela preocupação. — Quem fez isso em seu rosto?
— Ele merecia uma lição — foi tudo o que ele disse, agressivamente, antes de sair da cozinha e eu tentei alcançá-lo.
— Ele merecia uma lição? — repeti e senti minha boca secando, quando meu cérebro entrou a resposta por si. — Justin!
Puxei-o pelo braço, sem perceber que estávamos no corredor proibido e ele olhou-me com uma fúria cortante. Empurrou-me e socou a parede perigosamente ao lado da minha cabeça e eu estremeci, sentindo as lágrimas automaticamente preenchendo os meus olhos.
— Eu avisei para você não entrar aqui, porra! — bradou, dando outro soco na parede.
Tentei engolir o choro, mas não consegui. Justin demonstrou-se arrependido no momento em que avistou uma lágrima escorrendo por meu rosto e eu não me permiti persuadir por sua expressão consternada, afastei-o sem delicadeza e corri para fora da casa. Sufocada por aquela súbita necessidade de me distanciar dele.
Tive dificuldade para enfiar a chave na ignição de meu carro, mas, com insistência, consegui. Vi-o correndo, enquanto eu dirigia pela trilha e acelerei, impedindo-o de me alcançar. A vontade de chorar acumulou um bolo em minha garganta, mesmo assim, eu a contive. Enxuguei meu rosto rudemente, minha expressão endurecida. Eu estava cansada daquilo, esgotada de carregar aquele peso dentro de mim e por ele me ver nadando contra a corrente, porém, estar cada dia menos disposto a me amparar.
Eu me entreguei de todas as formas humanamente possíveis para ele, e isso não parecia o bastante. A barreira em sua volta estava erguida novamente e eu temia profundamente a proporção dos eventos que se seguiriam; o abismo cada vez maior que abria entre nós e, sozinha, eu não conseguia impedir.
Eu estava me sentindo inútil, um grande fracasso.
Perambulei pelas estradas, até esfriar a cabeça e acabei estacionando em frente à lanchonete do James. Mal atravessei a porta, e Lauren e Hannah já estavam me cercando.
— Você está bem? — perguntaram em uníssono e eu estreitei as sobrancelhas.
— Está tão na cara assim? — rebati e a Lauren supirou.
— Você já sabe?
Fiquei confusa, elas não pareciam ter apenas notado meu estado zumbi.
— Sei o quê?
— A culpa disso é toda sua, Savannah — Elizabeth se aproximou furiosamente. — Você fez aquele desgraçado achar que tem o direito de estar entre nós.
— O quê? Do que você está falando? Por acaso enlouqueceu?
— Quem enlouqueceu foi você! Mas era de se esperar, namorando um maluco, não é mesmo?!
A raiva flamejou em minhas veias, logo, ultrapassou por meus lábios:
— Olha aqui, Elizabeth, não abra a sua boca imunda para falar coisas a respeito do você não sabe! Aliás, a senhorita puritana não tem o direito de julgar ninguém, já que seu namoradinho foi preso por qual motivo, mesmo? Refresca a merda da sua memória. Agora, olha para mim e procura algum hematoma. — Apontei meu corpo. — Me diz qual dos namorados é mais maluco?
Ela me olhou com ressentimento, antes de se afastar. Eu nunca havia tocado no assunto, ninguém tocava. Mas ela havia estourado o meu limite, que já estava transbordando.
— Você pegou pesado — Lauren advertiu cautelosa e eu suspirei, esfreguei a mão em meu rosto.
— Não é um bom momento.
— Não mesmo. A cidade toda está comentando.
— Comentando o quê? — perguntei, ressabiada.
— Você não sabe mesmo? — ela insistiu e eu neguei.
Lauren respirou fundo, vacilou, antes de indagar:
— Você viu o Justin?
— Sim — respondi distraidamente. — Ele chegou com alguns machucados no rosto, eu acho que ele brigou com...
— O Owen — ela continuou e, por mais que eu já imaginasse, a confirmação me causou agonia. — Mas não foi uma briga qualquer. Disseram que ele simplesmente apareceu do nada, pegou o bastardo distraído, quando estava saindo da boate, e bateu nele. Segundo os Owen, há até testemunhas de que o Justin pisou na perna dele até quebrar.
