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História Pompeia - Capítulo único - História escrita por The9thDistrict - Spirit Fanfics e Histórias
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História Pompeia - Capítulo único


Escrita por: The9thDistrict e akakios

Notas do Autor


Antes de tudo, gostaria de agradecer (muito, muito, muito, muito!) aos incríveis, fofos, atenciosos e divertidíssimos betas do the9th que melhoraram e corrigiram minha nova monstrinha. Jarvis (@whateveritakes), Soso (@Kactus_), Juliana (@johnfam), Mari (@catwalker) e Deiso (@got2jae), muito obrigada mesmo pelo tempo e carinho de vocês. Eu sei que dei trabalho, mas juro que não foi de propósito… JÁ ESSA CAPA (A MAIS LINDA DO CICLO E SÓ MINHA OPINIÃO IMPORTA) foi feita pela Raíssa (@skwhy) e eu não poderia ter ficado mais feliz com ela!!! de verdade, muito obrigada <3

Pompeia é meu debut no the9th, projetinho na qual amo amar e encher de mimos, mesmo que eles façam bullying comigo e só chamem minha filha de “mega changlix”, esses feios… MAS SÉRIO, vou te falar, essa fic me fez comer o pão que o diabo amassou. sofri, chorei em meio a crises de tendinite e virei algumas madrugadas, mas no fim deu tudo certo. eu acho. espero, do fundo do meu coração, que essa fic ajude alguém a sair um pouco de órbita. que sirva de distração, pelo menos só um pouquinho, em meio a tantos dias ruins (que certamente passarão). enquanto eu escrevia, inventei de fazer uma playlist para a fanfic!!! se você quiser escutar enquanto lê (ou só ler depois, idk), aqui está: https://open.spotify.com/playlist/65Z5Viv3qLes2VZEFbaP3s?si=8Yk6UwzJTrKkyGJeIjahHw

só para deixar bem claro, grandes espaçamentos significam uma grande passagem de tempo, okay? muito obrigada por ter clicado nessa fanfic! espero te ver lá embaixo.

Capítulo 1 - Capítulo único



 

Certa manhã de sábado, diretora Jeong enviou uma mensagem para Changbin. Dizia o seguinte:


 

Desconhecido [09:36 am]

Changbin, aqui é a diretora Jeong. Dei uma boa olhada nas câmeras de segurança e não foi difícil identificá-lo como o responsável pela pichação dos muros e portão da escola. 


 

Com uma mão enfiada na cueca e ainda bastante sonolento, Changbin soltou uma risadinha que preencheu todo o silêncio do quarto.


 

Changbin [09:37 am]

Queridíssima diretora Jeong, não sabia que tinham o número de telefone dos alunos. 

A senhora gostou da minha obra de arte? Caprichei bastante nas bolas

(elas foram inspiradas nas minhas próprias).

 

Desconhecido [09:38 am]

A coordenação está fazendo agora mesmo uma reunião para discutir o seu caso. Estão pensamento seriamente em expulsá-lo.

No entanto, eu não quero expulsar você.


 

Changbin ficou muito quieto sobre o colchão. Planejava mandar uma foto do pênis para a diretora Jeong, mas congelou no lugar ao ler a última mensagem enviada por ela. Não ligava nem um pouco para o seu destino na Bora; se quisessem expulsá-lo, ele alegremente aceitaria. Todavia, vê-la dizer que não queria mandá-lo embora o pegou de surpresa.


 

Changbin [09:40 am]

Não?

Por quê?

 

Desconhecido [09:40 am]

Eu o escutei tocando guitarra semana passada.

Desconhecido [09:41 am]

Sei bem que o proibiram de entrar na sala de música, mas você nunca respeitou regras, de qualquer jeito. Eu estava pronta para tirá-lo de lá, mas…

Você tem muito talento, Changbin-ah.

Desconhecido [09:42 am]

Era Van Halen, não era?


 

Absolutamente chocado, o corpo de Changbin se moveu sozinho. Acabou sentado sobre a cama, pernas cruzadas e mandíbula meio caída, encarando a mensagem de diretora Jeong.


 

Changbin [09:43 am]

Sim, Eruption.

Não sei se você só é velhota o suficiente para reconhecer ou se realmente gosta de rock.

 

Desconhecido [09:43 am]

Vou ignorar a ofensa.

Desconhecido [09:44 am]

O que eu estou dizendo, é: você não é um caso perdido, mesmo que trate a si mesmo como um. Eu não quero abandoná-lo, mesmo que você seja um terrível exemplo.

Desconhecido [09:45 am]

Eu quero puni-lo, sim, mas não quero expulsá-lo. Eu só preciso de uma razão para mantê-lo.

 

Changbin [09:45 am]

Só me manda embora logo.

Eu odeio esse tipo de ladainha.

 

Desconhecido [09:46 am]

Você realmente quer ser mandado embora? Caso disser sim, mancharão o seu nome e nenhuma escola irá querê-lo. Nunca. Você nunca vai se formar.

 

Changbin [09:46 am]

Tudo o que eu mais quero.

Assino onde?

 

Desconhecido [09:47 am]

E se eu liberar a sala de música para você? 


 

Rindo, Changbin colocou os países baixos de volta na cueca. Era uma armadilha — só podia ser uma.


 

Desconhecido [09:48 am]

Se você disser que quer ficar, eu consigo convencê-los a não expulsá-lo. Você terá, obviamente, que limpar toda a sujeira que fez, mas poderá ficar. E poderá utilizar os instrumentos da escola. 

Desconhecido [09:49 am]

Por favor, não me faça expulsá-lo. Eu realmente quero que você fique.

Desconhecido [09:50 am]

Outra coisa: posso aliviar a sua barra e não meter uma suspensão de quinze dias se você concordar em começar a dar aulas de violão.

 

Changbin [09:50 am]

Bateu a cabeça, Jeongyeon-ah? Era só o que me faltava agora.

Só assina para me dar um chute na bunda para fora da Bora, era tudo o que vocês mais queriam, me ver bem longe daí.

Changbin [09:51 am]

Realize o sonho.

 

Desconhecido [09:51 am]

Changbin, eu gosto muito de você. Sempre gostei.

Vamos aos fatos: você acha mesmo que o seu pai vai perdoar a sua expulsão?

Desconhecido [09:52 am]

E se ele matar você?

 

Changbin [09:53 am]

Eu morro.

Fim de papo.

 

Desconhecido [09:53 am]

Não faça isso, por favor.

Eu quero vê-lo bem e se graduando.

Desconhecido [09:54 am]

O que eu vi e ouvi não eram habilidades comuns. Você é bom de verdade.

Reconsidere. Por favor.


 

Changbin conseguia ouvir a voz de diretora Jeong. Monótona, porém rígida e recheada de preocupação. Se ela estava agora mesmo numa reunião estudantil que decidia se Changbin arrumava ou não as malas, a única coisa que a separava da resposta final era o que o Seo tinha a dizer. 

Coçando a nuca, ergueu o olhar pesado à parede esburacada do quarto. Por um dos buracos, conseguia enxergar um exército de latinhas de cerveja sobre a mesa de centro da sala. Jeong Jeongyeon não estava brincando ― ela infelizmente conhecia a família Seo o suficiente para não errar os cálculos quando estipulava a morte de Changbin, caso o senhor Seo descobrisse que o pirralho que era obrigado a sustentar havia sido expulso da escola.

Changbin odiava se sentir daquele jeito. Exposto. Patético. Fraco.

Sabia o que diretora Jeong pensava. Sabia que ela não achava que ele fosse mais do que um pobre coitadinho, louco para um pouco de atenção ― e isso era o que ele mais odiava. 


 

Changbin [10:03 am]

Não acha injusto o jogo que está fazendo comigo, Jeongyeon-ah?

É um jogo de uma pessoa só, não acho que tenha opção.

 

Desconhecido [10:04 am]

Na realidade você tem, sim. Você só é muito esperto e está focado na opção certa. Não tem o porquê de recusar, no fim das contas.

Desconhecido [10:05 am]

Mal posso esperar para chamá-lo de professor.

 

Changbin [10:05 am]

Você mal pode esperar para me ver limpando a sua escolinha de merda, velha desgraçada.

 

Desconhecido [10:06 am]

Isso, também! 

Como é que vocês fazem?

 

Changbin jogou o celular para longe e voltou a afundar no colchão, derrotado, quando a maldita mulher mandou um emoji de paz e amor. Nem em um milhão de anos pensou que fosse fazer um trato com Jeong Jeongyeon. Enquanto ela queria colocar tudo nos eixos, ele só causava confusão. Às vezes era sem querer, mas na maioria das vezes era de propósito.

Era só que… era difícil sentir raiva de tudo, o tempo todo.

Merda.

Diretora Jeong, no fim das contas, já havia visto muitos Changbins antes. 

―  Mulher dos infernos! ― bradou, deixando os antebraços cobrirem o rosto.






 

Com os cotovelos fincados à janela, Seo Changbin observava a tempestade rabugenta que castigava o mundo lá fora. Era uma daquelas intensas e rápidas de verão. Tempestades como aquela levantavam um cheiro de terra molhada e a vontade de comer alguma coisa diferente. Changbin não conseguia explicar. 

Devagar, pressionou o botão do rádio para ligá-lo novamente. Nos últimos meses, era a única coisa que o mantinha bem.

 

“Baixei a mão para afastar as madeixas de sua têmpora. Aquiles cerrou os olhos. Contemplei seu rosto, inclinado para o sol. A delicadeza de suas feições fazia-o às vezes parecer bem mais novo. Tinha os lábios túrgidos e rubros.

Ele abriu os olhos e disse:

— Cite um herói que tenha sido feliz.”


 

Changbin voltou a interromper o audiobook ao desligar o rádio. De novo.

― Livro do caralho ― xingou, baixinho, sob a respiração. Mas não saiu do lugar. Continuou a encarar o rádio como se ele fosse o responsável por todos os seus problemas, sobrancelhas tão juntas que a qualquer momento elas iriam, de fato, se encontrar. O pequeno rádio nem tremeu; talvez já estivesse acostumado às encaradas rabugentas de Changbin.

Não importava quanto tempo passasse, ele era incapaz de terminar o maldito livro. Madeline Miller era uma idiota e ele era mais idiota ainda por tentar continuar a ler aquela história para boi dormir.

Com um gosto ruim na boca, decidiu mudar as estações para ver se tinha alguém, em algum lugar, que ainda se importava ― ou, talvez, alguém que não se importava com nada. Era difícil dizer. Às vezes, tinha alguém. Às vezes o dia passava silencioso.

Às vezes, Changbin os ouvia chorar o dia inteiro. A pior parte é que eles não faziam ideia se havia alguém ali, do outro lado. Eles só queriam chorar. Só precisavam chorar. Era o que lhes restavam agora que não havia mais nada. Era mais fácil ficar solitário com outras pessoas.

Geeks tocava numa das estações. Changbin sabia que era Geeks e nem precisava ouvir mais de cinco segundos para identificar a voz de Louie, sobrepondo o barulho de tudo lá fora. Com um pequeno sorriso inundando os lábios, Changbin aumentou o volume. Era difícil ouvir música nos últimos meses, visto que agora nada mais funcionava. Ou importava.

Ninguém mais fazia questão de fazer o mundo rodar direito ― para quê? Para que continuarmos a viver, a trabalhar? Seríamos, muito em breve, erradicados. Todos nós. Changbin havia pesquisado no Google todas as formas (interessantemente numerosas) que poderíamos morrer graças ao Titã. Quando ― porque ele iria ― colidir com a Terra, o que vai limpar a maior parte da população nem será as explosões supermassivas, chuva de rochas imensas e incandescentes caindo por todos os lados, os tsunamis quilométricos inundando cidades inteiras ou a tempestade de fogo que durará uma década. Não, não, nada disso. Nós seríamos, em nossa maioria, erradicamos por rajadas de vento.

Changbin achava isso ridículo para caralho.

A porra de um careca montado num bisão iria fazer a gente perder a cabeça. Literalmente.

Que merda.

Que merda.

É.

Que merda.

Ainda chovia muito.

Que merda.

Tinha gente por aí que com certeza estava odiando o fim do mundo mais do que ele. Com certeza. Tinha gente por aí com planos e sonhos e uma vida mágica inteira pela frente. Não Changbin.

O futuro é só uma ilusão. A morte é só uma ilusão.

É o que ele achava.

Mesmo assim: que merda.

Asteroide do caralho.

Changbin não tinha medo de morrer. Nunca teve. Parte dele acreditava que já havia se acostumado com a ideia de viver à beira do fim do mundo, como se cada dia fosse, na realidade, o último. Mas saber quando não apenas você, mas uma civilização milenar inteira vai para o brejo era uma sensação totalmente diferente. 

Officially Missing You chegou às linhas finais e Changbin não conseguiu cantar junto com eles. Estava tudo bem; fazia tempo que ele não conseguia cantar essa música, de qualquer jeito. Que merda.






 

― Ooh, professor Changbin. Fico feliz de vê-lo trabalhando duro ― diretora Jeong Jeongyeon confessou com um sorriso que ia de orelha a orelha. Reservada dentro de um de seus terninhos sensatos e gravata plastron, encarava o jovem rapaz com a cabeça um pouco inclinada.

― Não ‘tô a fim de papo agora, Jeongyeon-ah ― Changbin resmungou, mandíbula trancada e olhos bem focados ao trabalho que estava fazendo há algumas horas. 

― Oh, como não? Você está aí há um tempinho, pensei que pudesse desfrutar de alguma companhia.

― Só se a companhia em questão quiser limpar a tinta comigo ― propôs com um tom espertinho, forçando um sorriso para ela. De cócoras em frente ao portão agora parcialmente limpo, Changbin mantinha as mãos bem ocupadas ao esfregar, com raiva, uma bucha contra o metal violado. Àquela altura, já havia tirado a camisa e os sapatos, permanecendo apenas com as calças caídas na linha da cintura. Suava da cabeça aos pés feito um bode, a pele morena brilhando sob o sol forte das dez horas.

― De jeito algum. Quem fez a sujeira é quem deve limpá-la.

Se Changbin pudesse lançar laser pelos olhos, diretora Jeong já teria virado espetinho. Ela deixou uma risada satisfeita sair da boca ao notar o olhar dele, cobrindo os lábios em seguida.

― Você sabe que estou certa.

― Hah.

― Eu até te dei um voto de confiança… te deixei aqui fora, sem supervisão… você pode ir embora, se quiser ― Ela fez um gesto abrangente para a rua, onde alguns transeuntes não deixavam de dar uma espiada na situação incomum.

― Esses joguinhos não funcionam comigo, Jeongyeon-ah.

― Não?

― Não. 

E, um pouco puto, enfiou a mão no balde d’água com sabão que estava ao seu lado apenas para jogar um pouco na mulher. Foram apenas algumas gotinhas que acertaram principalmente o sapato chique dela, mas foi o suficiente para que a diretora desse alguns passos para trás, positivamente surpresa.

― Changbin-ah! Yah!

― É, é, chora mais. Se continuar aqui enchendo o meu saco, eu jogo o balde todo em você ― ameaçou com zero hostilidade. Até sorria um pouquinho.

― Logo eu, que vim trazer um lanchinho para você.

― Vou comer quando terminar.

― Pode comer quando quiser. ― E, dito isso, colocou um embrulho sobre a camisa mal-dobrada sobre o chão. ― Lembre-se: hoje é só o portão. Você tem toooda a semana para terminar de limpar o resto.

― Ha, ha, ha. 

― Quando o professor terminar, devolva o balde e a bucha às meninas da faxina e venha me procurar ― instruiu com um sorriso enorme, dando um último aceno para ele antes de voltar para dentro.

Moleque do jeito que é, Changbin repetiu o que ela disse com uma série de nhé, nhé, nhés infantis e um bico enorme, o modo Berserk ativado para terminar a tarefa o mais rápido possível. Era uma pena que sua obra de arte tenha de ruir pelas próprias mãos. 

Changbin terminou com o portão às onze e quarenta em ponto. Respirando pesado e brilhando de suor, encarou a porta metálica bem de pertinho, atento até aos respingos que porventura tenham escapado aos olhos raivosos. Passou os dígitos pela superfície algumas vezes, estranhamente satisfeito ao ouvir o doce rangido da limpeza.

Apertou o interfone antes de pegar tudo do chão. Apressado, nem se deu ao trabalho de vestir-se de novo ― só queria entrar, fugir do sol e esticar as pernas naquele sofá azul bebê na sala da diretora. É… soava bom o suficiente. O segurança nem exigiu nada dele; apenas suspirou e fez com a cabeça para ele entrar logo.

Com as duas mãos bastante ocupadas, descalço e seminu, Seo Changbin atravessou o pátio sob os olhares curiosos dos estudantes que estavam almoçando. Era, infelizmente, uma porção deles. A maioria debatia baixinho com os próprios grupinhos sobre a veracidade dos boatos; Seo Changbin não tinha, como haviam espalhado, piercing nos mamilos. Mas ele tinha tatuagens. E cicatrizes. Muitas cicatrizes.

― Como eu falei, Changbin sunbae não tem piercings ― Jeongin disse num tom muito satisfeito. Era sempre bom estar certo sobre as fofocas que espalhavam sobre os outros. ― Por que alguém colocaria piercings nos mamilos?

― Porque é legal ― Jisung argumentou.

― Não é nada legal. E deve doer muito.

― Ele não liga para dor. Você viu as tattoos dele?

― Tatuagens devem doer menos que piercings ― Jeongin opinou, olhando para a direção geral onde o Seo havia passado. ― Chegou a ver o que era, hyung?

― Não… era toda preta e difícil de identificar… uma pena que não havia outro par de olhos prestando atenção também ― resmungou, cutucando com o cotovelo um focado Felix. 

O dito cujo piscou algumas vezes, tirando os olhos de seu exemplar novinho de Demon Slayer para focá-los nos expectantes Jeongin e Jisung.

― O quê? O que foi?

― Chegou a ver alguma tatuagem do Changbin sunbae? Chegou a vê-lo passar por aqui peladão? ― Jisung usou um canudo para mostrar a Felix por onde Changbin havia passado, ali do lado deles.

P-peladão? Changbin sunbae? ― A voz de Felix saiu um pouco mais alta do que o planejado.

― Não peladão. Ele estava sem camisa. E descalço ― Jeongin corrigiu, rindo ao vê-lo todo alarmado daquele jeito. ― Ficou sabendo que diretora Jeong o botou para limpar tudo, né? 

― Sim, disso eu fiquei sabendo… ― Felix ajeitou os óculos no rosto, um pouco embaraçado com os próprios pensamentos. ― É meio difícil ignorar os desenhos que ele pichou.

― É. Vaginas, bolas e paus por todos os lados ― Jisung sussurrou mais para si mesmo, concordando com Felix ao olhar diretamente para as portas pichadas dos banheiros. 

― ‘Tá até rolando uma conversa que a diretora Jeong fez de tudo para não expulsarem ele ― Jeongin fofocou com certa animação, batendo nas mãos de Felix sobre a mesa. ― O professor Park queria chamar a polícia, até, mas ela fez um acordo com a coordenação.

― Um acordo? ― Felix ergueu as sobrancelhas. ― Imagino que seja algo envolvendo a limpeza das pichações.

― Não apenas isso. Diretora Jeong vai colocar Changbin sunbae para dar aula de violão.

― O quê?! ― Jisung e Felix exclamaram ao mesmo tempo.

― Sssh! ― Jeongin abanou as mãos para calá-los. ― Falem baixo. É isso mesmo. Minha mãe me disse que a diretora Jeong tem um amor enorme pelo Changbin sunbae, e está fazendo de tudo para provar aos professores que ele só é incompreendido.

― Changbin sunbae está mais para incompreensível.

― Segundo minha mãe, diretora Jeong irá botá-lo como professor de violão para alguns alunos do fundamental para provar que ele tem comprometimento e responsabilidade e só precisa de um… empurrãozinho.

― Empurrãozinho ― Jisung repetiu, cético. ― Changbin sunbae, que em seu primeiro ano quebrou a mandíbula de um cara do terceiro? Changbin sunbae, que já colocou laxante no suco do professor Park?

Os três ficaram em silêncio antes de se quebrarem em diversas gargalhadas.

― O.k., o.k., o laxante no suco do professor Park foi muito bom... ― Jisung retirou as acusações depois de quase se mijar inteirinho de tanto dar risada ao se lembrar do episódio.

― Mas ele não é… ruim. É? Ele nunca brigou com ninguém que não tenha mexido com ele, certo? ― Felix torceu o canudo de Jisung nos dedos, ansioso.

― Acho que não ― Jeongin respondeu depois de pensar por um minuto. ― Ele só se envolve em briga se outras pessoas começarem primeiro. Eu não o vejo pegando no pé de caras nerds como nós, também.

― Mudando um pouco de assunto, por que diretora Jeong vai colocá-lo para dar aulas de violão? Não faz sentido, faz? ― Jisung quis saber com uma careta. ― Qual a relação? Não consigo entender.

― Changbin sunbae toca um monte de instrumentos ― Felix informou como se soubesse mais do que aparentava saber. ― Ele foi proibido de usar a sala de música depois que brigou com o professor Im, mas eu às vezes o vejo entrando lá e tocando guitarra mesmo assim. Ele é… muito bom ― completou, baixinho, não olhando para os dois.

― Conhecendo diretora Jeong… ela com certeza fez um trato bem maluco com Changbin sunbae. Acho que faz parte do plano “convencer os adultos que o sunbae é, na realidade, uma boa pessoa” ― Jeongin teorizou, acariciando o queixo.

― Deve ser isso mesmo ― Felix concordou, olhando para Jisung. ― É o que faz mais sentido.

― Mas e aí, vocês teriam aula com ele? ― Jisung ondulou as sobrancelhas ao questionar.

― Sim ― Felix respondeu rápido demais.

Jisung e Jeongin olharam para ele com as sobrancelhas lá em cima.

― Hyung?

― N-não… quer dizer… é… não…

― Hmm, entendi ― Jisung murmurou, olhando para a sua lancheira vazia. ― Entendi, Felix. Entendi bem.

― Entendeu o quê?!

― ‘Tá amarradinho no sunbae, é?

― Jisung… você perdeu a cabeça? ― Felix abaixou o tom de voz, instintivamente encolhendo os ombros e olhando ao redor. ― E se alguém ouvir?

― Por quê? É verdade? ― Jeongin cobriu a boca. ― Hyung!

― Não! Não é verdade! 

― Já era, Felix. A gente sabe que é verdade, sim. Você tem uma quedinha pelo badboy da Bora.

― E não é um badboy Nutella, ainda por cima. É um de verdade ― Jeongin contribuiu à miséria de Felix, sorrindo quando o garoto afundou o rosto nas mãos.

― Eu não… eu não tenho quedinha nenhuma… eu só- ele é… 

― O seu tipo? ― Jisung completou, rindo. ― Você sonha com aqueles braços fortes e tatuados abraçando e protegendo você? ― perguntou, abraçando Felix num tom jocoso. ― Sonha com ele sorrindo só pra você?

― Não, claro que não-

Felix estava todo vermelho como um pimentão. Tentava, em vão, cobrir o rosto, mas eles podiam ver as nesgas de pele rubra entre os dedos magros. Sentia o coração na garganta, prestes a vomitá-lo tamanha humilhação ― não era para eles descobrirem. Nunquinha. Mas Lee Yongbok sempre havia sido péssimo com mentiras; se o assunto viesse à tona, seria fácil descobrir o que ele realmente pensava baseando-se nas reações de seu corpo. Como agora.

― E se você se inscrever para ser um dos alunos dele? ― Jeongin sugeriu, olhando para Felix com um sorrisão pilantra. ― Vai poder ficar mais próximo.

― Não sei se vai adiantar alguma coisa ― Jisung argumentou, ainda agarrado às um mortificado Felix. ― Não sabemos se Changbin sunbae curte garotos. Ou se está aberto a relacionamentos… ou a afeto no geral.

― Todos nós estamos abertos a afeto! ― Jeongin lançou um guardanapo amassado em Jisung. ― Pare de ser chato e pessimista. Você não conhece Changbin sunbae.

― E nem você. Só estou dizendo, Felix, para você ter em mente que talvez as coisas não… sei lá. Andem?

― Não, espera. De onde vocês tiraram que eu estou com expectativas? E que eu vou pedir para ter aulas com ele? Vocês perderam a cabeça? Não coloquem palavras na minha boca ― Felix disse, parecendo mais revoltado do que envergonhado. 

― Nem uma amizade você quer? ― Jeongin quis saber, inclinando-se sobre os cotovelos em cima da mesa.

― Por que eu iria querer uma amizade com Changbin sunbae?!

― Porque você gosta dele, bobinho ― Jisung sussurrou contra a cabeça de Felix como se fosse óbvio. 

― Sem julgamentos ― Jeongin complementou.

― Vocês estão enganados ― Felix tentou negar de novo, abanando. ― Estão mesmo. Não é… uma quedinha- 

― É uma super queda ― Jisung interrompeu.

― É só uma admiração à distância. Só isso. Eu o acho cool e o respeito. É só isso ― Yongbok explicou bem rapidinho, desvencilhando-se dos braços do Han para mais rapidinho ainda guardar seu mangá na mochila e, meio atrapalhado, lançar as pernas para bem longe da mesa. ― Eu vou indo. A gente se vê depois.

― Espera, hyung, não precisa correr da gente assim! ― Jeongin até tentou agarrar o pulso do garoto, mas Felix já estava andando bem depressa para longe deles. ― Hyung parece um tomate gigante com pernas ― comentou ao observá-lo já longe, entreolhando Jisung. ― Será que o magoamos?

― Pelo menos não mentimos ― Jisung ponderou. ― Ele vai superar.

Jeongin o olhou atravessado.

― Você não presta, hyung.

― Besteira… mas, sei lá, tem uma vozinha dentro de mim que ‘tá dizendo que Changbin sunbae iria gostar de Felix.

― Tenho a impressão que sunbae iria matá-lo ― Jeongin discordou.

― Só se for de tesão.

― Hyung?!

― ‘Tô mentindo?! Eu disse para ele não ter muitas expectativas, mas não é ruim imaginar que Changbin sunbae goste dele, também.

Jeongin não soube o que dizer. Não era bom com coisas que envolviam o coração por achá-las vergonhosas, mas não julgava o crush de Felix. Mesmo que o crush de Felix fosse Seo Changbin. Não dava para controlar essas coisas, afinal de contas.

Enquanto Jeongin e Jisung falavam sobre Felix e Changbin, o Lee em questão tentava acalmar o coração palpitante. Sentia-se estúpido e ridiculamente afogueado, abanando o rosto enquanto andava corredor acima, mantendo a cabeça baixa para ninguém mais presenciar o vermelhão vergonhoso que manchava a sua dignidade. 

Como se já não bastasse o próprio subconsciente avisando que era uma má ideia gostar de garotos também, agora seus dois melhores amigos sabiam do fato que o mantinha acordado à noite. Felix odiava isso; odiava observar Seo Changbin e não sentir medo ou nojo dele. Quando o via se movimentar, desde o undercut às gotas de sangue nas pontas de seus dedos, tudo o que sentia era uma violenta e incontrolável excitação.

Já havia perdido as contas de quantas vezes havia ficado preso na cinesia dos músculos fortes e firmes ao dispararem uma, duas, incontáveis vezes contra, na maioria das vezes, mais que uma pessoa só; trancafiada sobre camadas de pele morena e suada e macia, Felix sabia que a força de Seo Changbin não podia ser subestimada. 

E isso o deixava louco. Changbin era com uma violência imparável e ímpar; modesta e tímida, mas jamais subjugada.

Ver Seo Changbin lutar havia se tornado o grande erro de Felix. Nunca quis ter visto, mas uma vez foi o suficiente para torná-lo um grande idiota. Nunca tinha se deparado com alguém como ele; tão selvagem e recheado de furor, mas ao mesmo tempo tão hipnotizante e aprazível de ser assistido. Num dia especialmente carente, Felix conseguia reunir uma boa quantia de melosidade e defini-lo como um farol ― um à beira-mar, bem gigantesco, enfrentando o oceano violento sem deixar a lanterna vacilar.

Mas não era um desses dias.

Com um suspiro derrotado, Felix ajeitou as alças da mochila no ombro. Quantas vezes havia sonhado com Seo Changbin? Quantas vezes havia visto o nariz dele sangrar e os fios macios de cabelo desorganizados até que uma de suas mãos calejadas e púrpuras arrumassem-nos para trás? Quantas vezes havia corrido para o quarto à beira das lágrimas e se masturbado até os quadris fraquejarem e, sem forças, despencar contra o colchão por causa de Seo Changbin? Quantas vezes?

Não fazia mais ideia. Não sabia quantas vezes havia chorado após cada orgasmo, rosto enfiado no colchão, carmesim tamanho a vergonha e ódio que sentia ― não de Changbin, mas de si mesmo, por permitir que se sentisse daquela forma.

Com os lábios mordidos e cheio de humilhação, alcançou a passos lentos o terceiro andar. Havia parado de correr quando se afastou dos possíveis olhares estranhados de outros alunos, mais confortável agora que estava ao redor de apenas armários e janelas.

Felix sempre gostou do banheiro do terceiro andar. Usualmente vazio, espaçoso e com um grande espelho, era ali que ele escovava os dentes após o almoço e matava uns bons minutos do intervalo. Felix gostava da companhia de Jeongin e Jisung, principalmente nos dias que sentia-se mais feliz e suscetível à bagunça, mas no geral gostava de ficar sozinho. Não era nem ruim ou bom. Era só… ele.

Com um outro suspiro ― quase romântico ―, desenganchou uma alça da mochila para rodá-la para frente, olhinhos cansados e míopes focados no buraco negro que era o interior de sua mala. Só queria alcançar o estojo de plástico na qual guardava seus itens de higiene pessoal, escovar os dentes e rencostar logo ao espelho para terminar mais um capítulo de Demon Slayer.

Mas claro que a vida não passava de um show de stand-up. Felix achou o estojo naquela confusão infinita, ergueu o olhar e gritou.

― Seo Changbin! ― berrou como se estivesse sendo assassinado pelo tatuado, olhos aumentando dez vezes de tamanho atrás das lentes grandes dos óculos. Mortificado até o cálcio dos ossos, Felix travou no lugar e, boquiaberto após o próprio grito que sobressaiu-se principalmente pela falta de respeito, não conseguiu fazer nada além de encará-lo feito um completo idiota.

É. Seo Changbin. O maior inimigo de seu sono tranquilo estava ali, antebraços pressionados contra o mármore claro da pia, corpo inteiro molhado e, infelizmente para Felix, apenas com as roupas íntimas. Felix terias muitas perguntas caso estivesse em um bom lugar mental ― como, por exemplo, por quê? 

Changbin tinha uma careta desconfortável grudada no rosto, levando o indicador ao buraco da orelha como se o berro de Felix tivesse ferido seus tímpanos. Ao contrário de Felix, parecia ter todas as respostas do mundo sobre sua nudez (parcial) e, acima disso, parecia ridiculamente o.k. com toda a situação.

― Hah? ― foi o que ele disse, ainda fazendo careta. Ainda pelado. Ainda molhado. Mas, agora, direcionando os olhos tempestuosos ao garoto à porta. O cabelo escuro caía sobre as sobrancelhas e Felix quase odiou não ver a direita cortada bem no meio. Quase odiou não ver o machucado ainda cicatrizando no supercílio. Quase.

A única coisa que ele odiou ter visto foram as tatuagens. Pretas, combinando perfeitamente com a pele morena. Felix não conseguiu observá-las a ponto de saber o que ela queriam dizer ou, pelo menos, o que exatamente estava ali, para sempre na pele de Changbin.

Deu meia volta e saiu correndo.

Changbin ficou olhando para a porta vazia com sobrancelhas juntas.

― Maluco do caralho ― resmungou, voltando a observar o reflexo. Exausto, mas refrescado, não tardou a usar o papel toalha na pele ainda úmida. Secou o corpo devagar, querendo poupar as energias o máximo possível.

Saiu do banheiro já seco e vestido, apenas o cabelo escuro encharcado e penteado de qualquer jeito para trás. Não deixou de perceber, no entanto, o cheiro gostoso que havia infestado todo o corredor. Até enrugou um pouco o nariz, tentando descobrir qual aroma era aquele, mas nada vinha à mente. Encucado, mas não querendo gastar neurônios só para identificar um cheiro, rumou escadas acima em direção à sala dos funcionários com o embrulho de Jeongyeon nas mãos.

Jinjoo, a secretária oficial da Bora, quase caiu da cadeira giratória ao acompanhar a aproximação tranquila de Seo Changbin.

― C-Changbin-ssi? ― ela chamou, incerta, erguendo as mãos na frente do rosto. ― O que faz p-por aqui? 

Um canto da boca de Changbin subiu.

― Pra quê a pose defensiva? ― quis saber, apontando para as mãos dela. ― Ao contrário do que pensa, não subi quatro lances de escada para socar você ― gracejou, parecendo muito orgulhoso de si mesmo, apesar de manter a expressão estóica. ― Vim ver Jeongyeon.

Apesar de envergonhada e incomodada com a falta de respeito de Changbin, Jinjoo indicou com a  cabeça a sala da diretora.

― Vá em frente.

Changbin passou pela mesa dela e bateu à porta encostada de Jeongyeon antes de entrar. Imersa na tela do computador, ela ergueu os olhos para Changbin por apenas alguns instantes.

― Senta aí, preciso conversar contigo.

― Pode falar. ― Cansado, Changbin atirou o corpo contra o estofado macio do sofá em frente à mesa dela. Com um grunhido exausto, fincou os calcanhares sobre a borda da mesa da diretora, atrás do monitor. ― Que foi? ― resmungou, sem vergonha, ao vê-la juntar as sobrancelhas quando a mesa balançou graças ao peso extra.

― Não tem como ser mais folgado?

― Ah, tem sim ― disse, casual, desfazendo o nó do embrulho que estava agora sobre o colo. Eram três potes cor-de-rosa encaixadinhos. O primeiro tinha um lanche bem recheado, o segundo tinha arroz com kimchi e o terceiro macarrão. ― Obrigado pela comida.

― Jinjoo-ssi que preparou para você.

― ‘Tá de sacanagem?

― Não. Por que eu estaria… de sacanagem?

― Ela borra as calças sempre que me vê ― disse, ajeitando o kimchi no macarrão e no arroz para comê-los todos juntos. Deixaria o lanche por último.

― Há poucas pessoas que não borram as calças quando te veem, professor.

― É. Acho que sim ― concordou com um sorriso. ― Falando nisso, aconteceu uma parada bizarra pra caralho quando ‘tava vindo para cá. Eu ‘tava no banheiro do terceiro andar, que é sempre vazio, e decidi me dar uma limpada para tirar o suor. Um garoto chegou do nada, berrou meu nome inteiro, ficou uns segundos me encarando e saiu correndo ― contou a ela assim, facilmente, mandando para dentro mais macarrão. ― ‘Tá bom pra caralho.

― Você tomou banho no banheiro da minha escola? ― Diretora Jeongyeon parou de digitar para encará-lo, muito séria.

― Sim, porra. Eu ‘tava fedido. Mas não sei o que você ‘tá pensando, eu não lavei o saco na pia ou algo assim. Só dei uma refrescada. Nem fiquei pelado. Poderia, mas não fiquei ― brincou, oferecendo a ela um sorriso bonito.

Jeongyeon balançou a cabeça. Era Seo Changbin de quem estava falando, afinal das contas.

― Certo. Só não faça mais isso… ― aconselhou, um pouco confusa. ― Enfim, te chamei aqui para dizer que, primeiro de tudo, ótimo trabalho com a limpeza do portão, ficou novinho em folha. 

Changbin não respondeu. Continuou a comer, olhando para ela como se falasse “... o.k., continue”.

― As suas aulas começam amanhã. Às três e meia em ponto. Você estará lidando com crianças do ensino fundamental do Bora, uma escola que fica no final da rua. Eu vou acompanhá-lo na primeira aula só para ter certeza que tudo dará certo.

― Não sei como você pensou que isso pode mesmo dar certo, Jeongyeon-ah ― Changbin disse enquanto mastigava, apontando com os palitinhos para o rosto dela. ― É uma ideia estúpida. Você é estúpida.

― Não, é uma ideia genial. Eu te vi tocar, Changbin. Escutei você. Foi… incrível. Idêntico ao solo original. 

― Só porque eu sei tocar, não quer dizer que sei ensinar. Ainda mais para uns catarrentinhos de merda. 

Jeongyeon apoiou o queixo ao punho fechado.

― Não, nada disso. Professor Im me contou como você costumava compor música nas aulas dele. Você entende e gosta de música, Changbin. Acha mesmo que não sei que a única aula onde sua frequência está cem por cento é a de música?

― Era ― ele respondeu com certa amargura.

― Era porque você agrediu um aluno.

― Não vai perguntar o que o tal aluno fez para levar um socão na boca?

Diretora Jeongyeon ficou muito quieta. Ajeitou a posição de um lápis sobre a mesa, pigarreando.

― Sim, estou ciente.

― Você quase me expulsou daquela vez.

― Só não o fiz graças ao depoimento de Minyoung-ssi. Você sabe. Ela disse que você só o agrediu para protegê-la, então…

Rindo, Changbin cutucou o céu da boca com um dos palitinhos.

― Quando você vê um cara tocando uma garota sem a permissão dela, você não o cutuca gentilmente e pede para ele parar. Você quebra o nariz dele, Jeongyeon-ah ― disse como se estivesse a ensinando uma lição de vida importante. ― Mas professor Im é um grande bunda mole e decidiu me proibir de comparecer às aulas dele como se eu fosse o culpado.

Jeongyeon quis dizer que Changbin não quebrou apenas o nariz do garoto, mas não achou apropriado para o tom da conversa.

― Por que começamos a falar sobre isso, de qualquer jeito?

― Você começou.

Jeongyeon conteve a língua, que coçou para dizer “não, você quem começou”. Rindo, balançou a cabeça algumas vezes.

― De qualquer jeito, eu confio que será um projeto muito interessante e frutífero para você. Vai passar menos tempo em casa e vai poder utilizar todos os instrumentos da escola.

― É.

Diretora Jeong empurrou uma folha sobre a mesa.

― Aqui estão os nomes de seus aluninhos. Você pode usar como chamada.

― Quantos são?

― Quatorze.

― Você sabe que eu não vou decorar os nomes dele, não é? Ainda não sei como você pode pensar que é uma boa ideia.

― Porque é uma excelente ideia. Vou filmar tudinho ― contou, um pouco animada demais, sorrindo para um comilão Changbin. ― Estou muito feliz que você decidiu fazer a escolha certa.

― Fui coagido. Coagido ― Changbin corrigiu num tom mal-humorado, mas Jeongyeon pôde enxergar um sorriso crescendo no cantinho dos lábios dele. ― Você meio que me deixou entre a cruz e a espada, sejamos sinceros, sua velhota safada. E não ouse me dar esse olhar de cachorro chutado, porque só você acha que eu ter ficado é a “escolha certa”.

― Pensei que você fosse o tipo de cara que entre a cruz e a espada, se lança na espada ― ela disse, tocando o queixo, fingindo pensar.

Changbin odiava admitir, mas sentiu a nuca esquentar. Pigarreou, não olhando mais para Jeongyeon.

Rindo, diretora Jeong empurrou uma pasta sobre a mesa.

― Decidi que seria injusto deixar tudo nas suas mãos. Fui à frente e montei um plano de aulas para você. Sinta-se à vontade para modificá-lo, mas certifique-se de aprender a aula um para amanhã.

― Controladora como sempre ― gracejou, tirando dela uma risadinha. ― Qual a aula um?

― Aprender sobre o instrumento. 

― O.k. ― concordou, raspando a lancheira. ― Parece bom.

― Como você aprendeu a tocar violão? ― Jeongyeon indagou de repente.

― Por que quer saber?

― Por curiosidade. Não posso?

― Nenhum motivo especial… só me interessei porque é um instrumento bonito. Aprender a tocar guitarra foi só o próximo passo.