A informação me deixou em choque e eu demorei tempo demais para reagir.
— Pisou na perna dele até quebrar? — repeti, perplexa.
Lauren assentiu e se aproximou, segurou as minhas mãos gélidas.
— Savannah, se ele fez isso mesmo, não é seguro você continuar morando com ele.
— Mas, Lauren — ofeguei —, olha o tempo em que estou lá e ele nunca... — Lembrei-me de seu surto tempo atrás. — Ele não me fez nada.
— E por acaso vai ficar esperando ele fazer? Olha só o que ele fez com o Andrew, Sav! E se você o irritar o bastante para acabar machucando você também?
— Ele nunca me machucaria.
— O Justin que eu conheci, sei que não machucaria você. Mas acabamos de conhecer o outro lado dele e esse eu já não tenho tanta certeza. Sei que você gosta dele, eu também gosto, mas estar com ele agora não é seguro, Savannah. Eu te imploro, me escute dessa vez. Eu não vou ficar em paz, se você continuar lá. Seja conivente e aceite o pedido da sua mãe, volte para casa.
As palavras dela se perderam no grande vácuo que se abriu em meus pensamentos e, antes que pudesse me refrear, já estava correndo para o carro e dirigindo perigosamente de volta para o Forest Park. Eu precisava tirar aquilo a limpo, eu precisava ouvir da boca dele.
Assim que entrei na casa, segui os ruídos que me levaram para cozinha. Me deparei com o Justin escorado no balcão, com uma fatia de carne sob o olho. E ele rapidamente se recompôs e me olhou, apreensivo e penalizado, mas eu não lhe dei tempo para qualquer outra coisa.
— Você quebrou a perna do Andrew? Quebrou a perna dele de tanto pisar em cima, Justin?
Ele não respondeu, não esboçou reação alguma. Seu silêncio trouxe consentimento.
— Meu Deus. — Coloquei minhas mãos em minha boca e maquinalmente recuei quando ele se aproximou, em seguida, ergui uma de minhas mãos em um pedido mudo para que ele não tentasse uma aproximação. — Como você teve coragem de fazer uma coisa dessas?
— Se ele pode bater em uma garota, pode apanhar também — ele retrucou contundente.
— Você o pegou distraído, todos estão falando...
Ele ficou incomodado.
— Você vai defendê-lo?
— Eu não estou defendendo ele, mas não concordo com sua atitude. Nada se resolve com agressão.
— Dei a ele o que ele mereceu! Ele bateu no seu rosto!
— E você foi lá e esmagou a perna dele com o seu pé? O que ele fez foi errado, mas um erro não justifica o outro, Justin. Nolan já havia dado uma lição nele.
— Não foi o bastante. Foi pessoal, Savannah. Agora tenho certeza de que ele nunca mais sequer chegará perto de você.
O tom possessivo em sua voz me fez estremecer, mas não de forma positiva.
— A única certeza que você tem que ter é que ele não vai deixar isso impune. Ele está dizendo por aí que tem testemunhas e que vai mandar prender você!
— Que se dane! — Ele exclamou, atirando o bife no lixo. — Eu não me importo!
— Mas eu me importo! — Avancei a distância entre nós e segurei-o pelo rosto. — Quer que eles aleguem que você é perigoso e te joguem em uma clínica de recuperação para, sabe-se lá Deus, quando você vai conseguir sair novamente?
— Eu preciso mesmo ser trancado, Savannah — ele sussurrou com morbidez e eu me afastei, como se o contato com a sua pele tivesse me machucado.
— Eu não consigo entender você — murmurei, desestabilizada.
— Não tente — ele advertiu e se afastou.
Eu escutei a porta da frente se abrindo e batendo, o motor do seu carro sendo ligado e o pneu raspando no chão de terra.
Suspirei. Profundamente revoltada por estarmos naquela posição outra vez, após eu ter pensado que, enfim, tudo havia se acertado.
Antes de subir para meu quarto, furtivamente olhei para o corredor e lembrei-me do acesso de raiva que ele tivera; por conta daquela maldita porta que tinha mais poder sobre ele, do que qualquer outra coisa. E antes que pudesse me refrear, eu estava marchando na direção dela, irritada. Como se estivesse enfrentando o meu maior inimigo.