― Sério mesmo? Ooh, não sei o porquê, mas estou decepcionada.

Changbin fechou a lancheira. Com o sanduíche em mãos, colocou o embrulho em cima da mesa da diretora e confiscou a pasta.

― É só isso? Posso vazar?

― Sim, só isso. Nos vemos amanhã, às três em ponto ― ela reforçou, semicerrando os olhos como se o gesto fosse, de algum jeito, ameaçador.

Changbin fez que sim com a cabeça, levantando-se enquanto mordia o sanduíche. Acenou para Jeongyeon com os dedos, desdenhoso, abrindo a porta com o pé.

― Yah, Jinjoo-ah, não sabia que você tinha o dom para a cozinha ― disse à secretária, que não escondeu o rosto surpreso. ― Obrigado pela refeição, estava muito gostoso ― agradeceu com uma pitada de deboche, curvando-se teatralmente para a moça enquanto ia embora abanando o sanduíche.

― P-por nada? ― ela murmurou, acenando de volta.


 

Enquanto descia as escadas de volta ao primeiro andar, onde teria as duas últimas aulas do dia pós-almoço, Changbin notou o cheiro gostoso de novo. Parou no meio do passo, dentes fechados ao redor do lanche.

Era muito, muito gostoso. 

Terminou de descer, devagar, as escadas. Enfiou o que restava do sanduíche na boca, olhando bem ao redor. Àquele horário, só uns gatos pingados circulavam para fora do pátio. Se fosse alguém cheirando bem, Changbin conseguiria descobrir. Fungou o ar algumas vezes feito um cão policial, cabeça pendendo para a direita.

― Banheiro, de novo? ― resmungou para os próprios botões. À direita de onde estava, só havia os banheiros e uma sala de aula trancada.

Changbin pensou por um momento. 

Só podia ser uma garota.

Garotos não cheiravam bem, e mesmo se cheirassem, garoto algum emanaria o cheiro que Changbin estava sentindo. Era de difícil descrição; apimentado? Cítrico? Doce? Não dava para explicar. Só sabia que era incrivelmente gostoso. Era tão gostoso que as palmas de suas mãos coçaram de curiosidade; queria investigar e saber qual o rosto da garota que cheirava bem daquele jeito.

Mas Changbin não era a) um idiota e muito menos b) um pervertido.

Balançando a cabeça algumas vezes, forçou o seu corpo a seguir a direção contrária ao aroma que implorava tanto para ser sentido.






 

Presidente Moon Jaein faria um pronunciamento às quatro e meia. Como o senhor e senhora Yoo não tinham televisão, Changbin os convidou para assistir na sua casa.

― Changbin-ah, cheira a cigarro ― senhora Yoo reclamou assim que pisou no carpete, balançando a mão na frente do rosto.

Rindo, Changbin encostou a porta de novo, olhando o casal de idosos direcionarem suas perninhas ao sofá no meio da sala.

― Mas também, fuma como um trem ― senhor Yoo também reclamou, enrugando o nariz. ― Fumar também é suicídio, Changbin-ah. Quando morrermos daqui uns meses, Deus cobrará isso de você ― avisou como o velhote que era, apontando um dedo enrugado a ele.

― Sim, sim, é verdade. ― Changbin ignorou os comentários com certo desdém, ainda sorrindo. ― Vocês querem beber alguma coisa?

― Soju ― senhora Yoo disse.

― Soju? ― senhor Yoo e Changbin perguntaram ao mesmo tempo, mas com tons diferentes de voz; o Seo queria gargalhar e pegar logo duas garrafas para eles brindarem juntos, já o marido pareceu preocupado e chocado.

― Qual o problema com soju? ― Ela quis saber, cruzando os braços. ― Não estamos mortos ainda, podemos beber um pouco de álcool.

― Soju faz mal! Acha que é jovem como o Changbinnie? Não, nada de álcool para nós dois. Água está ótimo, Changbin-ah.

― Yah! Se eu quiser beber soju, eu bebo.

― Você pode beber, mas faz mal! Vai contra o que a nossa médica disse, e você sabe muito bem, sua velha caduca.

Enquanto os dois discutiam, Changbin despejou, discretamente, soju em dois copos ― para ele e para a vovó Yoo. Para o vovô, encheu o copo com água gelada. A sorte da velha era que a bebida era transparente. 

Ainda sorrindo muito, levou os três copos numa bandeja e sentou-se bem entre os dois com um falso grunhido cansado.

― Aqui, água geladinha para vocês. E pra mim, só pra mim, um pouco de soju ― disse, colocando os copos nas mãos dos dois.

― Obrigado, Changbinnie ― vovô agradeceu, bebericando o próprio copo. 

Vovó lhe deu um olhar atravessado, um desses recheados de conversas implícitas e travessura, antes de bebericar o copo “d'água”. Quando Changbin estava ao lado deles, até chegava a se esquecer que a Terra seria destruída em meses. Cientistas previam a colisão do asteroide para começo de janeiro, o que dava por volta de uns quatro meses restantes à vida terrestre.

Vovô e vovó Yoo não ligavam nem um pouco para o fim do mundo, o que era, se Changbin fosse sincero, bastante engraçado. Muito religiosos, eles diziam, bastante solenes:

― Deus sabe muito bem o que faz.

Changbin não podia ligar menos para Deus. Não queria pensar se acreditava ou não; se existisse, ótimo e se não existisse, ótimo também. Nada no mundo havia lhe dado uma razão para acreditar fielmente ou negar a sua existência. Só… não se importava.

Ele queria dizer, com muita emoção e convicção, que também não ligava nem um pouco para o fim do mundo. Mas Changbin ligava um pouco, não tanto quanto outras pessoas, mas ele não conseguia ter o mesmo pensamento que os Yoo. Não ligava para a própria morte, mas o fim da Terra lhe incomodava.

O que era uma grande merda. Seria tão mais fácil ser como os dois: não expectante, mas simplesmente conformista. Não tinha o que fazer. Titã era grande demais, e mesmo que uma bomba atômica fosse lançada contra o asteroide, não mudaria nada. Estávamos à mercê do universo.

O telejornal acabou e o rosto do presidente apareceu na tela da tevê. Changbin e os senhores Yoo emudeceram, olhos presos à imagem plácida do presidente.

― Ele é tão bonito ― vovó sussurrou para Changbin.

Diferente de muitos países ao redor do mundo, a Coreia do Sul havia adotado uma abordagem direta e honesta sobre a questão. Iríamos morrer, todos nós, muito em breve ― tínhamos duas formas de encarar o fato: afundar o país em balbúrdia e desordem e agirmos como se cada segundo fosse o último, ou pacífica, tranquila e dignamente, vivermos nossos meses finais. Eles não podiam parar todo o país; não podiam abandonar suas posições porque nada mais fazia sentido. Nada disso. Havia pessoas que dependiam de caminhoneiros, médicos e agentes voluntários para sobreviver.

Algumas pessoas haviam perdido a cabeça. Nunca houve tantos suicídios como agora. Nunca houve tantos assassinatos como agora. As partes pobres do país mantinham-se expostas e ameaçadas; pessoas invadiam casas e cometiam crimes uma com as outras a sangue frio.

No entanto, nunca houve tanta solidariedade como agora. Comunidades carentes e recheadas de idosos vinham sendo protegidas por pessoas que buscavam algum significado ― ou validação ― nesses últimos meses. A justiça era só uma pequena chama que vivia nas mãos da população, mas, conjunta, queimava viva e intensamente.

Presidente Moon Jaein vinha todas as quartas à televisão. Com calma, falava como as coisas estavam andando e, melhor ainda, como deveriam andar. Ele parecia ser como vovô e vovó Yoo ― não se importava com a morte, mas tinha empatia o suficiente para entender que algumas pessoas se importavam e, como líder, mantinha-se neutro e reconfortante.

Changbin não se sentia nem um pouco reconfortado. Entre as vísceras, no mais intrínseco ponto, um vazio sem nome crescia sem parar. Caso não morresse a qualquer instante graças a uma bala perdida ou a facadas, podia ficar tranquilo porque em janeiro era certo que bateria as botas.

Levantou-se num pulo do sofá, esfregando a mão livre na coxa.

Vovô Yoo observou seus passos trêmulos.

― Changbin-ah, não tenha medo.

― Não estou com medo ― respondeu, lavando o copo.

― Você não consegue mentir. Está bem óbvio que está com medo, sim.

― Não é medo, é só… Não consigo explicar.

― Eu sei ― vovó Yoo disse, colocando a mão enrugada sobre o peito. ― Sei bem como é. A única coisa que eu temo mais que tudo é sentir dor, coisa que eu sei que muitos de nós sentirão. E eu rezo, todos os dias, para que Deus tenha misericórdia de nós.

― Exceto pedófilos ― vovô Yoo resmungou ―, esses podem queimar e sofrer para sempre.

Rindo, Changbin apoiou o quadril à pia.

― Nossa sorte é que Titã cairá na Ásia primeiro, huh? ― Changbin fez aspas ao dizer “sorte”. ― Já estipularam tudo. Vamos virar panqueca por volta das três da manhã em janeiro. Imagino que será bem rápido.

― Você sabe quanto tempo vai levar para a Terra toda ser destruída? ― Vovó quis saber.

― Dezesseis minutos ― o Seo disse, cruzando os braços. ― Talvez menos. Quer dizer, é difícil saber. Eles estão comparado com os dados e estipulações anteriores. Não será a primeira vez que a Terra será destruída por um asteroide. Já aconteceu seis vezes antes, mas nunca com um tão grande como Titã.

― Será que a Terra vai quebrar?

― Provável que sim, vovô. Como eu disse, já aconteceu antes de um asteroide colidir com a Terra. Numa dessas colisões, destroços enormes voaram ao espaço e criaram a Lua ― resumiu tudo por cima, batucando nos próprios bíceps. ― O que acontecerá com a Lua, será?

― Procure na internet e nos conte depois ― vovó pediu, juntando os olhos de contas. ― Oh, que interessante, mal posso me conter… É nessas horas que gostaria de ser um alienígena e observar tudo de camarote ― admitiu com um tom animado, suspirando. ― Deus sabe o que faz.

― Acho que a senhora é a única animada para o fim do mundo, vovó.

― Não vai ter nada mais interessante para se fazer nesse dia, certo? É até engraçado, porque será de madrugada. Não vou aguentar assistir a chegada do Titã… talvez no máximo vou acordar no meio da noite para fazer xixi e boom, morrer.

― Acho que não vou precisar tomar o remédio de pressão nesse dia ― vovô apontou com um sorriso enorme. ― É muito ruim e me dá náuseas ―  explicou a Changbin, ainda sorrindo muito.

― Ah, então quer dizer que você pode não tomar os seus remédios, mas eu não posso tomar o meu soju?

― Você quer tomar soju agora! Eu só quero parar os remédios quando o mundo acabar. Literalmente. Há uma grande diferença.

― Sim, é verdade! Os seus remédios servem para mantê-lo vivo! O que eu quero é beber um pouco de soju para ficar alegre. Há uma grande diferença, de fato.

― Parem de brigar ― Changbin pediu, risonho, balançando a cabeça algumas vezes. ― Como estão casados há quase sessenta anos?

― Brigamos desde jovens ― vovô Yoo contou, virando o quadril para olhar para Changbin. ― Essa velha é teimosa e já aprontou muito comigo.

― Você é muito mais teimoso que eu ― vovó protestou.

― Eu?! Você é muito mais!

― Parem ― Changbin pediu de novo, deixando risadinhas chocadas ecoarem pela casa. ― Uma horinha de trégua, por favor. Depois vocês podem voltar a discutir sobre quem é mais teimoso.

― É ele. ― Vovó fingiu sussurrar.

― É ela ― vovô sussurrou, também.

Os dois olhavam com expectativa para Changbin.

― Vocês vão me enlouquecer. ― foi o que o garoto disse.

― Sabe, Changbinnie, mudando de assunto… Estávamos falando sobre você esses dias ― vovó começou, sentando-se melhor no sofá. Na televisão, o telejornal retornou após a finalização do discurso motivador do presidente. Vovô Yoo aproveitou a deixa para desligar o eletrodoméstico, já ele sabia que a conta de luz era cara esses dias.

― Sobre mim? ― Changbin, devagar, aproximou-se dos dois. Sentou-se à mesinha de centro, olhando-os com atenção. ― O que esses velhos fofoqueiros discutiram sobre mim, huh?

― Você vai morrer sozinho? ― vovô Yoo perguntou. Não era de modéstias ou jeitos figurativos. Martelava onde deveria martelar.

Changbin não soube o que dizer.

Os dois perceberam.

― Quer dizer, querido… ― Vovó acolheu a mão áspera de Changbin nas próprias. ― Estamos casados há cinquenta e nove anos. Eu era mais nova que você quando me casei, para você ter uma ideia. Já faz muito, muito tempo. Quando o seu passado é maior que o seu futuro, você começa a perceber algumas coisas. Por exemplo, agora, não tenho arrependimentos ou desejos… já fiz tudo o que queria. Morrer ao lado desse velho teimoso é uma honra, mas não conte isso a ele. ― Fingiu sussurrar. ― Estar ao lado de quem você ama neste momento é essencial. Você não tem ninguém? Ninguém que te faça se sentir bem e, mesmo em meio à morte datada, feliz e satisfeito? Você não ama ninguém?

― Eu sei que há alguém, Changbinnie ― vovô também disse, desta vez com um tom ameno e amoroso. ― Sei porque eu reconheço um olhar saudoso e apaixonado de longe, e você carrega esse olhar quando olha, principalmente, para o seu radiozinho vermelho. Desde que você chegou à vizinhança, eu noto o seu olhar.

Vovó assentiu ao lado do marido. 

Changbin alternou as pupilas nervosas entre os dois; com a garganta repentinamente seca e mãos trêmulas, não teve nem a coragem de mentir para eles.

― Há, sim. Há alguém.

Eles não esconderam a animação.

― Isso é ótimo! Onde essa pessoa está? ― vovó perguntou, apertando a mão de Changbin.

― Não aqui ― Changbin respondeu.

― Está morta? ― Vovô quis ter certeza; o tom de Changbin não dava muita abertura à conclusões.

O garoto sentiu o coração apertar só com a possibilidade.

― Não, não está morto.

― Então… por que você não está com essa pessoa?

Changbin abriu de novo a boca, mas som algum saiu.

― Eu… Eu não posso.

― Ora, mas por que não?! ― Vovô jogou as mãos para cima.

― Por uma porção de motivos. Não vale a pena pensar nisso agora.

― Changbinnie… como não? Eu não sei o que aconteceu para vocês não estarem juntos agora, mas você não percebe que essa é a hora para mudar isso? Você tem pouco tempo… não faça isso consigo mesmo. Não negue estar ao lado de quem você ama, se é o que você deseja. Você vai se arrepender tanto caso passar os seus últimos meses aqui, mofando e sozinho ― vovó disse, inclinando-se para frente. ― A morte é datada e nada é impossível. Não agora.

Changbin se levantou, instintivamente limpando o rosto com as mãos trêmulas. Sem olhá-los, andou pela sala em círculos, a mera conversa disparando adrenalina para dentro de seu corpo.

― Vocês não entendem.

― Sim, somos velhos e burros, mas queremos entender ― vovô pediu, usando o braço do sofá para levantar. ― Explique para nós.

Changbin parou de andar. Com a cara fechada e mãos apoiadas na cintura, respirou fundo algumas vezes, de costas para os dois.

― O que vocês diriam se eu dissesse que, primeiro de tudo, o meu alguém é um cara?

― Um cara? ― vovô repetiu.

― Sim, seu velho surdo, um cara ― vovó disse antes mesmo que Changbin abrisse a boca de novo. Ela estapeou as costas do marido, juntando as sobrancelhas. ― Changbinnie gosta de garotos.

― Não de garotos. Eu só gosto desse garoto ― corrigiu, mordendo os lábios ao voltar a encará-los. 

― É por isso que você não pode estar com ele? Porque são dois garotos? 

― Porque ele foi embora, vovó. Ele foi embora, sem me avisar, achando que eu não o amava. Eu não sei se vocês repararam, mas eu tenho o hábito de estragar as coisas. Já faz dois anos que não nos vemos, mas eu tenho certeza que ele me odeia agora e, pior ainda, acha que eu o odeio ― confessou tudo ao casal de idosos, que ouviram bem quietinhos.

Depois de um tempo em silêncio, vovô decidiu perguntar:

― Você sabe onde ele está agora?

― Em Jeju.

― Você o deixou ir embora sem mais nem menos? Sem explicar a ele que o ama de volta?

― Eu enviei inúmeras mensagens. Liguei diversas vezes. Ele não queria papo comigo. Queria me esquecer logo, cortar o mal pela raíz, e eu entendo. Provavelmente ele achava que eu queria dar uma desculpa para tê-lo de novo. Quando eu era mais jovem, eu não… Eu nunca fui esse Changbin. ― Apontou, desdenhoso, para si mesmo. ― Eu era… Eu era encrenqueiro, não respeitava ninguém. Eu acreditava que era a pior pessoa do mundo, mas não aceitava o sentimento e fingia que eu era melhor que todos. Ele me deu felicidade e eu não sabia o que fazer com ela, porque fazia muito tempo desde a última vez que fui feliz. Quando entendi que ele ficaria melhor sem mim, desisti de procurá-lo.

― Você ainda o ama? ― vovó perguntou num sussurro.

― Demais.

― Ah, Changbinnie... se você o ama, você deve desfazer o mal-entendido. Você já pensou o quanto ele deve estar sofrendo? Pensar que é odiado pela pessoa que ama deve ser horrível. Não é justo- não é justo para você e muito menos para ele. — Vovô foi direto ao ponto, juntando as sobrancelhas. ― E, escuta aqui, estou ofendido por achar que nós seríamos homônimos.

― Homofóbicos ― vovó corrigiu baixinho.

― Homofóbicos ― o senhor rapidamente disse, clicando os dedos. ― Em cinquenta e dois, um soldado gay salvou a minha vida logo após norte-coreanos executarem minha família toda. Se não fosse por ele, nós não estaríamos tendo essa conversa. Não pense, nem por um segundo, que nós te enxergaríamos diferente.

― Ele está certo, Changbin-ah. Você é jovem e forte. Não pode deixar para lá algo tão importante! Pense no que eu te disse. Realmente quer morrer aqui, sozinho? Tenho certeza que não será uma morte tranquila. Será recheada de arrependimentos. Não faça isso consigo mesmo.

A cabeça de Changbin estava rodando. Claro que pensava nele todos os dias de sua vida, mas nunca havia pensado seriamente em ir encontrá-lo. Sonhava todas as noites com os seus lábios carmesim e sardas respingadas pelo rosto inocente, o sorriso energético ao dizer, baixinho, “Changbin hyung”. Temia tanto encontrá-lo e não saber o que dizer; temia olhá-lo nos olhos e desmontar inteiro, porque era isso o que ele fazia com Changbin.

Não havia escudo no mundo capaz de protegê-lo de Lee Yongbok.

A mera perspectiva de encontrá-lo abalava cada estrutura molecular; desmontava cada expressão ensaiada, arruinava cada falsa sensação de segurança. Yongbok provavelmente odiava Changbin agora ― já havia passado muito tempo e o Seo acreditava que era impossível alguém segurar emoções positivas por ele por mais que alguns sonhos.

Certamente Felix não seria exceção.

― É melhor esquecermos isso ― Changbin disse, abaixando o olhar. ― Ele provavelmente não gosta mais de mim. Provavelmente está com alguém que é legal e não fode tudo a cada instante.

― Como você pode ter tanta certeza?! Garoto, não seja bobo! ― vovô quase berrou, colocando as mãos enrugadas na cintura. ― Você não sabe o que uma pessoa pensa de verdade até perguntar a ela. Não torture a si mesmo desse jeito.

― Procure por ele ― vovó incentivou, juntando os punhos. ― Diga que o ama! Vá atrás dele, Changbinnie.

Changbin começou a rir.

― Está me dizendo para ir à Jeju?

― Sim, estou!

A vida era mesmo um show de stand-up.

― Transporte não anda funcionando, vovó. Todos os dias eles tacam fogo em ônibus.