Fiquei ressabiada ao ver que a mesma estava destrancada e a empurrei sorrateiramente. Estava escuro e eu me esgueirei para dentro, tateando a parede em busca do interruptor. Encontrei-o e quando a luz amarelada devastou o ambiente, eu senti meu coração parando de bater por alguns instantes, antes de voltar a golpear minha caixa torácica freneticamente.
Aquele quarto era muito mais do que um simples local onde ele guardava as coisas significantes que pertenceram aos seus pais, era um santuário perturbadoramente doentio. As paredes eram cobertas por fotos do chão ao teto e, no centro, ficavam dois manequins, um vestindo terno e o outro um simples, porém bastante bonito, vestido de noiva. Encontrei a foto da cerimônia matrimonial dos pais dele e me dei conta de que aquelas foram às roupas usadas na ocasião.
Desordenada, me agachei, encontrando pedaços de papel aos pés dos bonecos e juntando-os com dificuldade.
“Papai e mamãe, me desculpem... eu tenho muito medo... eu sinto falta de vocês... por que vocês me deixaram?... dizem que a culpa é minha, mas eu não sei... eu odeio a minha vida... mãe, a senhora devia ter me matado quando eu estava na sua barriga... eu não sei por que fiz aquilo... eu nunca quero admitir, mas sei que sou culpado... me perdoem...”
Senti náuseas e cambaleei para trás. As paredes começaram a girar e se fechar ao meu redor, e, em um último resquício de força, eu fiquei de pé e corri para fora daquele lugar, apagando a luz e cuidadosamente fechando a porta. Subi para o meu quarto, chaveei a porta e fui para o banheiro, incapaz de conter a vontade de vomitar. Debelada por calafrios e um choro que começou titubeante, mas rapidamente se tornou compulsivo.
Naquele instante, em mim, não havia nenhum dos sentimentos bons que se faziam presentes quando se tratava dele. O que eu estava sentindo era algo que nunca sequer me imaginei sentindo em relação a ele, que não deveria me permitir sentir, mas era mais do que eu. Fugia de qualquer controle. E eu nem mesmo podia suportar a ideia de apenas olhar para o Justin, depois do que havia visto e lido naquele sombrio bilhete rasgado. Se eu nem mesmo podia suportar ideia de que ele agredira Andrew tão barbaramente, quem dirá a de que ele fosse mesmo responsável pela morte dos pais e soubesse disso, e o pior, continuasse renegando. Escondendo-se de uma verdade que, diferente do que pregava, ele conhecia.
Eu estava mais do que em dúvida, eu estava terrificada e não sabia mais o que pensar a respeito dele; não sabia como me sentir. Uma desordem dolorosa se instalou dentro de mim, disparando uma batalha entre a razão e a emoção, e, pela primeira vez em todo aquele tempo, a primeira estava prevalecendo.
Ao deitar em minha cama, tentei relaxar da melhor forma possível, apesar de ser uma tarefa completamente impossível. Ainda assim, fechei os olhos e canalizei minhas emoções, afinal de contas, teria que acordar cedo na manhã seguinte, pois, de modo algum, podia faltar com as minhas obrigações. E precisava mesmo dar um jeito de me acalmar ou acabaria enlouquecendo.
Mal preguei os olhos e já os abri novamente, espantando-me ao me dar conta de que não estava mais em meu quarto e sim, deitada no chão frio e sujo do quarto proibido. Me levantei em um pulo e encarei os arredores, velas estavam espalhadas por todos os lados, iluminando as fotografias nas paredes e os manequins, que, naquele instante, eram dois perfeitos cadáveres de pé. O odor de chorume fez meu coração bater em disparado e eu ofeguei, cambaleando para trás, até sentir minhas costas batendo contra algo; mais precisamente, alguém.
— O que está fazendo aqui? — ele perguntou, sinistramente próximo ao meu ouvido e eu dei um pulo, antes de me virar e atravessar sua figura fantasmagórica.
Uma risada diabólica ecoou no ambiente morbidamente silencioso e minhas pernas fraquejaram. Eu corria e corria, mas não conseguia chegar ao fim do corredor. Meu rosto estava lavado pelas lágrimas e a sensação pirou quando senti meu braço sendo puxado e me virei, acertando-lhe de todas as maneiras possíveis.
— Me deixa em paz — implorei, sem fôlego.
Com extrema facilidade, ele me imobilizou no chão.
— Por que entrou lá? Por que me desobedeceu?
Os olhos dele estavam negros, sua imagem perturbadoramente maquiavélica. Eu tentei acertá-lo, sem sucesso. Ele segurou meu braço e, em seguida, o outro. O soluço escapou por minha garganta e eu não tinha mais forças para lutar contra ele, mesmo assim, meu corpo continuou chacoalhando.
— Savannah — a voz dele soou aflita e eu abri os olhos, me deparando com a sua silhueta na penumbra de meu quarto, inclinado sobre mim.
Com uma rapidez surpreendente, minhas mãos o empurraram para longe de mim e ele perdeu o equilíbrio, caindo da cama, direto no chão. Liguei a luz do abajur e o encarei furiosamente.
— Mas o que...
— Como você entrou aqui? — bradei e ele me encarou confuso, antes de se levantar e se recompor. Irritantemente calmo.
— O que aconteceu com você? Do que você está falando?
A risada me escapou estarrecedora. Eu estava completamente fora de mim, uma perfeita lunática.
— Eu tranquei a porta, Justin — rosnei descontrolada. — Eu a tranquei com chave!
— Eu tenho uma chave extra — ele respondeu com naturalidade e eu o fitei com descrença.
— Vo-você o quê? — escapou em tom baixo, vulnerável.
Ele estreitou as sobrancelhas, parecendo entender minha perplexidade.
— É por questão de segurança.
— Quantas vezes? — indaguei em tom controlado e seus olhos franziram levemente. — Quantas vezes você esteve aqui antes? Quantas vezes entrou sem que eu soubesse?
— O quê? — ele rebateu, ultrajado. — Savannah, qual é o problema com você? Essa é a primeira vez que usei a reserva, só porque você estava gritando e...
— Por favor, sai — pedi, abraçando meu corpo e recuando.
— Savannah...
— SAI! — ordenei, mandando a cautela para o inferno e empurrando-o para fora e, em seguida, bati a porta com força.
Justin igualmente deixou-se vencer pela raiva e esmurrou a porta incontáveis vezes, para minha sorte, sem tentar realmente abri-la, e eu escorei-me na mesma. Chorando em silêncio.
— Quer saber de uma coisa? Talvez seja melhor se você for embora, volte para a merda da casa dos seus pais — ele gritou ressentidamente. — Essa convivência ferrada vai acabar fodendo ainda mais um de nós dois.
Fechei os olhos e tapei minha boca, para que ele não escutasse meus soluços. Tempo depois, escutei a porta lá de baixo batendo e arrastei-me para minha cama, chorei para fora todas as lágrimas do meu corpo.
Dormir tornou-se ainda mais impraticável e, ao me controlar, eu tirei todas as minhas coisas do armário e guardei-as novamente nas malas que as trouxera. Meus olhos estavam secos, mas a tristeza endurecia as feições de meu rosto e os cacos de meu coração partido me rasgavam por dentro.
Assim que o céu clareou, comecei a levar as coisas para o carro. Por diversas vezes, ao voltar para dentro da casa, idealizei que o Justin reapareceria e nós encontraríamos um jeito de resolvermos aquilo. Mas, isso não aconteceu.
E, após tomar um banho para despertar e me arrumar para o trabalho, eu me despedi do vazio de sua casa e fui embora.
[...]
O expediente na biblioteca foi insuportavelmente exaustivo, mas, enfim, tinha terminado.
Nancy havia passado parte da tarde comigo, o que me ajudou a distrair, mas o pouco de energia que me restava foi sugado quando ela contou sobre os planos de seu pai de se desfazer da biblioteca, visto que ela se casaria com seu noivo de longa data, Henry, e o sr. Grayson pretendia curtir sua saúde restabelecida e aposentadoria com mais tranquilidade.