― Oh, você está considerando? ― Ela cobriu o rosto, feliz.

― Yah, não seja por isso! Você pode usar minha bicicleta ― vovô ofereceu. ― Simples assim.

― O senhor está dizendo para eu pedalar até Jeju?

― Por que não? Você é forte e esbelto ― vovó concordou com a ideia. ― Não deve demorar demais. Talvez uma semana, mas o que é a vida senão uma grande aventura?

― Não. Quer saber? Chega. Vocês dois, podem ir embora ― Changbin disse, abanando as mãos em direção à porta. Apressou-se para destrancar tudo, apontando para o jardim da frente. ― Vamos, circulando.

― Está bravo porque esfregamos umas verdades na sua cara ― vovô Yoo apontou com um sorriso sacana. Mesmo assim, respeitaram a vontade do garoto e, devagarinho, andaram até a porta. ― Não tenha medo, Changbinnie. Não tem pior jeito de morrer.

― Sim, sim, entendi. Circulando, circulando. Devagar para não cair e quebrar a bacia.

Antes de sair, vovó Yoo acariciou as bochechas do garoto.

― Sei que chegará a uma conclusão esperta, Changbinnie.

Changbin forçou um sorriso, acompanhando os passos dos dois de perto.

― Ah, inclusive… já ia me esquecendo. Qual é o nome dele? ― vovó perguntou, virando gentilmente o corpo para olhá-lo enquanto escutava a resposta.

― Lee Yongbok.

― Lee Yongbok ― ela repetiu com um sorriso. ― Vou adicioná-lo ao meu caderninho de orações. 

Mordendo a risada que quis escapar, Changbin fez um shoo-shoo com as mãos.






 

Changbin não estava particularmente feliz. Por mais que soubesse que todo o bagulho das “aulas” não era papo-furado e que deveria comparecer de verdade, ainda era uma merda. A professora Yang falava sobre a guerra da Coreia lá na frente, mas a atenção do Seo não poderia estar mais distante da fala animada da mulher ― não era pessoal; até gostava dela, mas ele não poderia ligar menos para história.

Com olhos pesados, folheava a pasta que Jeongyeon havia preparado no dia anterior. Era recheada de inutilidades que não ajudariam, nunca, um iniciante ― ainda mais crianças. Estava bem claro que aquele plano de aulas havia sido feito por uma pessoa que não entendia nada de música.

Furiosamente, rabiscou as folhas impressas com marca-textos e canetas pretas. Marcava “inútil”, “razoável” e “o.k.” em cima dos tópicos que Jeongyeon havia separado, marcando no verso das folhas coisas que realmente importavam e em ordem.

Se fosse para fazer aquela merda, que fosse direito. Não iria deixar pirralho nenhum fofocar o quão ruim Changbin era como professor.

Quando terminou de revisar todas as folhas, ainda restavam alguns minutos de aula; a maioria dos alunos terminava de anotar pontos importantes, tirando dúvidas com a gentil e animada professora Yang. Era uma pena que tudo sobre a matéria dela não passasse de um grande pé no saco e que não teria utilidade alguma. Nunca.

― Antes que saiam da sala, não se esqueçam do simulado semana que vem, hein?! ― ela gritou quando o sinal bateu e todos se levantaram, bagunceiros, para o almoço.

Changbin deixou a cambada sair toda antes se colocar para andar.

― Ah, Changbin-ssi. ― A voz da professora atropelou seus planos. Virando-se devagar, ele a encarou com uma sobrancelha erguida. Não estava muito para conversas. ― Desculpa te abordar desse jeito, mas não pude deixar a oportunidade escapar. Diretora Jeong me contou que você começará a dar aulas de violão, certo?

― Certo.

― O meu filho me contou que um amigo próximo dele está interessado em aprender violão, também. Teria alguma chance de você incluí-lo às aulas? Tudo o.k. se você disser não ― ela rapidamente disse, abanando as mãos. ― Não quero sobrecarregá-lo ou algo assim.

 Changbin deu de ombros.

― Por mim, foda-se desde que ele chegue no horário.

― Sério? Oh, que maravilha! Obrigada, Changbin-ssi ― agradeceu com um sorrisão, acariciando o ombro do garoto.

Changbin balançou a cabeça, dando meia volta para sair. Professora Yang não evitou dizer, um pouco culpada:

― Changbin-ssi, seria bom se você passasse na enfermaria… Parece que está doendo bastante―

Changbin acenou para ela sobre o ombro, sem se virar.

Sabia que o seu rosto estava bem destruído. Tinha espelho em casa, no fim das contas. Até cogitou não sair do quarto até pelo menos o olho desinchar, mas se recusava a dar esse gostinho a… Bom, não sabia mais. Jeongyeon? O seu pai de merda?

Foda-se.

Não estava nem aí.

Nem estava doendo tanto assim, era só não encostar. Não precisava de ninguém para ajudá-lo. Não precisava ser visto como um fracote que não podia suportar um pouco de dor.

Seo Changbin podia suportar qualquer coisa.

Com uma cara de quem comeu e não gostou, fez seu caminho por estudantes tumultuando o pátio.

― Vocês viram o rosto do Changbin sunbae? ― Jisung foi o primeiro a trazer o assunto à tona. Ainda muito chocado, sentou-se em frente a Felix e Jeongin à mesa, sua bandeja fazendo um estalo ao entrar em contato com o mármore da superfície.

― Parece que ele levou uma surra ― Jeongin comentou, mastigando rodelas de torrada. 

Felix, daquela vez, não estava com os olhos enfiados num mangá. Mantinha-se atento à figura sinistra e, de certa forma, calorosa que era Seo Changbin de costas. Mal podia acreditar que havia esbarrado com ele ontem. Não havia tido forças para falar sobre o ocorrido com Jeongin e Jisung ainda, e não sabia se algum dia conseguiria falar sobre a vergonha imensa que assombraria o restante de seus dias.

― Pobrezinho. ― Acabou murmurando.

Jeongin e Jisung olharam-no muito rápido.

― Woah… o amor é assustador ― Jeongin opinou, esfregando os braços algumas vezes. Havia ficado todo arrepiado.

― Dá para imaginar o estado do outro cara? ― Jisung teorizou, desembrulhando o seu lanche natural.

― Será que está doendo? ― Felix voltou a falar.

― Por que não pergunta a ele hoje às três e meia? ― Jeongin casualmente sugeriu, afundando sua rodela num pouco de molho.

Felix piscou algumas vezes.

― Perdão?

― Inscrevi você nas aulas dele.

Jisung engasgou, tossindo furiosamente.

Felix não conseguiu respirar por uns segundos.

― Tecnicamente, pedi para a minha mãe perguntar a Changbin sunbae se havia como encaixar um amigo meu nas aulas dele. E ele disse sim. Então…

Jisung ainda estava morrendo aos fundos.

Felix ainda não conseguia respirar. 

― Você… Jeongin, você… Você está brincando, certo? Não pode estar falando a verdade.

― Claro que estou falando sério. Pensa que eu brinco em serviço? Eu não falei o seu nome e tenho certeza que Changbin sunbae não vai ligar se você não for, mas mesmo assim, ele estará esperando alguém. Você decide se vai ou não, hyung.

Felix ainda estava muito, muito chocado. Jamais pensou que Jeongin faria algo do gênero― e, pior ainda, jogar toda a decisão para cima das mãos trêmulas, ansiosas e indecisas do Lee.

― Acho que é uma boa você ir ― Jisung opinou depois de se recuperar. ― Mas, woah, Jeongin-ah… incrível.

Os dois compartilharam um high-five sonoro. 

― Eu não posso… Não vou conseguir ― Felix choramingou, torcendo as mãos no tecido da camiseta.

― Por que não?

― Eu tive um encontro embaraçoso com o Changbin sunbae ontem.

― Como é? 

― Ele estava no banheiro do terceiro andar, só com as roupas de baixo. Quando eu o encontrei daquele jeito, acabei soltando um berro… e chamei o nome dele completo, sem honoríficos ― admitiu, metendo a testa contra o tampo da mesa. ― Eu sou uma vergonha. 

― Ele não vai se lembrar da sua cara ― Jisung confortou Felix, acariciando os fios macios do cabelo do garoto. ― É sério. Só vá com confiança. Vai dar tudo certo.

― Sim, hyung! Vá com confiança. Você consegue. Estaremos torcendo por você. Fora que, se você não for agora, vai ser estranho se decidir comparecer à próxima aula, não acha? Arranque o band-aid de uma vez.

Felix ficou pensando sobre o assunto durante as aulas da tarde. Com a cabeça recheada de mirabolantes jeitos de desaparecer do planeta Terra por completo, viu a si mesmo passar por diversos estágios emocionais. Até raiva de Jeongin chegou a sentir em determinado momento, mas logo o sentimento ruim foi substituído por certo apreço; caso não fosse pelo Yang, Felix jamais teria uma oportunidade de se aproximar de Seo Changbin. 

Não que… Não que estivesse esperando por qualquer coisa. Na realidade, esperava o mínimo. Só queria… estar perto dele. Observar  seu rosto sem a cara feia. Só isso.

Mastigando a ponta dos próprios dígitos, Felix seguiu, com passos incertos e o corpo todo muito quente, à sala de música no segundo andar quando a sua última aula do dia terminou. O corredor parecia menor do que usual, e a placa em frente à sala abriu um sorriso enorme para ele. Venha, entre e desmaie.

 Felix olhou para os lados. Nenhum aluno entraria junto com ele. Todos que estavam tendo aula até agora marchavam escadaria abaixo, rindo e festejando porque mais um dia havia terminado. Ajeitou os óculos no rosto, sentindo as palmas das mãos suarem feito culpadas. Cerrando os punhos, levou a mão direita à porta. Não bateu. Engoliu em seco e umedeceu os lábios.

Não. Não, era uma má ideia; Changbin o reconheceria na hora― reconheceria sua cara idiota e o chutaria para bem longe dos instrumentos e é isso aí, a vida de Felix estaria arruinada.

Bem quando pensou em dar meia-volta e ir embora o mais rápido que podia, a porta da sala de música foi aberta. Não simplesmente aberta, mas arreganhada com tamanha violência e brusquidão que a maçaneta abriu um buraco na tinta da parede oposta. O barulho havia sido seco e ensurdecedor― um tiro.

Felix quase desmaiou, e dessa vez de verdade. Sentiu todos os pelos de seu corpo arrepiarem, pescoço afundando nos ombros e boca aberta num grito assustado. Deu uns bons passos para trás, abraçado à mochila de forma defensiva.

Seo Changbin apertava o batente com, aparentemente, a força de mil guerreiros espartanos. Os olhos estavam arregalados e, apesar do rosto fodido, para Felix ele estava lindo como todos os outros dias.

― Você ― Changbin disse, estendendo a mão para agarrar o colarinho à mostra do Lee. Mole feito gelatina e sem pretensão de abrir a boca, Felix deixou o corpo no piloto automático quando o Seo usou a força que tinha para puxá-lo para mais perto. Era isso; Changbin socaria o rosto de Felix e quebraria todos os ossos de sua cabeça― parecia uma boa forma de morrer.

O soco nunca veio.

No lugar disso, Felix deixou escapar um gemido entregue (e meio erótico, muito bem, obrigado) quando Changbin enfiou o nariz na curva de seu pescoço macio (uma observação feita pelo próprio Changbin) e fungou a região sensível como um cão farejador. O nariz curioso percorreu uma linha indefinida da garganta à clavícula, e quando chegou ao osso proeminente, Changbin acabou soltando uma exclamação satisfeita.

― É você. É você quem tem esse cheiro ― disse, afastando-se apenas para olhá-lo melhor nos olhos.

Felix havia parado de respirar há um tempo. Ainda petrificado, só conseguiu ficar encarando Changbin de volta, olhos brilhantes de lágrimas que queriam saltar para fora num instinto primitivo. Changbin não havia soltado seu colarinho ainda.

― Espera. Não é você o garoto que gritou ontem? ― Changbin o reconheceu quase instantaneamente, soltando devagar o material macio da camiseta do garoto que ia contra todos os seus conhecimentos sobre garotos: cheiroso para caralho. ― Estava parado na frente da porta. então por acaso é o cara que a professora Yang disse que viria para participar das aulas, também?

Pela primeira vez em um tempinho, os neurônios de Felix voltaram a se comunicar.

― S-sim, Changbin sunbae ― sussurrou, rosto pegando fogo e coxas trêmulas. Felix definitivamente colapsaria a qualquer instante.

 Changbin fez uma careta.

― Sunbae? Quando gritou meu nome antes como se sua vida dependesse disso, não usou honorífico nenhum ― disse, estranhando a situação. ― E ainda ‘tá me olhando com essa cara esquisita. Você por acaso tem algum problema?

Sem falar mais nada, Changbin puxou Felix para dentro da sala de aula vazia. Era isso― não havia mais escapatória. Yongbok andou a duras penas pelo piso, não sentindo direito as pernas. Se não fosse a mão de Changbin apertando o seu ombro, teria com certeza perdido todo o equilíbrio e caído no chão feito o panaca que era.

― Senta aí ― Changbin disse, empurrando Felix contra uma cadeira. Tremendo muito, o Lee juntou as mãos sobre o colo, contendo a vontade de ajeitar os óculos no rosto. Com os lábios mordidos, podia sentir o olhar tempestuoso de Changbin sobre toda a sua postura encolhida e frágil. ― Posso assumir que se você ‘tá nervoso e tremendo, não é porque nunca tocou violão, certo? E sim por minha causa?

Sim… e não, era o que Felix queria responder. Era sim por conta de Changbin, mas não do jeito que ele estava pensando.

― N-não é isso, sunbae ― respondeu, a voz não passando de um sussurro quase inaudível. ― Você me faz nervoso…

― Eu te faço nervoso? ― Changbin riu, amargo. ― Por quê? Eu não vou bater em você… Só se você me der uma boa razão. Você vai me dar uma boa razão para eu bater em você? ― Decidiu mexer um pouco com o pobre coitado. Changbin já havia visto tipos com aquele: inofensivos, inteligentes e tímidos. Mas, ele tinha que admitir, nunca havia conhecido alguém tão cheiroso na vida.

― Eu sei que não… Eu não tenho medo de você, sunbae ― decidiu esclarecer as coisas, desta vez com a voz um pouco mais firme.

― Se não fica nervoso porque me teme, fica nervoso porque gosta de mim? ― Pela primeira vez em algumas horas, Changbin esboçou um sorriso genuíno.

― N-não! ― Felix negou rápido demais.

Changbin estava sorrindo de orelha a orelha quando o Lee ergueu o olhar.

― Estou só brincando contigo. Sabe, você cheira muito bem. O que é?

Felix automaticamente coçou o pescoço. Era como se ainda pudesse sentir a presença cálida de Changbin ali, fazendo cócegas na derme sensível. Limpou a garganta algumas vezes, um suor importuno descendo por suas têmporas.

― Minha avó faz sabonetes, xampus e coisas assim para vender ― explicou, tentando parar os tremores. ― V-você deve ter sentido meu sabonete.

― Que é?

― Canela, jasmim e outras coisas que ela não me contou.

― Mas, cara, não é só o sabonete. ― Changbin inclinou o corpo, enfiando o nariz no cabelo de Felix. ― Você todo cheira bem. 

Isso nunca tinha acontecido antes com o Lee; derrotado e recheado de desespero, não quis pensar nas liberdades que Changbin tomava com as pessoas.

― Obrigado, sunbae… ― murmurou, coração pronto para afundar no corpo ao sentir o garoto dos seus sonhos (os mais vergonhosos deles) ali, cheirando o seu cabelo. Ainda parecia um tomate gigante com pernas, boca presa numa fina linha.

― Antes que os pirralhos cheguem, qual o seu nome? ― Changbin se afastou para se sentar à mesa do professor, pronto para rabiscar à caneta o nome de Felix embaixo dos nomes impressos da lista de “chamada” de Jeongyeon.

― Felix ― respondeu sem pensar muito, brincando com a barra de sua camiseta.

― Como é? ― Changbin, por algum motivo, começou a rir. ― Nem fodendo que seu nome é Felix.

― V-você quer minha identidade? ― A pergunta saiu num murmúrio, pronto para caçar o documento na bolsa, caso necessário.

Changbin riu ainda mais.

― Não, não, eu acredito ― corrigiu, tampando o rosto para rir. ― Só é muito feio, perdão.

― Feio?!

― Pra cacete ― confirmou, a boca toda puxada num sorrisão genuíno de quem era muito honesto. ― Não dá para usar esse nome, eu vou rir sempre que disser. Você é… Qual a palavra? ― Ele estalou os dedos algumas vezes, tentando puxar na memória. ― Misturado?

― Sou metade coreano e metade australiano ― Felix respondeu, sentindo a nuca quente.

― Você deve ter um nome coreano, então. Qual é?

― O meu nome coreano que é feio.

― Mais feio que Felix? Duvido muito.

― Lee Yongbok ― o garoto respondeu, sentindo-se contrariado.

― Ah, Lee Yongbok ― Changbin repetiu, sorrindo. ― Muito melhor que Felix ― comentou, anotando Lee Yongbok abaixo dos nomes impressos com a sua caligrafia feia. 

Felix estava um pouco chocado.

― Não acredito que acha Yongbok mais bonito que Felix, sunbae.

― Infinitas vezes mais ― Changbin rebateu, apontando para o garoto com sua caneta. ― Deveria gostar mais do seu nome coreano. Ele é bonito. Tenha orgulho dele, Yongbok-ah, porque é só assim que eu te chamarei daqui para frente.

Felix nem soube o que falar; apenas assentiu, claramente ressentido, o que era engraçado caso somado a todo o seu visual. Envergonhado, vermelho, tímido e agora ressentido porque o nome que mais gostava havia sido julgado feio pelo cara que sustentava uma paixão vergonhosa.

Felix ainda nem acreditava que estava mesmo ali, conversando com Changbin. Daquele ângulo, mais de pertinho, Felix conseguia observar melhor os hematomas no rosto do Seo; eram coloridos, e não do jeito bom. O olho esquerdo estava vermelho e, logo embaixo, um corte vivo atravessava a horizontal o seu rosto. Felix queria acariciar o cabelo dele, beijá-lo onde doía e vê-lo adormecer sussurrando vai tudo ficar bem agora.

Jamais aconteceria.

Seo Changbin não parecia ser o tipo de pessoa que deixava algo tão íntimo acontecer.

E Felix compreendia.

Às três e meia em ponto, a diretora Jeong Jeongyeon apareceu à porta com duas filas de crianças atrás dela. Felix, agora menos envergonhado e com uma injeção de bom senso rodando suas veias, levantou-se para cumprimentá-la com uma reverência polida. As crianças não deveriam ter mais de dez anos, todas espelhando a reverência de Felix ao entrarem, uma por uma, na sala. Logo, elas se estabeleceram, ruidosas, nas cadeiras ao redor de Felix, olhando para os vários instrumentos pregados à parede dos fundos.

Diretora Jeong chamou Changbin para uma conversa particular às pressas.

Felix não quis ser enxerido, mas não conseguiu não olhar para onde os dois falavam baixinho à porta.

― O que é isto no seu rosto? ― ela indagou num sussurro ríspido.

― Você deveria ver o outro cara ― Changbin respondeu, mas não havia nenhuma dica de divertimento no seu tom de voz.

― Quem fez isso com você?

― Segundas-feiras são dias de uísque e cocaína lá em casa ― Changbin explicou com um sorriso sarcástico, mãos enfiadas nos bolsos. ― Woah, como explicar? Papis fica nervosinho, às vezes, entende? Onde descontar senão no filho preferido dele?

― Isso não pode mais acontecer! Você tem que denunciá-lo e agora.

Changbin mordeu os lábios.

― E ir morar onde? Só uns meses para eu fazer dezoito, o.k.? E aí eu mando a bunda dele para a cadeia. Tenho muitas provas documentadas das merdas que ele faz, Jeongyeon-ah, então segura o seu piti por um tempo. Ou você acha que quer prendê-lo mais do que eu? Huh? Venho esperando minha vida toda por isso.

― Eu vou ficar louca ― ela admitiu, esfregando as têmporas. ― Louca, louca mesmo. 