O mundo parecia terminantemente conspirar contra mim, como nunca antes, e isso me fez sentir obstinadamente pior.
Eu estava estacionada na frente da casa dos Owen, há mais ou menos uma hora. Criando a coragem necessária para vê-lo outra vez, após o episódio decante na lanchonete. Apesar de tudo, não estava assim tão preocupada comigo. E tampouco estava em busca do seu lado da história, eu estava ali apenas por uma razão, pois, por mais que as coisas andassem difíceis entre o Justin e eu, minha preocupação em relação a ele continuava a mesma.
Desci do carro e andei decididamente na direção da casa que eu havia frequentado muitas vezes, mas nunca havia me parecido tão pouco familiar, mesmo de fora. Toquei a campainha e enfiei as mãos nos bolsos de meu casaco, esperando impaciente. Gorethe, funcionário dos Owen há anos, me atendeu com um sorriso gigantesco.
— Srta. Curtis — saudou-me com entusiasmo e eu lhe dei um breve abraço. — Quanto tempo!
— Andrew está? — fui direta e ela confirmou com a cabeça.
— Sr. e sra. Owen foram a um jantar de negócios. Andy está lá em cima, se meteu em encrenca.
Eu assenti em silêncio.
— Será que posso falar com ele?
— Devo perguntar antes — ela mencionou, incerta.
— Não precisa, vai ser rápido.
Gorethe hesitou, mas acabou me deixando entrar. Eu conhecia bem a casa, então, não precisei ser guiada. A porta do quarto dele estava encostada e eu bati da maneira que costumava fazer, Andrew demorou a consentir minha entrada.
— Oi — ele murmurou, observando-me.
Ele estava esparramado na cama, o rosto intacto, mas a perna esquerda engessada. Ajeitou-se para dar espaço para que eu me sentasse, e me sentei próxima de sua perna.
— Oi — respondi quase inaudível.
— Você não veio me visitar no meu melhor momento. — O tom de brincadeira passou distante, mas em outros tempos eu teria rido, mesmo assim.
— Eu soube do acontecido — comentei e ele desviou o olhar, enrugou a testa. — Não o denuncie.
Ele encarou-me, magoado.
— Por que não? Me dê um bom motivo.
— Ele só ficou irritado, porque soube... soube do tapa que você me deu.
— Ele quebrou a minha perna, Savannah. — Sua voz se elevou. — Acha mesmo que vou deixar isso barato?
— Por favor, Andy — as palavras me escapuliram inconscientemente. — Eu estou implorando.
Ele encarou-me cético, em seguida, forçou a risada.
— Está implorando por causa dele. — Sacudiu a cabeça vertiginosamente. — Você nunca me olhou do jeito que olha aquele cara e tampouco se importava comigo como está demonstrando se importar com ele agora. Foi por isso que eu caí nas graças da Gwen, porque para você tanto fazia, você fazia as coisas para me agradar, mas nunca por vontade própria. Seu corpo estava lá, mas o seu coração nunca estava.
— Nada disso importa — ressaltei incisiva. — Não estou aqui para resolver questões do passado.
— Você já parou para pensar que nós nunca conversamos sobre isso?
— Não tinha o que conversar, Andrew! Eu vi!
— Você não foi a primeira a ser traída na face da Terra, Savannah, e nem por isso as outras pessoas desistem tão facilmente.
Por mais que eu soubesse que ele não valia o chão que pisava, eu nunca havia me sentido tão enojada em sua presença antes.
— Você é simplesmente repugnante.
Levantei-me e estava prestes a atravessar a porta, quando ele começou a dizer:
— Eu bati no seu rosto, eu sou um desgraçado. Eu te traí com a garota que fazia de tudo para você se sentir um lixo e, acredite, eu morro todos os dias por conta disso, Sav. E eu vou queimar no inferno por tudo de ruim que já te fiz. Mas nunca te colaria em perigo, não como ele está fazendo. — Eu encarei-o de soslaio e ele estalou a língua no céu da boca. — Tudo bem, você não o conhece, Andrew. — Sua tentativa de imitar minha voz, quase me fez rir. — Mas eu o vi enquanto quebrava a minha perna, eu vi os olhos dele e não havia nada de bom lá, não havia nada do que ele demonstra quando está perto de você. E provavelmente existe um botão que o transforma naquela máquina mortífera e eu o acionei e sofri as consequências. — Ele fechou os olhos e suspirou. — Deus sabe o quanto me dói imaginar se um dia você acabar acionando esse botão também. E eu sei que quando as pessoas te dizem para fazer uma coisa, você sempre faz o contrário do que elas esperam. Mas, dessa vez, acho que o contrário é assustador até mesmo para você.