― Você já é louca. Agora fica quieta, não quero ouvir mais sobre esse assunto de merda. Entra logo porque eu tenho mais um aluno e você ‘tá me fazendo passar vergonha.

Ela deixou metade da preocupação longe. Ergueu rápido a cabeça, avaliando a sala de aula cheia que contava com a presença de um rapaz do segundo ano que ela conhecia bem; Felixie, da Austrália. Amigável e ingênuo, ele conversava com as crianças que estavam sentadas atrás dele, rindo de alguma coisa que eles já compartilhavam.

Changbin esperou Jeongyeon entrar para fechar a porta. A ação fez com que as crianças parassem de falar, focadas no novo professor.

Um garoto com orelhas meio tortas ergueu a mão. Changbin nem havia aberto a boca ainda.

― Professor ― ele chamou, com a mão ainda erguida.

― Hm?

― Por que o seu rosto está assim?

― Por que você quer saber? Quer que o seu fique igual?

Diretora Jeong e Felix limparam a garganta ao mesmo tempo.

― Crianças, boa tarde ― a mulher se colocou à frente de Changbin, abanando as mãos. ― Bem-vindos à primeira aula de vocês. Este é o professor Seo Changbin, e ele muito gentilmente ofereceu as habilidades com instrumentos de corda para ensiná-los como tocar ― anunciou, animada, batendo algumas palmas envergonhadas em seguida.

 As crianças, no entanto, entraram no embalo e bateram palmas também.

― Então… devemos começar, professor Seo? ― Ela devolveu a conversa para o garoto, afastando o corpo. 

― É ― Changbin concordou, deixando transparecer o quão delinquente ele era, na verdade. ― Meu nome é Changbin. Se quiserem me chamar de professor, tudo bem, mas podem me chamar pelo nome ou de hyung ― avisou, correndo os olhos pela sala. ― Ou oppa também ― acrescentou ao pousar as pupilas na única menina da sala. Ela sorriu. ― Eu sou péssimo com nomes e já aviso que não vou decorá-los, então vou chamá-los pelo o que vocês estão vestindo ou uma característica física. Não é bullying se é verdade ― completou, sentando-se à beira da mesa.

Jeongyeon queria matá-lo. Changbin sentiu o olhar assassino do outro lado da sala porque, rindo, disse:

― Aprender a acolher suas características físicas e não se incomodar quando outras pessoas as apontarem é a melhor coisa que vocês podem fazer. Confiem em mim, vai poupar uma grana da terapia depois.

Felix estava em dúvida, deveria rir ou chorar?

― Vou fazer a chamada ― Changbin anunciou, trazendo o papel para perto. ― Lee Yongbok.

Felix ficou surpreso com o seu nome sendo chamado do nada. Não era o último da lista?

― Aqui ― sussurrou, levantando a mão.

Changbin chamou os quinze nomes de baixo para cima na ordem alfabética. Não decorou o rosto de nenhum deles, exceto o da garota e o do garoto de orelhas estranhas que o perguntou sobre o seu rosto. Dentro de sua cabeça, decidiu chamá-los de Chiquinha (porque ela estava usando marias-chiquinhas) e Orelhas. 

Parecia bom o suficiente.

Changbin tinha uma aura intimidante e algo dizia às crianças que não era bom desobedecê-lo. Por isso, a sala caiu num silêncio profundo enquanto Changbin ajeitava o violão no colo. Ele havia colocado uma cadeira bem no meio da sala, onde todos poderiam enxergá-lo sem problemas.

― Nossa primeira aula é: conhecendo o instrumento ― anunciou, vendo quando mãozinhas nervosas correram para escrever o título da matéria. ― Vou dissecá-lo para vocês devagar, então prestem atenção e anotem. Não vou escrever na lousa, então prestem atenção de verdade. Quero que, no final da aula, vocês desenhem um violão e apontem todas as partes que aprenderem no desenho. O melhor desenho ganha… ― E, com o resmungo de um velho ao exercitar a coluna, Changbin tirou de dentro da mochila um pacote enorme de Pepero.

As crianças soltaram uma longa e animada exclamação surpresa, algumas delas batendo palminhas competitivas.

Diretora Jeongyeon mal podia acreditar no que seus olhos e ouvidos testemunharam. O queixo estava no chão, impressionada até a queratina dos fios de cabelo. Acreditava sim no potencial de Changbin, mas transformar a aula numa competição com direito a prêmio era um movimento incrível. 

― Sim, sim, eu sei. Mas os desenhos têm de ser incríveis. Se não forem, vou levar o pacote para casa e comer sozinho. Eu sou bem exigente ― acrescentou, apontando para todos eles. ― O.k., vamos começar.

Caso Felix fosse cem por cento sincero, não estava muito animado para todo o aspecto da “aula”. Não que não levasse Changbin a sério, mas era difícil acreditar que um cara que não estava nem aí para nada pudesse ser tão dedicado. Estava impressionado consigo mesmo e com Changbin.

Com certo orgulho, anotava e absorvia todas as informações picadinhas que Changbin dava sobre o violão. Ninguém tinha dúvidas, porque ele explicava de um jeito bem fácil e cheio de conhecimento. Quase animado.

O desenho de Felix provavelmente era o pior de todos ― dando uma olhada no desenho do garoto ao lado, viu que ele até fazia profundidade no instrumento. Rindo de nervoso, ele só esperava que os termos estivessem corretos.

― Certo. Falamos sobre tudo ― Changbin concluiu, deslizando os dedos pelo braço do violão. ― Agora, vou falar umas curiosidades para vocês.

― Oh, curiosidades? ― Àquela altura, até Jeongyeon estava empolgada e absorvida na aula.

― É. Primeira curiosidade: as cordas de violões antigões eram feitas com tripas de animais ― disse aquilo com animação demais.

― Ewww ― Chiquinha protestou, enrugando o rosto. ― Por quê?

― Porque humanos são bem burros. Camisinhas eram feitas com intestino de porco antes, então dá para ver um padrão. ― Quando todos eles exclamaram mais “ewwss”, Changbin prosseguiu: ― Há relatos que instrumentos como esses surgiram na Grécia antiga, e eles foram os tataravós dos violões que conhecemos hoje. Eles eram conhecidos como chelys e, com o passar do tempo, foram transformados no que hoje conhecemos como lira. Na época da grande Roma, a lira era chamada de guitarra romana, e praticamente desapareceu junto com a decadência do império.

― Woah… ― Felix disse, baixinho. ― Aula de história junto?

― Mas é claro, Yongbok-ah ― Changbin rebateu, apontando para ele. ― A aula de hoje é conhecendo o instrumento, então eu devo falar para vocês a origem dele também, certo?

― Professor! Professor! ― Orelhas voltou a falar, abanando. ― Se a lira desapareceu, como temos o violão hoje?

― Porque, no século oito, na Arábia, um instrumento muito parecido com os violões atuais surgiu. Ele era chamado de alaúde e tinha um formato de pera bem simbólico. Não sei se vocês já estudaram isso, mas a Península Ibérica foi invadida e os europeus roubaram o alaúde, passando então a chamá-lo de guitarra mourisca. Eles alteraram o tamanho e a caixa de ressonância que vemos hoje, parecida com o número oito. ― Changbin bateu algumas vezes no violão sobre o colo. ― A única diferença é que, na época, no lugar de um único buraco, eles entalhavam diversos furinhos pela caixa de ressonância.

Todos eles pareciam muito impressionados. Changbin deixou o violão de lado, batendo uma palma seca.

― Hora de avaliar os desenhos de vocês. Não vou aceitar erros, até porque tirei muitas dúvidas ― apontou, meio sádico, começando a andar. Changbin pegou o caderno de Felix para observar o que ele tinha feito. As crianças que sentaram atrás dele e puderam observar o desenho de antemão, Começaram a dar risada.

― Woah, Yongbok-ah…

 Felix juntou as mãos, pedinte.

― Desenho não é meu forte, sunbae.

― Sim, estou vendo ― concordou, escrevendo algo no alto da folha. ― Mas você acertou todos os nomes e não se esqueceu de nada. Muito bem. ― Dito isso, colocou o caderno de volta sobre a mesa.

Sorrindo, Felix deu uma espiada na anotação de Changbin. Tinha um grande 70 seguido por: mas só porque você é muito cheiroso.

 Felix rapidamente dobrou a folha para nenhuma criança ver o que Changbin havia escrito. Ruborizado e sem palavras, sentiu os olhos arderem e a garganta fechar; nunca superaria ser elogiado por ele.

― Picasso, Picasso... ― Changbin disse ao garoto atrás de Felix. ― Gostei do desenho e tudo está nomeado corretamente. Cem! ― anunciou orgulhoso, escrevendo o número acima do desenho. ― Forte candidato ao Pepero, huh?

Os treze alunos seguintes foram avaliados com caos e bagunça ― Orelhas não parava de rir, embaraçado porque Changbin havia classificado o seu desenho como proibido para menores e dado -99 por, segundo ele, atentado ao pudor. Todos já entenderam que Orelhas seria o alvo do Seo dali em diante.

― Eu só pensei em ser diferente e desenhá-lo de cabeça para baixo! ― ele tentou explicar, agarrando-se às vestes de Changbin enquanto passava mal. Enquanto isso, a diretora cobria o rosto, vermelha e com os olhos marejados de tanto dar risada.

Com ela, Changbin havia sido igualmente misericordioso.

― Jeongyeon-ah, como desenhista você é uma ótima diretora ― disse, escrevendo 10 pelo esforço sobre a folha. ― E com isso finalizamos! ― interrompeu o chororô de perdedora dela, apressando-se lá para a frente dos alunos. ― Depois de analisar com amor e carinho o que vocês fizeram, decidi que há dois vencedores. Como vocês vão dividir o Pepero não é problema meu ― já foi se adiantando, pegando o saco da mochila e o segurando rente ao peito. ― Você, Listradinho, e você, Adidas ― indicou os garotos pelas camisetas que vestiam.

Eles ficaram um pouco em choque, mas aceitaram felizes e de bom grado o prêmio.

― Woah, é muito pesado! ― Listradinho reclamou, tendo dificuldades para segurar a embalagem. ― Obrigado, professor.

― Obrigado, professor! ― Adidas agradeceu num tom bem mais animado. Os dois curvaram-se para Changbin, que apenas abanou e os mandou de volta para os seus lugares.

― Bom, é isso. Acabou. Podem ir embora ― falou num tom desdenhoso, sentando-se em sua mesa e guardando as próprias coisas.

― O quê? Mas já? ― Jeongyeon verificou o relógio de pulso. Faltavam quatro minutos. ― Irá liberá-los com quatro minutos faltando, professor?

― Sim. Vão logo para eu poder ir para casa.

Agora que passaram um tempo juntos, eles entenderam que Changbin tinha um jeito doce-amargo; ríspido, mas de propósito. Não deveria ser chegado a chegar. Recheadas de um respeito imaginável nos primeiros minutos de aula, as crianças agradeceram, curvaram-se e saíram com muito mais do que entraram. Elas todas acabaram dividindo o saco de Pepero no caminho, Changbin ouviu falar depois.

― Felixie, eu fiquei tão surpresa quando te vi! ― diretora Jeong admitiu, acariciando as costas suadas do garoto. ― Fico feliz que tenha decidido participar, sabia?

Ao contrário de Changbin, que podia falar bem com todos porque não respeitava ninguém (nem a si mesmo), Felix não sabia o que fazer quando um professor ou, no caso, a diretora do colégio em que estuda vinha conversar. Muito tímido e recheado de mãos trêmulas, abriu um sorriso sincero, mas ansioso.

― Foi ideia de Jeongin, diretora. E-eu achei bem legal.

― Não ficou com medo? ― Ela quis saber, baixinho.

― Eu não tenho medo de Changbin sunbae ― falou, também baixinho.

― Não? Não mesmo?

― É, não mesmo. Eu sempre o achei legal. Ele é meio carrancudo, mas é legal.

― Eu também acho ― ela concordou, arrumando a franja doida de Felix. ― Obrigada por vir.

― Obrigado por não mandá-lo embora ― sussurrou, odiando ter dito aquilo logo em seguida. Parecia apaixonado e meloso.

― Yah, parem de fofocar e movam suas bundas daí ― Changbin xingou da porta, chacoalhando as chaves. ― Andem logo, porra, tenho uma parede para pintar.

― Ah, é verdade ― a mais velha concordou, juntando as mãos. ― Que bom que você é tão dedicado às suas obrigações.

Felix rapidamente saiu da sala seguido pela mulher e, desconfortavelmente, observou Changbin trancá-la. Deveria dizer adeus e ir embora? O que deveria fazer? Quieto, amaldiçoou sua ansiedade e timidez por impedi-lo de fazer coisas óbvias e normais.

Changbin lançou as chaves para Jeongyeon, que as agarrou no ar.

― Vá indo na frente, velhota. Vou ter um minuto de prosa com Yongbok.

Felix congelou no lugar. Changbin queria o quê?

― Certo, é claro ― ela concordou com um sorriso, acenando para eles. ―  Vejo você amanhã, Felixie.

Felix curvou-se para ela numa despedida silenciosa. Antes que pudesse agir, seu braço fora recolhido por Changbin sunbae e, logo em seguida, os dois estavam descendo as escadas silenciosas. As turmas da tarde há tempos haviam chegado e o intervalo delas seria em alguns poucos minutos. Changbin ainda estava quieto, rumando com Felix escadarias abaixo.

― Sunbae? Tudo bem? V-você precisa de ajuda?

― Não. 

Changbin também não sabia o que estava fazendo. Quando chegaram ao pátio, a lata de tinta azul-marinho, jornal e o rolo já estavam à disposição. Ignorando a tarefa, Changbin seguiu com Felix ao portão.

― Vejo você amanhã ― despediu-se do nada, soltando Felix.

― Por que me trouxe pelo braço? ― perguntou num fio de voz.

― Não sei. Tchau.

Felix não conseguiu dizer tchau. Estático, observou Changbin tirar a camiseta e manobrar o rolo de tinta para dentro da lata. Sem palavras e sem saber o que fazer, decidiu deixar o Seo quieto por um tempo. Despediu-se do segurança à porta e, com o coração na mão, foi para casa.


 

Changbin não conseguiu dormir naquela noite. Encarando o teto em meio à escuridão absoluta, conseguia ouvir o próprio coração batendo contra a caixa torácica. Inquieto e ansioso, remexia-se abaixo das cobertas.

Quando pensava em Yongbok e no aroma aprazível que ele carregava, o seu peito apertava, doía e torcia, e o seu coração fazia uns saltos estranhos. Yongbok era um cara bonito, mas não era para tanto. Ou era?

― Vai dormir, caralho ― disse para si mesmo, forçando os olhos a ficarem bem fechadinhos. Não funcionou. A cabeça, à deriva, teimava em pensar em Yongbok e Changbin não fazia ideia do porquê. Inferno!


 

Jeongin ainda tentava absorver as novas informações.

― Então, ele na realidade é um ótimo professor, ficou cheirando você e te levou ao portão quando a aula acabou?

Felix assentiu.

― Ele é estranho ― Jisung opinou, olhando para eles. ― Certo? Estranho. Bem estranho. ― E, então, Jisung se inclinou para fungar Felix. ― Você cheira muito bem, sim, mas o jeito que você descreveu… ele parecia um viciado em drogas.

― É. ― O Lee deu de ombros. ― Não sei. Ainda estou bastante mexido.

Jeongin ajeitou-se melhor sobre o banco.

― Ele fez um bom trabalho ontem. Não dá para ver as pichações ― comentou, olhos focados nas paredes externas do banheiro. ― Ele está no banheiro masculino agora, finalizando o interior. Se, quando ele sair, vier para falar contigo… ― Jeongin deu de ombros. ― Quero os créditos, já que fui eu quem possibilitou a junção do casal.

― Não seja iludido ― Felix contrariou, coçando os braços. ― Isso nunca vai acontecer.

Eles conversavam por um tempo antes de serem rudemente interrompidos:

― Yongbok-ah! ― alguém chamou atrás de Felix.

Arrepiado, o australiano virou devagar a cabeça para acompanhar a caminhada tranquila de um cansado Changbin. Novamente seminu — mas desta vez com a camiseta amarrada na cintura —, ele vinha com os braços ocupados com as ferramentas de pintura. Sujo da cabeça aos sapatos com respingos de tinta branca, apontou com o queixo a lancheira ainda pela metade de Felix.

Jisung e Jeongin nem respiraram quando Changbin parou ao lado de Yongbok, inclinando-se na direção do mais novo.

Felix recolheu macarrão na colher e, muito envergonhado, levou à boca de um tranquilo Changbin. 

― Hm ― ele fez, assentindo, ao mastigar. Eles interpretaram como está gostoso.

― Bom trabalho, s-sunbae ― Felix gaguejou, evitando observar os músculos expostos.

― Hm-hm ― Changbin voltou a fazer, piscando para Felix e rumando às escadarias.

Felix encarou a colher como se ela tivesse assassinado sua avó.

― Estou chocado ― Jisung anunciou, abraçando a si mesmo. ― Chocado. Completamente chocado. Não foi uma alucinação, certo? Não estou ficando louco, estou?

― Não foi uma alucinação ― Jeongin afirmou, sorrindo de orelha à orelha.

Felix embrulhou a colher num guardanapo, incapaz de olhá-la por muito tempo.


 

Todos os dias depois desse foram idênticos. Changbin terminava de arrumar a cagada que havia feito, achava Felix em meio aos outros estudantes, pedia um pouco de comida e ia embora. Era realmente incrível como ele ficava íntimo das pessoas rápido, sem escrúpulos ou vergonha. Teve um dia que ele chegou a fungar a cabeça de Felix, mandando para dentro de seu corpo o aroma que, para ele, era indescritível.

Àquela altura, os meninos já conseguiam reproduzir as tatuagens de Changbin num guardanapo.

― É um dragão chinês ― Jeongin insistiu, desenhando o formato na folha.

― Mas o estilo é japonês! É um Shenlong do mal ― Jisung resmungou, desenhando o próprio.

― E o Shenlong é o quê? Um dragão chinês, seu idiota.

― E a outra é uma kumiho ― Felix comentou, alheio às discussões deles. Só conseguia pensar que teria de encará-lo hoje, de novo, às três e meia. Malditas aulas semanais de violão, Felix acabaria louco daquele jeito.

― Felix pode perguntar a Changbin sunbae o que é, de verdade, o dragão nas costas dele ― Jisung sugeriu, batucando na mesa com a caneta. ― Ainda acho que seja japonês.

― É chinês.

― Japonês.

― E se for coreano? ― Felix mudou um pouco a perspectiva.

― Nah, é japonês. Mas Jeongin é teimoso demais para aceitar a derrota.

Rindo, Felix juntou as coisas para voltar à sala. Changbin havia dito que, nesta aula, eles iriam entrar em contato com o violão, aprender um pouco sobre as notas e iniciar a compreensão de partituras. Felix estava bem animado ― não via a hora de ver as crianças e rir das piadas catastróficas de Changbin. Mesmo que morresse de vergonha e fosse uma tragédia social, ficava muito mais do que feliz ao compartilhar pequenos momentos com o mais velho.


 

― Sua mão está errada ― o Seo dizia, observando as mãos delicadas de Felix sobre o instrumento. Diferente de terça passada, o seu rosto estava sem nenhum hematoma proeminente e sangrando. Ainda estava meio roxo e aparentemente dolorido, mas nada muito assustador. ― Se você entortar assim, vai doer. Relaxa o pulso ― aconselhou, recolhendo a mão esquerda de Felix nas próprias. Chacoalhou-a um pouco, voltando a posicioná-la sobre o braço do violão. ― Isso. Melhor.

Felix queria dizer que não estava surtando. Mas ele estava. Cem por cento. Tinha receio que algo como aquilo pudesse acontecer numa aula futura, mas era pior do que todos os seus pesadelos juntos ― Changbin estava perto demais, respirando, tocando e olhando para Felix como se ele fosse a coisa mais importante do mundo inteiro.

Surpreendentemente, Changbin era muito gentil com as crianças. Posicionava os dedinhos corretamente no instrumento, rindo com elas, mas nunca delas. Felix não conseguia não suspirar ao olhá-lo tão focado, prestativo e gentil.

― Agora que as mãos de vocês estão certas, vamos tentar produzir som. Devagar e com força, passem a palheta sobre a corda. ― E, para demonstrar, fez o que havia acabado de dizer. A nota ressoou pela sala, clara o suficiente. Quando eles tentaram fazer, no entanto, risadas foram compartilhadas. ― É porque vocês estão com esses dedos de geleia! Mais força! ― Changbin insistiu, apertando o dedo de uma das crianças que havia falhado para demonstrar. A nota saiu daquela vez. ― Viu? Tem que ter pulso firme.

― Aaah, professor, mas dói ― Chiquinha choramingou.

― Só no começo. Depois de pegar o jeito, fica fácil. Não se cobrem muito, não agora. É só a segunda aula ainda. Isso é só para vocês terem ideia e a aula não ficar muito teórica e abstrata.

― Professor?! ― Listras chamou, um pouco animado demais.

― Sim?

― Poderia tocar algo para a gente? ― pediu com olhinhos brilhando. Todas as crianças gostaram muito da ideia, porque de repente a sala toda foi invadida com “por favor, por favor, por favooorrr”s adocicados. 

― O que vocês querem que eu toque?

― Guitarra! ― Orelhas sugeriu com uma animação contagiante.

― Guitarra? Sério? Tudo bem. Por sorte Bora é rica o suficiente para ter uma Ibanez, então acho que consigo tocar um pouco de Steve Vai para vocês.

Jeongyeon e Felix eram os únicos que conheciam Steve Vai. Enquanto Felix deixou o queixo cair, Jeongyeon soltou uma exclamação meio vergonhosa.

― Só os velhos ou pessoas que gostam de rock conhecem esse cara ― Changbin alfinetou Jeongyeon, sorrindo ao pegar a guitarra no fundo da sala.

 Felix, naquela hora, aprendeu que não havia limites para a atração humana. Changbin dedilhava aquela guitarra como se sua vida dependesse disso para fazer com que Tender Surrender saísse do melhor jeito possível sem a ajuda de outros instrumentos. E, mesmo assim, sozinho, foi uma das melhores coisas que Felix escutou na vida. Parecia que o instrumento vibrava nas suas mãos, as notas esparramando-se pela sala feito ondas, os antebraços contraindo-se, expondo veias que Felix não havia reparado antes.

 Em outras palavras: Felix quase teve uma ereção. O que era, caso fosse analisado, bem plausível ― eles estavam falando de Steve Vai, no fim das contas.

E aqueles dedos ásperos, recheados de uma cinesia violenta que já era conhecida por Felix, transformaram-se bem na frente de seus olhos. Já não eram dedos que machucavam ou queriam machucar; eram dedos habilidosos, que mostravam uma paixão e devoção até então desconhecidas.

O transe acabou quando uma salva de palmas muito bem-vinda foi mais alta que seus pensamentos atormentados. Changbin sorriu, colocando a guitarra de lado.

― Isso foi incrível! Jamais conseguirei fazer o mesmo. ― Orelhas mudou de humor bem rápido, tirando de Changbin negações de cabeça.

― Não é esse o pensamento ― Changbin corrigiu. ― Você acha que consigo tocar bem por quê? Anos e anos de prática. Se você deseja se tornar bom em alguma coisa, aí está o segredo: prática. Você tem que gostar muito e praticar muito. Por isso mesmo eu disse para vocês não se estressarem com a aula de hoje, vocês terão muito tempo para se estressarem ainda.

Felix estava embaraçosamente apaixonado.

No final da aula, quando as crianças seguiram o mesmo protocolo de agradecerem pelo dia e saltitarem para fora da sala acompanhadas por Jeongyeon, Felix arranjou coragem e, preparando-se para a queda, aproximou-se de Changbin.

― Sunbae, posso te perguntar uma coisa? ― pediu, mãos trêmulas atrás das costas.

Changbin terminou de trancar a porta, produzindo um “hm” afirmativo que veio da garganta.

― Nas suas costas… é um dragão japonês? Ou chinês?

― Não sei ― Changbin respondeu, encarando Felix. ― Importa?

― É muito bonito ― Felix emendou, olhando para os pés dos dois. ― Meu amigo diz que parece um Shenlong do mal.

― Só porque está nas minhas costas, é do mal? ― Changbin circundou o pescoço de Felix com o braço, puxando o garoto para caminharem juntos.

― Não é isso… é só que… o desenho é taciturno.

― É verdade. Mas não é do mal. 

Felix não respondeu. Caminharam, em silêncio, ao portão. Já havia virado hábito caminharem juntos. E, desta vez, Changbin saiu junto com Felix.

― Já terminou tudo, sunbae?

― Sim ― Changbin respondeu, ainda com o braço ao redor do garoto. ― Impressionado?

― Você é bom com limpeza ― Felix gracejou, ganhando um cutucão nas costelas.

― Sabe, voltando ao dragão nas minhas costas, minha mãe costumava me contar uma história. Era sobre um garotinho que tinha a habilidade de se transformar num dragão. Genérico, eu sei, mas eram as histórias dela daquele tempo que mantém vivo até hoje ― contou num fio de voz, sem nem ao menos saber o porquê de ter explicado isso a Felix.

― E o garotinho por acaso se chamava Changbin? ― Felix tentou, baixinho, observando a face concentrada do Seo.

― Eu gosto de pensar que sim ― ele admitiu, abrindo um daqueles sorrisos genuínos. ― Toda noite, ela me contava uma aventura diferente. Tinha dias que o dragão resgatava uma princesa no alto da torre, aprisionada por um príncipe que revelou-se um bárbaro. Outro dia voávamos sobre o mar azul, cortávamos nuvens imensas, enfrentávamos tempestades e comíamos cookies em seguida. Ela gostava de me levar a um mundo que hoje não consigo acessar, mesmo que queira muito. 

Felix sentiu o coração afundar. Pela primeira vez, estava vendo uma expressão completamente nova de Changbin.

― A única coisa que eu tenho dela é o seu radiozinho vermelho ― disse, fazendo um retângulo com os dedos. ― Ouvíamos muito rock juntos. Ela tinha o melhor gosto musical de todos… e era a melhor guitarrista que eu já conheci.

― Foi por causa dela que você começou a tocar guitarra?

― Sim. Queria que ela estivesse aqui ainda para tocarmos juntos.

― Sinto muito, sunbae.

― Pode me chamar de hyung.

― Oh.

― É sério. Sei que gosta muito de honoríficos, mas fico estranhando quando me chama de sunbae, principalmente agora que te contei algo tão pessoal.

Eles se sentaram ao banco vazio do ponto de ônibus.

― Entendo… hyung ― Felix murmurou, não olhando para o mais velho.

― É. Melhor assim ― chegou a um acordo com os próprios neurônios, estapeando gentilmente os ombros do mais novo. ― Não é sempre que abro meu coração ― gracejou, dando tapinhas no próprio peito.

― Bom, hyung, sempre que quiser abrir o coração para mim, eu vou escutá-lo com o maior prazer ― esclareceu, ruborizando um pouco. ― Doeu muito para tatuar?

― Não tanto assim. ― Ele deu de ombros. ― Já senti dores piores.

 Felix mordeu os lábios.

― Eu… eu entendo, hyung.

― Não sei se entende, Yongbok-ah ― rebateu com um sorriso amargo, desviando a atenção do garoto para dar uma boa olhada na avenida. Felix suspirou. Recostou à proteção de vidro do ponto, olhando para um nada à frente. Roboticamente, começou a desabotoar a camisa da escola.

― Eu entendo, Changbin hyung ― voltou a falar, chamando de novo a atenção de um Seo pronto para discutir. Não foi o que aconteceu. Por um momento, Changbin quis perguntar o porquê dele estar desabotoando a camisa, mas logo seus olhos percorreram a extensão de pele morena e um pouco suada à cicatriz circular e enrugada bem sobre o coração.

Changbin reconheceria aquela marca em qualquer lugar. Reconheceria, porque também tinha algumas idênticas no corpo.

― Eu entendo, hyung ― Felix sussurrou, pressionando os olhos. Estava… vulnerável. ― Entendo mesmo.

― Nem fodendo ― Changbin deixou escapar numa lufada surpresa de ar, agarrando um dos pulsos de Felix. ― Nem fodendo. Não você. Não você. Que merda. Quem fez isso contigo? ― Changbin tomou o rosto de Felix nas mãos, não parando de olhar para a cicatriz. 

― Já faz um tempo, hyung. Quando me mudei com a minha avó para cá, ninguém nunca mais me machucou, mas… mesmo assim, eu entendo.

― Quem machucou você?

 Changbin já havia sentido raiva antes, mas era diferente agora. Quem teve a coragem de queimar Yongbok? O garoto parecia frágil o suficiente para quebrar com um beliscão, mas mesmo assim tiveram a covardia de machucá-lo.

― Foi antes de eu vir para a Coreia ― contou, um tanto embaraçado graças às mãos de Changbin ainda em seu rosto. ― Tinha uns garotos mais velhos que não gostavam muito de mim por eu ser mestiço. Eles diziam... que minha pele era boa para apagar cigarro.

O corpo de Changbin agiu sozinho. Saltou do banco, andando de um lado para o outro em pura cólera.

― P-por isso eu sempre admirei você, hyung ― deixou escapar, lábios bem pressionados um contra o outro enquanto agarrava o banco. 

― Que merda você tá falando agora? ― Changbin continuava a andar. Precisava dispersar um pouco da adrenalina que havia tomado conta de seu corpo, ou então quebraria na mão algum patrimônio público idiota, como a lixeira ao lado.

― Você nunca deixa ninguém maltratar você ― disse, olhando para a pose ofensiva do Seo. ― Eu sei que você nunca começa brigas. Você só… se defende. E protege quem não consegue se defender também, mesmo que ninguém nunca fale sobre isso.

― Ninguém nunca protegeu você? ― quis saber, agora, batendo as mãos nas coxas. ― Era você contra uns arrombados de merda, é isso? As pessoas olhavam e deixavam acontecer?

― Eu entendo por que nunca ninguém falou nada, hyung.

― Mas eu não entendo.

― Elas poderiam se tornar o próximo alvo.

― E sua mãe? Seu pai?!

― Eles… eles são complicados ― explicou, desviando o olhar. ― Nunca fomos muito próximos. Eles sempre trabalharam muito e nunca tiveram tempo para mim, por isso só tomei coragem para contar para eles quando eu pensei que iria morrer se não fizesse nada.

― Porra! Não faz sentido! E essa merda dessa direção da sua escola? A gente olha para essas escolas estrangeiras e pensamos woah, como eles são incríveis. Meu pau. Eu simplesmente… eu não consigo pensar em ver uma cena de abuso e ficar quieto sobre isso. Não dá! E eu tô com vontade de matar não só os arrombados que machucavam você, mas também todos que olharam e não falaram nada.

Felix estava surpreso de verdade. Não imaginava que Changbin reagiria assim, mas uma parte sua gostou. E muito. Seo Changbin se importava.

― Hyung, não precisa ficar tão nervoso. Está tudo bem, faz muito tempo. Nada dói mais.

― Não. Não fala essa merda. Não fala essa merda perto de mim. ― Changbin, então, se aproximou e encarou Felix fundo nos olhos. ― Quem passa por umas situações dessas não se esquece. Nunca. Não diminua o que você passou só porque faz tempo. Não é “nada demais”. Não está tudo bem também. ― Muito puto, cutucou o peito de Felix algumas vezes. ― Você é forte pra caralho, mas não fuja do que aconteceu. Pode xingar esses arrombados, detona eles; faça tudo, mas não diga tudo bem. Se você disser tudo bem, eu vou parecer um lixo quando te disser que só estou esperando fazer dezoito anos para me livrar do monstro que se livrou da minha mãe, entende? Ninguém vai reclamar, porque todos os meus vizinhos são iguais aos arrombados que viram você sofrer e não falaram nada; pelo menos eles vão servir para alguma coisa: vão poder testemunhar ao meu favor e provar que eu apanhava todos os dias.

Felix começou a chorar. A fala de Changbin o atingiu como um caminhão bem onde doía mais. Sem pensar muito, impulsionou a si mesmo nos braços de Changbin, apertando-o num abraço que nocauteou o ar dos dois ao mesmo tempo. A melhor parte do abraço é que, sem perceber, Changbin estava abraçando Felix de volta, suportando o corpo tão ferido quanto o seu nos braços fortes, mas gentis.

Algo mudou naquela tarde.

Dentro dos dois. Entre os dois. Os dois.






 

Changbin só podia estar louco. É. Louco. Louco de pedra.

Sentado à beirada da cama, encarava a imensidão do mundo lá fora pela varanda. Era hoje. Mais especificamente, essa madrugada: Titã apareceria no céu, finalmente. Na Península Coreana, apareceria no céu noturno. A princípio, não passaria de um brilho a mais na noite estrelada. Mas ele ainda estaria lá. Por enquanto, não passaria de um olá; breve, tímido, mas presente. Com o passar dos dias, o brilhozinho ganharia tamanho numa velocidade que, segundo os cientistas, acharíamos assustadora. Logo, logo, Titã ocuparia uma parte do céu toda para si,

Changbin só conseguia imaginar como seria para a parte do mundo que enxergaria o asteroide de dia. Quando ele, de fato, começasse a se aproximar e ocupasse o horizonte. Não seria fácil. Não será fácil olhar para aquilo que matará você, sem sombras de dúvida. 

Changbin suspirou. Resignado, ligou o rádio.


 

“Pensei um pouco. Héracles enlouquecera e chacinara a família; Teseu perdera a noiva e o pai; os filhos de Jasão e a segunda esposa foram assassinados pela primeira; Belerofonte matara a Quimera, mas ficou aleijado ao cair do dorso de Pégaso.

— Não conseguiria. — Ele sentou-se inclinado para a frente.

— Não, não conseguiria.

— Sei disso. Os deuses não permitem que sejamos famosos e felizes. — Franziu o cenho. — Vou lhe contar um segredo.

— Conte-me. — Eu adorava quando ele se comportava assim.

— Eu serei o primeiro. — Segurou minha mão e pousou-a na sua. — Jure.

— Por que eu devo jurar?

— Porque você é a razão. Jure.

— Eu juro — murmurei perdido nas cores luminosas de seu rosto, na chama de seus olhos.

— Juro — ecoou ele.

Permanecemos imóveis por um momento, nossas mãos se tocando. Ele riu.

— Acho que agora comeria o mundo inteiro cru!”


 

Não dava. Changbin voltou a desligar o rádio.

 Não dava.

 Changbin só podia estar louco.

― É, endoidei ― concluiu ao dar mais uma boa olhada na mochila de viagem sobre a cama. Bem ao seu lado.

Estava quase completa. Só faltava algumas coisinhas e é isso aí, Changbin estava pronto para partir. Paciente, aguardava a resposta de Han Jisung. Quer dizer, podia entendê-lo ― não é todo o dia que os mortos voltavam à vida. Jisung ainda deveria estar meio chocado. Ele só precisava de tempo. Ultimamente, as coisas estavam assim: as pessoas precisavam de um pouco de tempo para aceitar o destino imutável. Precisavam de um pouco de tempo ao conversarem com alguém que há tempos não aparecia. Precisavam de tempo.


 

Han Jisung [02:04 am]

Ainda não acredito que é você. De verdade. Woah.


 

  Changbin sorriu. Pobre Jisung.


 

Changbin Sunbae [02:05 am]

É. Faz um tempinho. Como você está?

 

Han Jisung [02:05 am]

Não vou mentir e dizer que estou bem, sunbae.

Mas acho que estou melhor que muitas pessoas.

Ainda muito triste, já que não terei tempo para fazer nada. Nosso futuro é agora, e isso me assusta.

E o sunbae?

 

Changbin Sunbae [02:06 am]

Eu sei. É uma merda.

Sinto muito.

Para falar a verdade, é complicado. Não sei ainda dizer o que eu sinto. É confuso. Tenho inveja de quem não está nem aí. Eu estou um pouco nem aí, mas é diferente agora.

 

Han Jisung [02:08 am]

Dá para ver que você mudou, sunbae.

 

Changbin Sunbae [02:09 am]

Não dá para ficar moleque para sempre. Uma hora você para de odiar tudo.


 

Eles conversaram um pouco. Nada muito grande ou importante; só o básico. Onde estavam, se tudo estava seguro, se já havia decidido o que fazer nos instantes finais. Jisung disse que sua família soltará fogos, tomarão sopa de alga, como se fosse o aniversário de alguém, e dormirão.

Changbin, então, decidiu conversar com ele sobre o que queria, de fato, falar. Lee Yongbok.

Jisung pediu para eles se falarem no telefone.

― Hey, Jisung.

― Changbin sunbae, é bom conversar com você de novo, mas não quero envolver Felix nisso.

― Eu só quero saber se… ele está bem ― admitiu, afundando o rosto na mão desocupada. Changbin era um idiota.

― Sunbae, não sei se você tem o direito de perguntar. Para o que quer saber?

― Porque eu quero encontrá-lo.

 Jisung ficou quieto do outro lado.

― Você me disse que ainda está em Seul. Felix está em Jeju agora. 

― Eu sei. Eu… eu quero ir até onde ele está.

― Não tem nada funcionando agora.

― Eu estou indo de bicicleta. A pé, se necessário. Eu só quero me encontrar com ele. Uma última vez.

― Mas… por quê?

― Porque eu o amo, Jisung. Sempre o amei. Desde que encontramos pela primeira vez. É tão difícil acreditar?

― Sim, é muito difícil acreditar. Depois de tudo, eu… não sei ― Jisung gaguejou, claramente confuso. ― Você nunca disse que o amava.

― E eu me arrependo todos os dias disso. É por isso que eu quero me encontrar com ele e dizer o que eu sinto, de verdade. Mesmo que ele não queira nem saber. Eu vou entender. Eu só preciso resolver de uma vez. É injusto deixar as coisas como estão.

Jisung, de repente, encerrou a ligação.

Changbin também conseguia compreender. Com um suspiro, encarou a tela do celular por um tempo. Para quem poderia pedir ajuda agora?

Quando Changbin pensou em procurar por Jeongin, o telefone vibrou em suas mãos.


 

Han Jisung [02:56 am]

Jeju, samyang dong, jiseok 10gil, 13-14, apartamento 4

Não faça com que eu me arrependa, sunbae.


 

Dizer que Changbin berrou de alegria seria eufemismo. Caiu da cama, tirando dois prints e anotando o endereço no interior da mochila só por precaução. Caso estivesse um pouco bêbado, com certeza teria tatuado o endereço em algum canto do corpo. Enviou um simples “obrigado, Jisung”, mal podendo conter a si mesmo.

Changbin procurou no Google o endereço, encontrando um prédio de dois andares, bonito, mas simples, em frente a uma academia de taekwondo infantil.

Era isso.

Até tentou montar o trajeto, mas o Maps não funcionava para distâncias tão grandes assim. Changbin, então, usou uma tática ridícula. Ele sabia, por fato, que podia percorrer um quilômetro e meio em cinco minutos se a via fosse plana. Changbin decidiu arredondar. Três quilômetros em dez minutos ― parecia melhor.

Rindo, decidiu fazer uma regra de três. Se ele percorre três quilômetros em dez minutos, em quantos minutos ele consegue percorrer quatrocentos e cinquenta e quatro quilômetros?

Changbin converteu os minutos em horas e descobriu que, segundo seu cálculo estúpido, ele demoraria vinte e cinco horas, vinte e dois minutos e vinte e um segundos para chegar lá.

O que, caso ele fosse sincero, não parecia verdadeiro. Nem de longe. Mesmo assim, anotou o resultado numa folha de papel.

― Talvez haja imprevistos ― disse para si mesmo, batucando contra a folha algumas vezes. ― Talvez um pneu fure. Talvez os dois furem. Vou parar para comer. Para mijar. É. 

Escreveu, logo abaixo, trinta e cinco horas ― porque não podia esquecer das três horas de balsa.