— Se você se importa tanto assim comigo, não o denuncie.
Andrew expirou.
— Não vou denunciá-lo pelo o que ele fez comigo, mas, se um dia ele fizer algo com você, eu mesmo vou acabar com a vida dele.
Comprimi meus lábios, amofinada por uma infinidade de sensações corrosivas. Eu precisava ficar sozinha por um tempo, por isso, fui embora sem olhar para trás. Mal me despedindo de Gorethe, ao encontrá-la no andar de baixo.
Ao entrar em meu carro, me recompus, antes de iniciar partida. Seguindo em piloto automático, estacionei em frente à casa dos meus pais e hesitei. Era estranho não ir para casa do Justin e eu sabia que a realidade me esmagaria como um meteoro assim que eu voltasse para aquela casa, mas não estava preparada para lidar quando começasse a doer tanto. Porque não haveria mais volta. Na verdade, já não havia. Ele me expulsou de lá, mas o anel de compromisso ainda estava em meu dedo. E eu não sabia mais o que nós éramos, se ainda éramos.
Meu coração reduziu-se ao tamanho de um grão de areia e eu deitei minha cabeça no volante, assentando meus pensamentos.
Ao sair do carro, eu estava um pouco mais contida. Mamãe atendeu a porta um segundo depois que eu toquei a companhia e abriu um largo sorriso assim que me viu.
— Querida — ela disse com entusiasmo, abrindo os braços e eu senti meu queixo estremecendo, meus olhos ficando embaçados.
Antes de esperá-la fazer qualquer pergunta, recebi seu abraço de bom-grado e ela me apertou carinhosamente, afagando meus cabelos. Meu peito ardia e minha garganta se contraía, as lágrimas que eu pensava ter excedido o limite jorravam de meus olhos, meu corpo estremecia.
Mamãe não disse nada, nem mesmo depois que me soltou e enxugou meu rosto. Apenas abraçou-me pelos ombros e me guiou para dentro, para o que costumava ser meu quarto e, no fim das contas, voltaria a ser.
— Me desculpe — pedi baixo, sentando na cama e tentando me recompor.
Ela olhou-me com ternura, esboçando um sorriso, e acariciou o meu rosto. Sentou-se ao meu lado.
— Não deve se envergonhar de mim, querida — disse e eu tentei sorrir, mas sabia não ter obtido sucesso.
— Por que é tão difícil? — deixei escapar, decepcionada. — Por que tem que ser difícil quando você gosta de alguém e é recíproco... mas... tudo vai bem e então...
O soluço cortou minhas palavras.
— Não tem que ser fácil — mamãe respondeu, segurando minhas mãos. — Nada deve ser fácil, filha. Não quando realmente vale a pena.
— Mas — solucei e suspirei —, parece fácil com os outros.
— Parece fácil para quem vê de fora.
— Como foi? — Ela olhou-me questionadora. — Com você e o papai?
Ela sorriu, um brilho reluziu em seus olhos e fez eu me sentir menos sufocada.
— Eu o conheci em uma festa de amigos, com dezessete anos eu era terrível. — Ela riu e eu acabei rindo também. — Hel sempre disse que eu havia puxado mamãe, pois eu me interessava muito mais por homens mais velhos, e havia diversos garotinhos do colégio que me paqueravam e eu não dava a mínima para eles; mas eles perderam completamente qualquer chance, quando vi o seu pai pela primeira vez.
“Ele tinha 27 anos, mas não parecia passar dos 20, tanto na aparência, quanto no espírito jovem. Se quer saber, eu era feia para o seu pai, a idade me abençoou muito. — Sua declaração me fez rir outra vez e ela ficou orgulhosa. — Eu pensei que ele não fosse querer nada comigo, afinal, qual homem formado ia querer pegar uma garotinha para criar, não é mesmo? Apesar de ser novo, ele já era bastante prestigiado. E fui eu que me aproximei dele, porque, diferente de você, eu era bem descarada. — Ela abanou comicamente com a mão e meu corpo inteiro suavizou. — Ele me deu um fora na primeira vez, mas depois o destino nos uniu novamente, quando Helena o convidou para minha festa de aniversário e, de presente, ele disse que me levaria para jantar.
“Uma semana depois, estávamos namorando e ele pegava muito no meu pé por conta dos estudos, mas todos os seus dias de folga ficávamos juntos. Nos início, tivemos muitos conflitos, mas aprendemos a superá-los juntos. A paixão nos deixou inconsequentes e, no ano seguinte, eu descobri que estava grávida de você. Por sorte, ainda consegui me formar no ensino médio, mas a faculdade que eu tanto sonhava ficou para a trás.
“Não posso ser hipócrita e mentir para você, mas, no primeiro momento, pensei em abortar. Helena e Samuel também sugeriram que talvez fosse o melhor a ser feito, por conta da minha idade, mas o seu pai sempre foi contra! No final, eu mesma não tive coragem. Era o meu sonho fazer faculdade de Medicina e me tornar Pediatra, minha parte da herança cobriria todos os custos e meus irmãos me ajudariam, caso faltasse algo. Apesar disso, sonho nenhum me faria tão feliz quanto eu fiquei quando segurei você em meus braços pela primeira vez.
Ela sorriu, seus olhos lacrimejando e eu senti lágrimas grossas escapando dos meus, enquanto intensificava o aperto de minha mão na sua.
— Só quando você tinha três anos eu resolvi que queria fazer alguma coisa, encontrar alguma profissão que não me ocupasse ao extremo e que me permitisse ainda poder usufruir a maior parte do tempo com você — voltou a dizer. — Helena cuidava de você, ela acabou vindo morar um tempo conosco, para ficar mais acessível. Na maioria das vezes, eu estudava com você em meu colo, porque não queria desgrudar. E você era tão carinhosa, às eu estava distraída e, então, você me dava um beijo na bochecha, olhava bem no fundo dos meus olhos e dizia: “Savannah ama a mamãe”. — Ela sorriu nostálgica. — Você cresceu tão rápido.
“O seu pai teve dificuldade em acompanhar, mas deu o melhor de si. Ele sempre foi um bom marido bom e também tentou ser um bom pai. Você sempre foi à coisa mais preciosa em nossas vidas, Savannah, nos ajudou a ser mais pé no chão. Todos os nossos esforços foram por você. E eu realmente sinto muito se não somos tão bons em na sua concepção, mas nós tentamos. Ninguém é cem por cento perfeito.
“Quando você era menor, nós imaginávamos diversos futuros para você, mas nenhum deles incluía todas as coisas que você escolheu ao crescer. Você fez suas escolhas e nos obrigou a tomar as nossas. Quando fechou o punho, tivemos que fechar também, porque você não era mais a nossa garotinha, que colocávamos no castigo e, então, nos comprava com chantagem emocional e nós voltávamos atrás. Você já estava crescida e precisávamos te preparar para a vida, precisávamos te preparar para ser responsável e aprender a respeitar os limites. Mas, verdadeiramente, nunca fez parte dos nossos planos sermos tão cruéis com você, assim como nunca nos veio à cabeça que você cresceria e seria tão cruel conosco... Me sinto muito responsabilizada...
Sacudi minha cabeça negativamente e ela comprimiu os lábios, ligeiramente afastou uma lágrima que escorreu por sua bochecha e eu a abracei.
Norma abriu mão das idealizações de sua vida por mim, escolheu a mim e aquele havia sido o seu maior sacrifício, portanto, agora era entendível o quanto meus pais programavam minha vida. Porque eles queriam me privar de passar por todos os contratempos que precisaram enfrentar, estavam me criando para não fugir dos trilhos e, então, eu escolhi ir pelos caminhos tortuosos. Eles me deram todas os apoios que não tiveram dos próprios pais, mamãe por ter os perdido cedo e meu pai por ter se afastado, e enquanto eu pensava que eles só queriam me sufocar, na verdade, eles queriam me ajudar.