Ah, a indecisão. O que deveria fazer em relação à balsa? Era obrigatório reservar um lugar antes da viagem, que aconteceria às duas e meia da tarde. Changbin pensou por um instante e decidiu agendá-la para quarenta e oito horas depois de sair de casa. Melhor chegar antes, tirar um cochilo em qualquer lugar a se atrasar e perder a passagem.

Changbin afundou o rosto nas mãos.

Ele estava fazendo isso. Estava mesmo.

É. Estava louco.

Com a cabeça recheada, dormiu até às oito da manhã. Desperto e energético, tomou café, tomou banho e bateu na casa dos Yoo. Foi recebido por uma alegre senhora, que chegou a se surpreender com o olhar sério do garoto.

― Vovó ― ele começou a dizer, recolhendo as mãos dela como se fosse pedir uma benção ―, estou indo para Jeju.

― Como é?! ― ela quase berrou. ― Changbin!

― Obrigado por me aconselhar. É, realmente, a melhor decisão encontrá-lo agora ― murmurou contra o cabelo grisalho e cheiroso dela, acariciando as costas encurvadas com carinho.

Vovó Yoo puxou-o pela mão para dentro. Com vontade de chorar, correu o mais rápido que pôde até o marido inútil, que comia um pouquinho de kimchi à mesa.

― Você não vai acreditar! ― ela gritou, agarrando os ombros do senhorzinho. ― Nossas preces foram ouvidas! Changbinnie vai para Jeju!

Vovô nunca na vida levantou tão rápido quanto naquele momento. Changbin até tentou acalmá-los um pouco, dizendo que os dois iriam quebrar alguma coisa se continuassem a agir daquele jeito. Os dois não ligaram. Parecia que eles estavam à espera desse momento a vida toda.

 As pantufas reclamaram ao serem expostas ao ar da rua, mas isso não parou vovô. Rapidamente e com a ajuda de Changbin, abriu a garagem e puxou a sua princesa para fora. A bicicleta verde-água podia até ser velha, mas era forte feito um touro. Quando vovô ainda conseguia pedalar, jovem e esbelto como Changbin, havia visitado a Coreia inteira com a vovó na garupa. À medida que foi ficando mais velho, foi colocando equipamentos para facilitar a vida doméstica, como a cestinha de metal à frente.

― Se tem uma coisa que essa bicicleta entende, é aventura ― explicou a Changbin, agarrando-se aos guidões gastos. ― Você não poderia ter melhor companhia, confie em mim. Ela te levará em segurança. Ela está guardada há muito tempo, então nunca sonhou tanto com uma viagem como agora. 

Changbin tinha de dar o braço a torcer; era muito bonita, mesmo com os traços da idade. Talvez fosse justamente isso o que a tornasse tão única.

― Vovô… obrigado. O que eu faria sem vocês dois? ― gracejou, acariciando o rostinho emocionado do senhorzinho. ― Não quero chororô, hein? Vou ficar bravo de verdade se vocês chorarem.

― Não, não, só choraremos quando você partir. Por enquanto, não ― vovó avisou da porta, abanando a mão em desdém. ― Agora traga esse velho para cá de novo, ele vai ficar doente se ficar muito no vento.

― Estamos tendo um momento de homem para homem! ― vovô gritou para a esposa, dispensando os comentários dela com uma mão ainda mais desdenhosa.

― Ah, entendi, então. Pede para o homem aí te ajudar no banheiro, depois, já que você gosta tanto ― gritou de volta para a vizinhança inteira ouvir.

 Changbin abraçou vovô, rindo em silêncio contra a nuca que cheirava a guardado, sono e velhinhos. Eles não parariam de brigar. Nunquinha. E Changbin tinha certeza disso, visto que o nosso nunca agora tinha uma data marcada. 

 Os dois convidaram Changbin para o almoço. Bem mais elaborada que os macarrões instantâneos e café que mantinham o Seo em pé, a mesa recheada de kimchi, sopa de arroz e carne trouxeram uma energia a mais no garoto.

― Quando pretende partir? ― vovó perguntou, colocando mais kimchi no prato de Changbin.

― Amanhã de manhãzinha. Bem cedo mesmo. Não quero mais perder tempo. Só vou terminar de ajustar tudo hoje e já partirei.

― Oh, estou tão feliz… ― vovô admitiu, suspirando. ― Claro que sentiremos sua falta, Changbin-ah, mas queremos o melhor para você. Vai nos ligar sempre, certo?

― É claro que sim. Vou fazer questão de falar com vocês dois todos os dias. Mesmo se não der certo, eu vou dar um jeito.

― Eu tenho certeza que vai dar certo, sim ― vovó disse. ― Eu sinto. E eu não costumo estar errada sobre as coisas.

― É uma bruxa ― vovô sussurrou para Changbin.

Changbin sentiria falta deles, também. Era uma pena que as coisas não podiam ser diferentes.

A bicicleta do vovô estava em ótimo estado, mesmo guardada. Changbin fez uns testes com ela, pedalando ao redor do bairro, e as coisas não poderiam ser melhores. Amarrou o rádio vermelho entre os guidões, ajeitando a mochila recheada de roupas, livros e objetos pessoais importantes na cesta de metal.

Changbin suspirou, olhando ao redor.

Dizer adeus ao lugar que te acolheu por um tempo era meio complicado. Teve a certeza de verificar até os cantos mais escondidos, fazendo e refazendo uma lista de pertences até se certificar de que não esquecia de nada importante. Changbin não tinha muitos segredos ou excessos, de qualquer jeito.

Às três e meia da manhã, Changbin amarrou às suas costas o violão que até então, propositalmente, havia guardado num cantinho escondido. Não queria olhá-lo muito, mas agora era o momento correto. Colocou por último a mochila com água e comida virada para frente no corpo, encaixando o boné só para não perder o costume. Com o celular cem por cento carregado e GPS pronto, Changbin estava pronto para partir.

Fechou, pela última vez, a porta. Com olhos apreciativos, afastou-se da varanda olhando para a casa que por um tempinho havia sido seu grande refúgio. Até pensou em simplesmente escorregar um bilhete para debaixo da porta dos Yoo, mas os dois eram velhos o suficiente para enxergar as entrelinhas nos planos de Changbin.

Vovó já aguardava à porta. Rindo, Changbin correu degraus acima para abraçá-la e beijar o seu rosto enrugado.

― Vocês são terríveis ― disse, amoroso, apertando mais ao redor dela.

― Acha mesmo que te deixaríamos partir assim? De jeito nenhum ― ela choramingou, esfregando os ombros do garoto. ― Changbin-ah, eu sei que confusões amam você, mas tente evitá-las, sim? Chegue em segurança. Eu estarei esperando por sua ligação.

― É claro, vovó ― sussurrou contra a têmpora dela. ― Obrigado por cuidar de mim por todo esse tempo. Eu não sei se algo como outras vidas existem, mas, caso existirem, espero que a gente se encontre de novo. E espero que a senhora seja minha avó... de novo. Promete?

― Prometo ― ela disse de volta, apertando-o mais contra o corpinho frágil. ― Prometo, sim.

Vovô Yoo chorava muito. Agarrou Changbin pelos ombros e o beijou muitas vezes no rosto.

― Estou orgulhoso de você. Chegue em segurança, o.k.?

― O.k. Prometo que vou chegar bem e ligar para vocês com boas notícias. Obrigado, vovô, por tudo o que tem feito por mim. Nunca vou esquecer o seu rosto ― acrescentou, acariciando as orelhinhas dele. ― Aqui, as chaves da minha casa. Ainda tem algumas coisas lá, então se vocês precisarem, fiquem à vontade, certo? ― E, sem que os dois percebessem, deslizou um envelope no robe do senhor Yoo. Eles nunca aceitariam dinheiro de Changbin.

― Obrigada, Changbinnie ― vovó agradeceu, acariciando as mãos dele quando o Seo se afastou.

― Lembrem-se dos cuidados médicos, hein? ― foi dizendo, descendo os degraus de costas. ― Se eu vê-los doentes na vídeo-chamada… ― ameaçou, nada ameaçador, apontando para os dois. Eles riram, acenando da porta, ainda muito emocionados.

 Changbin encarou a rua escura à frente. Estava tudo pronto. Titã parecia um pouco maior no céu. Sorrindo para os Yoo, Changbin tirou o pedal da bicicleta do chão e seguiu em frente.






 

Era a primeira vez que Felix via a expressão de alguém que não tinha mais nada.

Sentado aos degraus em frente à porta de casa, Seo Changbin mantinha uma expressão taciturna e miserável no rosto irreconhecível. Banhado de sangue da cabeça aos pés, a única coisa imaculada era o chapéu de festa pontudo.

― Só para esclarecer, eu não matei ninguém ― disse a Felix, olhando-o bem fundo nos olhos. ― Ele ‘tava bêbado e drogado. Tentou atirar em mim. Atirou no próprio rosto. É isso ― contou, ignorando o nó crescente na garganta que queria enforcá-lo. ― Eu não fiz nada.

― Changbin hyung… ― foi a única coisa que saiu da boca de Felix. Ainda estava chocado demais para absorver toda a situação

― Chamei a polícia. Só pelo ângulo da bala eles me descartaram como suspeito e constataram que ele atirou em si mesmo. Levaram o corpo, a arma e inspecionaram toda a casa à procura das drogas. Levaram tudo, também. Mas só virão limpar amanhã. Não consigo entrar.

O seu lábio inferior tremia. Muito. Changbin estava prestes a explodir, berrar, chutar alguma coisa e chorar, mas enterrou todas essas emoções num lugar remoto e inacessível. Não quebraria na frente de Yongbok.

― Eles… eles te deixaram aqui? Sozinho? Desse jeito? ― A cada pergunta, a voz de Felix aumentava. Não conseguia acreditar.

― É. Eles não se importam nem um pouco. Não estou surpreso.

Changbin olhou para cima, olhos brilhando graças às lágrimas contidas.

― O desgraçado não me deixou nem matá-lo.

― Não! Changbin hyung, não pense desse jeito ― Felix implorou, caindo de joelhos em frente ao mais velho. ― Por favor. Não faça isso. Você não merece ir para a cadeia por matar o desgraçado. Ele morreu do jeito que merecia: chapado e sem se lembrar do próprio nome. Tenho certeza que está sendo torturado no inferno agora mesmo. E você, hyung, vai viver uma vida longa, saudável e bem longe daquele merda. Eu sei que vai ― sussurrou, inclinando-se na direção de Changbin.

Como o previsto, o mais velho se afastou, virando o rosto.

― Não chegue muito perto… vai se sujar.

Com os lábios mordidos, Felix amassou o tecido da calça.

― Hyung… vamos para a minha casa. Não posso te deixar sozinho e eu sei que não vai querer entrar na sua casa depois de hoje. Por favor, venha comigo. 

Changbin engoliu em seco. Não estava na posição de questionar ou pensar em nada. Só queria dormir. Dormir para sempre. Com um suspiro, apontou com a cabeça para a casa em frente da sua, e logo Felix seguiu o olhar.

― A pior vizinha que eu tenho mora aí. Ela tentou convencer os policiais que, na verdade, eu quem matei o meu pai. Ela ficou cercando minha porta, querendo entrar e ver a situação e fofocou com outros vizinhos que eu era o culpado ― contou, inexpressivo, a um chocado Felix. ― Vamos fazer o seguinte. Está vendo a mangueira no jardim? Vou ficar em pé em frente à porta dela, e você vai me dar um banho de mangueira. 

 Felix voltou a ficar em pé.

― O.k., mas vamos rápido antes que ela saia para xeretar.

― Ah, ela vai sair. Estou contando com isso.

 Os dois rapidamente atravessaram a rua. Com os braços abertos, Changbin fechou os olhos quando Felix ajeitou a mangueira numa posição mais confortável. Yongbok contou até três e ligou a água; a jatos fortes e álgidos, o sangue no rosto de Changbin saía aos montes. A água rubra caía e respingava na porta e janela e logo, logo a roupa vermelha voltava à cor azul inicial. O chapéu de festa rolou para longe.

 Changbin penteou os fios para trás, trêmulo, mas limpo, observando o próprio estado encharcado com olhos ainda pesados. Felix se aproximou, ajudando a limpá-lo ao focar o jato d’água em áreas mais difíceis de alcançar. 

Ao contrário de Changbin, Yongbok não parava de chorar. 

Não era justo.

Changbin não merecia nada daquilo.

Como o Seo havia previsto, senhora Choi veio xeretar a barulheira no jardim. Gritou, pálida, ao enxergar paredes, grama e janelas sujas de sangue. Inclusive suas plantinhas estavam, agora, vermelhas.

― Você! ― ela berrou, mas não saiu de casa. ― Seo Changbin! Seu assassino miserável!

Sem pensar direito, Felix mudou a direção do jato d’água para onde o rosto desprezível da mulher aparecia na janela. Ela berrou, encharcada, tentando fechar o vidro às pressas, mas era tarde demais. Felix apostava que a sala dela inteira havia sido arruinada, mas ninguém mandou xingar seu Changbin hyung. Devagar, Felix fechou e colocou no lugar a mangueira usada. Enrolou um braço ao de Changbin, guiando-o para bem longe daquele lugar que só havia trazido momentos horríveis.

Eles não moravam muito longe um do outro, mas o melhor era apressar os passos para Changbin não pegar um resfriado ― do jeito que estava, qualquer coisa o nocautearia. Felix até tentou ser forte por ele, mas não conseguia nem imaginar dor tamanha àquela.

Felix e a avó viviam numa casinha simples, de muro baixo feito de pedra e janelas e portas feitas de ferro. Rápido, tirou o molho de chaves quando aproximaram-se da residência para não perderem muito tempo. Usou um pouco a força do ombro para levantar a porta do chão, um truquezinho mantido ali de propósito.

― Cuidado com o degrau, hyung ― murmurou, guiando Changbin pela casa.

― Yongbokie? ― a avó do garoto chamou, confusa, aparecendo de um corredor. ― Meu Deus! O que está acontecendo? ― Alarmada, aproximou-se dos dois às pressas. ― Quem é esse?

― Lembra que eu ia à festa de aniversário de Changbin hyung hoje? ― Felix relembrou a senhora, mas nenhuma luz acendeu na cabeça dela. ― Algumas coisas deram errado, vó… ele vai ficar aqui hoje, o.k.?

― Sim, claro ― ela rapidamente concordou, olhando para os lados. ― Ele está ensopado. Leve-o rápido ao banheiro, eu já separo mudas limpas de roupa.

― Sua avó parece com você ― Changbin sussurrou enquanto era guiado pelo corredor em direção ao banheiro. ― Ela é gentil como você ― continuou a dizer, baixinho, observando Felix medir a temperatura do chuveiro. Foi empurrado de roupas e tudo embaixo do jato quente e aprazível de água, gemendo ao ter a pele aquecida.

― Tudo bem, hyung? Consegue tirar as próprias roupas?

― Sim, Yongbok...ie ― usou o apelidinho que a senhora utilizou antes, o rosto todo iluminado graças ao sorriso sincero. ― Obrigado. Mesmo ― agradeceu, arrancando a camisa colada ao corpo de uma vez só. 

― Quando estiver terminando, me chama que eu trago uma toalha e roupas limpas, tudo bem? 

― Tudo bem.

Quando Yongbok saiu do banheiro, Changbin afundou o rosto nas mãos. É claro que seu aniversário de dezoito anos seria desse jeito. Caso existisse um Deus, Changbin sabia que ele não era um de seus favoritos. Talvez algumas pessoas já nascessem marcadas para sofrer.

 Riu, então, amargo.

― Obrigado pelo presente ― agradeceu a quem estivesse ouvindo.

Changbin olhou ao redor por um instante. À sua direita, sobre um suporte de acrílico, diversos recipientes emitiam uma fragrância gostosa mesmo à distância. Curioso, recolheu com cuidado um dos recipientes, tirando a tampa e fungando. Yep. Era isso ― era o cheiro do cabelo de Yongbok. Não havia notado antes por não conseguir prestar atenção em nada, mas agora que já estava mais consciente, sentia o aroma agradável por todo o lugar.

Colocou o recipiente de volta junto aos seus irmãos, decidindo permanecer sob o chuveiro até o corpo todo esquentar. Depois de cinco minutinhos de nirvana, movimentou a cabeça para fora da água e chamou por Yongbok. Não evitou a risada afetada ao vê-lo abrir a porta e, sem espiar, esticar a muda de roupas e toalha. Changbin desligou a água e rapidamente tomou as coisas na mão, agradecendo.

 Senhora Lee e Yongbok falavam baixinho na cozinha quando Changbin saiu do banheiro. Descalço e segurando a toalha, sapatos e roupa íntima úmidos, chamou a atenção imediata dos dois.

― Querido, perdão por não recepcioná-lo melhor ― a senhora disse, colocando sobre a mesa um prato com sopa de arroz e japchae quentinhos. ― Por favor, coma à vontade.

― Obrigado ― Changbin agradeceu,  com os olhinhos iluminados sob a perspectiva de comer comida de avó. ― Mas, antes, teria um lugar onde eu possa pendurar minhas coisas?

― Aqui, hyung. ― Felix indicou a lavanderia à esquerda. 

Changbin estendeu as roupas e deixou os sapatos ao lado da máquina de lavar antes de retornar rapidinho à mesa. Pediu licença e, esfomeado do jeito que estava, mandou para dentro tudo o que lhe era de direito. Felix tomou a liberdade de contar à avó o ocorrido, o que serviu para quebrar o coração dela inteirinho. Sentaram-se para comer ao lado de Changbin, que não parava de elogiar a comida da senhora Lee.

― Você gostaria que eu fizesse sopa de algas para você? ― ela sugeriu, olhinhos tintilando. ― Posso sem problemas fazer para o hyung de Yongbokie.

― Ah, obrigado. ― Changbin abaixou a cabeça, sem saber o que falar. ― É muita gentileza, mas só essa refeição é o suficiente.

― Ah, que isso! Modéstia à parte, minha sopa de algas é a melhor de todas.

― Se a senhora quiser fazer, então… ― fingiu-se de rogado, tirando da família uma risada compartilhada.

― É a primeira vez que vejo Changbin hyung desconcertado ― Felix provocou com um sorriso pequeno, feliz que, pelo menos, o mais velho parecesse um pouco melhor.

― Sempre fico sem jeito quando a comida é muito boa ― galanteador, continuou a elogiar senhora Lee.

Felix, por um momento, ficou pensando enquanto sua avó e Changbin conversavam. Era provável que o Seo fizesse as próprias refeições desde pequeno; quando outras pessoas o alimentavam, ele sempre parecia alegre e ansioso para comer tudo, elogiando sem pestanejar.

 Logo após o jantar adiantado, Felix ofereceu os chinelos das visitas ao seu hyung. Os dois entraram juntos no banheiro para escovarem os dentes à base de ombradas e cutucadas que beiravam briguinhas idiotas. (Changbin escovou os dentes com o dedo.)

― Obrigado, Yongbokie, por me acolher na sua casa assim de repente ― Changbin agradeceu, muito sério, quando despediram-se da senhora Lee e foram para o quarto do mais novo.

― Não precisa agradecer, hyung. É o mínimo ― Felix desconversou, arrumando a sua cama para a noite. ― Sinto muito pelo o que aconteceu hoje. Você não merece isso.

― Talvez eu mereça. Talvez eu não mereça. Foda-se. Não ligo mais.

― Hyung…

― Não, é sério. Foda-se. Ele ‘tá morto agora. Meu cérebro vai fazer o trabalho sozinho e me fazer esquecer de como isso aconteceu ― disse, claramente estressado, recolhendo um bichinho de pelúcia da cama de Yongbok. ― Dorme com esses?

― Sim ― respondeu, bochechas esquentando. ― Algum problema?

― Nenhum ― disse de volta, sorrindo e olhando para o bichinho. ― Meio que imaginei que seu quarto seria assim. Cheiroso que nem você. Recheado de coisas fofas como você.

― Para, hyung ― resmungou, embaraçado, jogando mais um travesseiro sobre a cama. Não sabia ao certo quando eles chegaram a tal nível de intimidade, mas cinco meses depois da primeira aula de violão, lá estavam os dois bobinhos. ― Prefere algum lado?

― Estar ao seu já é o suficiente.

― Hyung.

― Não ligo.

― Então deita primeiro que eu tenho que te mostrar uma coisa.