Mas, eu havia sido ingrata, havia sido cruel com eles e ambos apenas refletiam minhas atitudes, somente rebatiam na mesma moeda e eu continuava insistindo que a culpa era exclusivamente deles. Quando, na realidade, grande parte era minha. Eu fiz com que eles se cansassem e desistissem de mim. Eu destruí nosso relacionamento familiar. E eles apenas permitiram que eu continuasse puxando a corda até me enforcar.
E foi exatamente o que fiz, por um tempo quase sem volta.
Apertei mamãe ainda mais no abraço e me aninhei entre seus cabelos. Ela tinha um cheiro agradável de lavanda, me lembro das noites em que eu tinha pesadelo e ia até o quarto de meus pais, chamava-a e então ela me aninhava em seus braços. Aquele cheiro tomava conta de seu travesseiro e de olhos fechados eu o aspirava, e, assim, qualquer medo simplesmente se esvaía e eu me sentia em paz, me sentia protegida.
Exatamente, como, anos depois, me senti naquele instante.
— Não cometi aqueles erros por causa da senhora, do papai e muito menos por conta do que Andrew me fez — admiti, conscientemente. — Fiz tudo aquilo por causa de mim, porque não estava feliz e satisfeita comigo mesma. Fiz todas aquelas coisas porque queria fugir do vazio que eu carregava aqui dentro. — Sinalizei meu peito. — E machuquei vocês, porque queria que pudessem sentir toda a doer que eu sentia dentro de mim, por razões que eram apenas minhas. Eu entendo os seus medos, mãe, e assim como à senhora tenho os meus medos também. Na verdade, eu tenho vários deles. E eu não queria uma vida programada para no final descobrir que eu era infeliz, assim como à senhora descobriu que seria se tivesse desistido de mim.
— Todos nós cometemos muitos erros — ela concluiu, nos afastando. — O mais importante, é aprendermos a encontrarmos um meio de transformá-los em acertos, em algum momento.
Assenti, limpando o meu rosto. Era sempre muito bom conversar com ela, e eu tinha me esquecido disso. Porque, por muito tempo, preferi pegar sua imagem de esposa subordinada e injustamente me prender somente a isso.
— Eu sinto muito — murmurei, me desculpando por diversas razões.
— Eu sei disso, querida. E eu também sinto muito, e estou feliz que esteja aqui.
Avancei em sua direção e abracei-a novamente, absurdamente necessitada de seu afeto.
— Ainda posso voltar para casa? — perguntei baixo e ouvi sua risada sutil. — Minhas coisas já estão no carro.
— Claro que sim, meu amor. Essa casa é tão sua, quanto nossa.
— Eu amo você, mamãe — sussurrei e ela me apertou mais em seus braços.
— Eu amo você também, minha pequena salvadora. E seja o que tenha acontecido entre você e o Justin, se o que existe entre vocês for verdadeiro, vocês vão encontrar o caminho de volta — ela murmurou e depositou um beijo em minha testa. — Agora, descanse. Quando seu pai chegar, eu peço para ele subir suas coisas.
Assenti em silêncio e ela saiu, deixando-me sozinha, porém, com mais clareza de pensamentos. Talvez aquele tempo realmente fosse bom para nós, talvez mamãe estivesse certa e tudo se resolveria no devido tempo.
Desde o início, Justin e eu fomos precipitados. Por isso, estávamos tropeçando nos relevos subentendidos que deixamos. Nós mal nos conhecemos e já fomos viver sob o mesmo teto. Tivemos conflitos supérfluos no começo, e era natural que eles fossem aumento com o tempo, com a convivência constante.
Contudo, o espaço era necessário quando as coisas fugiam dos limites, como andavam acontecendo. E, por mais difícil que fosse a simples ideia de ficar sem vê-lo, sem sentir seu cheiro pela casa e sem a consciência de que em um momento ou outro ele estaria ao meu lado, eu teria que aprender a suportar a completa ausência dele. Por mais torturante que fosse.
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