― Oh, o que será?

Responsivo, Changbin deitou no colchão cheiroso, ainda com o bicho nos braços, olhando para as ações de Felix.

― Meus pais sempre mandam um dinheiro para mim e para a minha avó. Eu economizei minha parte para te comprar um presente.

O sorriso na boca de Changbin desapareceu.

― Yongbok- 

― Hyung, escuta. Não quero te ver falando que não quer ou alguma coisa assim. Eu comprei para você porque eu quis e eu não aceito não ― decretou, apontando para Changbin. ― Era para eu ter te dado outro dia, já que hoje a gente ficaria vendo alguma coisa na tevê, mas está tudo bem. Hyung, feliz aniversário.

Felix colocou um violão sobre a cama.

Changbin, chocado, ficou olhando para o presente por um tempão.

― Cala a boca.

― Estou falando sério. 

― Yongbok… 

Changbin, jogando o bicho para o lado, ajeitou-se sobre a cama e puxou o violão ― seu violão ― para mais perto, olhos colados à cada centímetro.

― Você… Yongbok… ― e, emocionado além de palavras, dedilhou as cordas devagar.

― É totalmente seu. Olha dentro.

Changbin mudou um pouco o ângulo, rindo ao encontrar “changbin hyung“ ao lado de um coração colado no fundo.

― Eu não acredito. É sério… eu estou realmente chocado.

― Que bom, hyung.

 Changbin deixou o instrumento de lado para puxar Felix num abraço quebra-costelas. Sorrindo, Felix encaixou o rosto na curvatura do pescoço de Changbin, bem acomodado e confortável nos braços de seu hyung, que insistia em mantê-lo ali, sentado sobre o seu colo e bem preso contra o seu corpo.

― Fico feliz que tenha gostado, hyung. Sinto muito por hoje ― voltou a dizer, acariciando os fios ainda úmidos do Seo. ― Você pode chorar, sabe? Não está tudo bem agora. Você é forte para caralho, mas não fuja do que aconteceu ― sussurrou contra a orelha de Changbin.

Respirando mal, o mais velho pressionou bem os olhos e aumentou o aperto ao redor de Felix. Deixando que seu corpo caísse para trás, virou com Yongbok para o lado para poder abraçá-lo melhor, sentindo as lágrimas gordas caírem no colchão.

Changbin caiu no sono daquele jeito; destruído, mas não acabado, nos braços de Felix. Quando o Lee percebeu a respiração estável e braços frouxos ao seu redor, moveu o corpo feito um felino para apagar as luzes e ajeitar Changbin numa posição mais confortável. Voltou a se deitar bem ao lado dele, acomodando o rosto do Seo no peito enquanto usava o cobertor para esquentá-los durante a noite. Sem pensar muito, acariciava as costas e cabelo do mais velho, torcendo para que, pelo menos, ele tivesse bons sonhos.

Dormiram os quatro na cama: Changbin, Felix, o bichinho e o violão. Uns eram mais barulhentos que outros, mas ninguém reclamou.


 

Na manhã seguinte, eles tomaram sopa de algas, comeram bolo de morango que Felix insistiu em fazer ― saiu meio queimado, mas o que importava era a intenção ―, assistiram Knowing Brothers e praticaram um pouco de violão. Felix havia melhorado muito, mas insistia em aprender apenas um música há cinco meses.

― Não, hyung, se não for Officially Missing You, eu não quero aprender ― resmungou, tentando as notas.

― ‘Tá errado ― Changbin alertou. ― Aperta mais ou a nota não vai sair. Você consegue tocar, é relativamente fácil.

― Sim, e é lindo também ― Felix argumentou, pressionando mais como Changbin havia instruído. As primeiras notas saíram, melódicas e idênticas à canção. 

Changbin assentiu ao vê-lo tocar direitinho, orgulhoso.

― Você está indo muito bem. Evoluiu muito em cinco meses.

― Obrigado, hyung. ― As bochechas dele queimaram sob o elogio.

Changbin quis elogiá-lo mais. Quis ver mais pele vermelha, quis ouvir mais voz macia e constrangida ao ser confrontado com frases que eram apenas simples e descomplicadas verdades. Mas Yongbok era do tipo que complicava; complicava elogios, complicava aniversários e complicava a vida de Changbin como ninguém mais havia complicado.

Changbin pensou ― não pela primeira vez ― em inclinar o corpo e beijar os lábios vermelhos de Yongbok. Ele coraria? Afastaria o corpo? Ou beijaria Changbin de volta?

 Clicando os dedos algumas vezes, não parou de encará-lo enquanto as questões flutuavam sobre sua cabeça. Deveria?

― Por que está me encarando assim? ― Yongbok perguntou quando não aguentou mais o olhar tempestuoso de Changbin.

― Porque você é bonito.

― Hyung…

― É sério. Você é muito bonito. Sempre foi. Mas acho que porque me deu um presente que mudará minha vida, está especialmente mais bonito hoje.

 Felix riu, balançando a cabeça.

― Você é besta, hyung.

― E você é bonito. Se eu fizer uma tattoo com o seu rosto, terei três seres mitológicos na minha pele, já que você é um deus.

Felix explodiu em gargalhadas constrangidas. Bateu de leve em Changbin, caindo para trás. Não conseguia lidar com piadas do gênero, o que era até engraçado, visto que Changbin estava dizendo tudo, exceto piadas. Tentou não rir da gargalhada de Felix, mantendo o rosto sério e comportado.

― Yah, hyung! Você não tem noção nenhuma! Não é hora de fazer piadinha.

― Touché. Não estou fazendo piadinha alguma. Você não se olha no espelho, não? Não percebe que é bonito? Será que vou ter que repetir até você entender?

― Eu entendi, não precisa repetir. ― Felix ergueu o violão,  escondendo atrás do instrumento o rosto, pescoço e clavículas mais vermelhas que ketchup. ― Mas você é mais bonito que eu, hyung ― aproveitou o esconderijo para dizer.

Changbin avançou, tirou o violão do caminho e caiu em cima de Felix, trancafiando-o entre os seus braços.

― O que você disse? ― quis ouvir de novo, a voz num tom baixo e curioso. Podia, agora, ver todo o resultado das melosidades que disse; pele rubra, olhos lacrimejados, boca entreaberta ― implorando por um beijo. Talvez dois.

― H-hyung ― Felix gaguejou, mal acreditando no que estava acontecendo. ― Eu disse que você é mais bonito que eu.

― Nem você acredita nisso.

― Acredito, sim. Sempre te achei muito bonito. Hm… c-como eu posso dizer? ― Felix olhou ao redor, fingindo pensar; ele estava, na realidade, reunindo coragem. Changbin sabia. ― S-sexy?

― Você me acha sexy?

― O c-c-conceito é bastante… sexy… as t-tatuagens… e a cara de mau... e os músculos… e a atitude… ― começou a devagar, cada segundo mais desconexo.

Changbin piscou algumas vezes, observando o rosto corado bem abaixo do seu. Sem pensar em mais nada, encurtou a distância entre eles e beijou Yongbok.

Felix nunca havia sido beijado antes. Estático, observou Changbin se afastar depois de uns segundos, a separação dos lábios dos dois produzindo um estalo satisfatório. Com os óculos tortos no rosto, respiração ruim, vermelho e quente, Felix levou a mão direita ao rosto de Changbin. Ele estava sério e paciente, aguardando uma reação.

― De novo, hyung ― pediu, baixinho. Fechou os olhos daquela vez.

Changbin obedeceu. Sentia o coração na boca ― e talvez estivesse, mesmo ―, respirando tão mal quanto Yongbok ao beijá-lo de novo, daquela vez com um pouco mais de vontade — à vontade, agora que sabia que o garoto também queria. Confiante e apaixonado, puxou o lábio inferior de Felix antes de pedir, num sussurro, para ele entreabrir os lábios.

Felix nunca havia sido beijado de língua antes. Com o corpo todo pegando fogo, se entregava mole feito pudim ao beijo gostoso e enfiava os dedos no cabelo de Changbin, mãos coçando para sentir acariciar o corpo teso do Seo, erguer o quadril e colar o próprio abdômen ao do mais velho.

― Changbin hyung ― gemeu, fraco, a boca tomada por um faminto e quase selvagem garoto quase-homem.

― Respira pelo nariz ― Changbin disse contra a boca de Felix ao notar que o garoto não estava respirando, parando ligeiramente para deixá-lo puxar um pouco de ar para dentro. ― Isso… respira devagar… ‘tá tudo bem, não vou sair correndo.

― De novo, hyung ― voltou a pedir, puxando a camiseta do garoto e colocando a boca vermelha e inchada de volta à boca de Changbin.

 Houve muitos de novos naquele dia. 

As bocas famintas e entusiasmadas começaram a criar um ritmo próprio; quase desonesto de tão perfeito. Changbin mantinha os cotovelos e antebraços estirados no chão em volta da cabeça de Felix, colando o corpo contra o do mais novo e mantendo-se entre as suas pernas afastadas, sentindo cada centímetro de derme quente. Yongbok nunca esteve tão cheiroso ― parecia emanar aquele aroma gostoso mais forte agora que estava à mercê dos lábios do Seo.

Só pararam quando Changbin sentiu o próprio membro duro contra as coxas de Felix. Como não estava usando nenhuma roupa íntima, a silhueta era visível e palpável nas calças de moletom emprestadas. Afastaram-se como se tivessem levado um choque, meio surpresos e sem fôlego.

― Vamos parar por aqui ― Changbin pediu num tom rouco, lambendo os próprios lábios e saindo de cima do garoto. Ajoelhado ao lado de um afogueado e também excitado Felix, Changbin juntou autocontrole e desviou o olhar. ― Você... quer tomar um banho primeiro?

― Okay ― Felix murmurou, as mãos juntinhas ao peito, encarando o teto que parecia rodopiar. ― Não acredito que nos beijamos.

― Está arrependido?

― Não, é o oposto. Venho esperando por isso há um tempão ― admitiu, percebendo que não era hora para timidez. Engoliu em seco e deu uma olhada em Changbin. Caso não o conhecesse há meses, diria que ele mal se importava; mas Felix conseguia notar as orelhas vermelhas de seu hyung. 

Changbin cerrou o punho. Ainda conseguia sentir o sabor gostoso de Yongbok nos lábios.

― Por que nunca me disse nada?

― Porque tive medo, hyung... você me beijou… por que está interessado em mim, ou… foi só uma brincadeira?

Changbin soltou uma risada incrédula.

― Se estivesse só brincando com você, te beijaria até o sol sumir? Te beijaria até o meu pau ficar duro? Acho que não. Te beijei porque queria te beijar.

Felix, devagar, se levantou e cruzou as pernas, olhando para o perfil sério de Changbin.

― Hyung, eu… eu gosto de você.

Changbin entreabriu a boca. Sem pressa, levou o olhar ao rosto contraído de Yongbok.

― Não faça essa cara ― murmurou, levando os dedos para acariciar o cabelo de Felix. ― Escuta bem o que eu vou falar para você. Eu gosto de você, mas será que podemos ter essa conversa de novo quando você fizer, pelo menos, dezessete?

― Você se sente desconfortável?

― Sim. Agora que cheguei à maioridade, sinto como se estivesse fazendo algo muito errado.

Felix sorriu, tombando o rosto contra a palma de Changbin.

― O.k., hyung. Eu entendo. Meu aniversário é mês que vem, de qualquer jeito.

― É. ― Changbin sorriu também. ― Vai logo tomar banho, agora.

 Quando Felix saiu do quarto, um pouco saltitante, Changbin afundou o rosto nas mãos, contraindo os lábios ao permitir que todos os seus órgãos sacolejassem dentro de si, agora que estava sozinho. Surtou um pouco, mal acreditando que Yongbok sentia de verdade o mesmo, puxando fios de cabelo e andando de um lado para o outro no quarto do garoto.

― Puta que pariu! ― grunhiu, esfregando as mãos contra o rosto. ― Puta que pariu!

Changbin socou a cama e, cavalgando adrenalina, chutou o bichinho de pelúcia contra a parede, quase caindo no chão tamanha euforia.






 

Changbin pedalava há seis horas. Dizer que ele estava exausto seria eufemismo ― mal sentia as panturrilhas, costas ardendo e aquela sensação obscura que a cada segundo crescia dentro do peito: será que vai dar certo? Será que estou fazendo a coisa certa? As estradas estavam vazias, monótonas e recheadas de casas abandonadas. As vias expressas eram as melhores opções para chegar ao sul do país e Changbin já tinha tudo pronto: seguiria até Mokpo e pedalaria a Wando para pegar a balsa. Já havia passado, segundo as placas e o GPS, por Yongin e passava, agora, por Osan.

Não havia quase ninguém nas ruas. Caminhões e carros passavam a centímetros de Changbin, que mal se importava com os perigos da avenida enquanto continuava a pedalar. O rádio havia voltado a funcionar há alguns minutos e uma espécie de música bem das antigas, recheada de high notes e letras melosas, irritava Changbin o suficiente para injetá-lo com um pouco de energia diabólica―ele estava pedalando na força do ódio.

Parou um segundo num posto de gasolina abandonado. Grunhiu profundamente ao esticar as pernas, exercitando os músculos por um tempinho. Não havia nada ao redor; só umas casas à distância e os veículos que passavam feito tornados atrás de si. Aproveitou para fazer um xixi à beira da estrada, tomar uma água e comer um kimchi frio, mas gostoso, que havia embalado num pote. Qualquer coisa seria gostosa àquela altura.

Retornou à estrada. Parecia que, agora que havia parado para descansar, estava mais lento que antes. Pedalou mais até o pico do dia se aproximar junto a Cheonan, uma região que nunca havia passado antes. Suado e cansado além da compreensão humana, Changbin parou de novo para descansar em frente a um 7-Eleven. Apoiou-se aos cotovelos sobre os guidões, encarando o rádio e a cesta de metal.

Nunca havia pedalado tanto na vida. 

Metade do dia havia ido embora, mas Changbin não havia chegado à metade do trajeto. Gongju, onde trocaria de via expressa até Mokpo estava a umas boas três horas de viagem ainda.

Changbin terminou uma garrafa d’água. Com olhos espremidos, encarava a cidade desconhecida com certa angústia. O que faria caso Yongbok o mandasse embora? Claro que era uma probabilidade ― ele não era obrigado a aceitá-lo de volta. Bateu com o punho fechado contra a lombar dolorida; as bordas do violão vinham batendo contra um lugar bem específico a viagem toda até ali. Não se surpreenderia caso um hematoma estivesse vindo à vida.

Muito absorvido nos próprios pensamentos e dores, não ouviu a chegada de um grupo de moleques que parecia tudo, exceto simpático. Quando notou a aproximação, eles já estavam a alguns passos de distância.

― Legal o seu violão ― um deles disse, olhando para Changbin todo. ― E a sua bike.

― Obrigado. ― Changbin abriu um sorriso contido. Lembrou-se da voz de vovó Yoo ao dizer, “confusão adora você”. Ela estava certa. ― Bom dia a vocês, então ― desejou, rápido, manobrando o guidão para sair do estacionamento.

Changbin conhecia tipinhos como aqueles ― havia espancado muitos deles no ensino médio.

Um dos garotos maiores enfiou o pé na roda da bicicleta.

― Não tão cedo. Tem algum dinheiro aí?

― Ele deve ‘tá viajando. Claro que tem grana ― outro disse, largando um cigarro no chão.

Changbin suspirou, observando os rostos claramente jovens com um sentimento estranho no peito. 

― Confiem em mim, vai ser melhor se eu for embora.

― Ah, por quê? ― o primeiro a falar questionou, rindo. 

― Eu bato para machucar.

Todos eles deram risada. O garoto que estava com o pé enfiado na roda se aproximou de Changbin.

― Você não deve ser tão mais velho que a gente. A gente também bate para machucar.

― Duvido muito ― Changbin respondeu com um sorriso enorme. ― Nunca devem ter brigado de verdade e eu não quero tirar a virgindade de vocês, obrigado.

O garoto puxou a gola de Changbin.

― Sai logo da bike e vamos ver.

― Se eu sair, você não vai conseguir ver nada.

Outro garoto puxou Changbin com mais força, desmontando-o da bike. Com um suspiro, o Seo acariciou os guidões com certo pesar―Deus realmente não colaborava.

― Vem, bate aí, se você é tão bom ― o garoto chamou, balançando os punhos.

― Sua postura é horrível e sua guarda ‘tá aberta ― Changbin resmungou, tirando o violão das costas para colocá-lo sobre a bike. Tinha que tomar todo o cuidado para não ser roubado, porque provavelmente era essa a estratégia deles ― distraí-lo e roubá-lo. Não saiu de perto do veículo, afastando-se junto com a bicicleta alguns passos. Tinha um garoto bem atrás de si, sorrindo para Changbin como se pensasse ter o encurralado.

Resignado, o Seo atacou primeiro o garoto atrás da bicicleta. Sem esperar, o coitado levou um gancho de direita meia-boca, visto que fazia um tempo desde que Changbin batia em alguém. Mas funcionou certinho ― sangue voou da boca do garoto enquanto colapsava feito um saco de batatas no chão do estacionamento, piloto de uma longa viagem patrocinada pelo Seo.

Houve um segundo de silêncio e confusão antes de outros dois garotos voarem para cima de Changbin. O primeiro a se aproximar levou um chute no estômago, tão forte que caiu de bunda no chão, sem respirar. O segundo, por ser mais alto e magricela, recebeu um soco no saco. Isso o eliminaria pelos próximos dez rounds.

― É sério, eu não quero brigar ― avisou uma última vez, erguendo as mãos. ― Só me deixem ir em paz. 

O rapaz que havia enfiado o pé na roda estava dividido ― sua honra? Sua saúde? O que fazer?

― Seja esperto. Não ataque ― Changbin pediu, mãos ainda erguidas. ― Só vou bater em você se me atacar.

Garotos eram todos estúpidos.

Changbin até pensou em usar o punho esquerdo para não machucá-lo demais, mas decidiu que ele precisava de uma lição. Soltou um muxoxo e observou por um segundo os olhos revirados, nariz torto banhado em sangue e corpo mole no chão. Balançando a cabeça, fitou os nós machucados dos dedos. Ótimo.

― Porra de moleques desgraçados ― resmungou, encaixando o violão nas costas antes de montar na bike de novo. Deu uma olhada nos outros que não se aproximaram, tão apavorados quanto poderiam estar. ― Não mexam com as pessoas de novo. Vão arranjar o que fazer, seus arrombados ― berrou, olhos tempestuosos furando as almas problemáticas. 

Enquanto seguia de novo, Changbin pensou no seu eu passado ― será que era assim também? Não se lembrava de ter mexido com as pessoas à toa… nunca. Não era desocupado feito esses moleques de bosta. Com certa raiva, pensou em voltar lá e acabar com todos eles. Eles com certeza mexiam com as outras pessoas, indefesas, e faziam o que bem entendiam. Mas pensou melhor e desistiu; não podia ser distraído com coisinhas do gênero, pelo menos não quando já estava exausto e a fim de poupar energia ao máximo.

Changbin trancou a mandíbula.

― Fim de mundo de merda. Titã de merda.

Titã de merda.


 

 Changbin chegou a Gongju às seis e quarenta da tarde. Arranjou abrigo na varanda de um restaurante aberto, sentando-se junto à bike numa das cadeiras disponíveis. Observou os horários e preços da balsa ― amanhã, às duas e meia da tarde, sairia a única do dia.

― Não vou chegar a tempo ― concluiu, coçando a cabeça. ― Melhor reservar para depois de amanhã. 

Apesar do preço ser meio amargo, realizou a reserva para dali a um dia. Era bom que chegasse no horário correto. Utilizou o banheiro do restaurante, pediu, com carinho, para encher de novo a garrafinha e decidiu ligar para vovô e vovó Yoo. Eles conversaram e Changbin percebeu que os dois estavam bem emocionados. Contou que estava em Gongju e pedalaria à noite pela via expressa a Mokpo, o que com certeza levaria a noite inteira, e falou, também, sobre os garotos encrenqueiros e riu do tom irritado de vovó ao xingar as pestinhas.

Não citou a dor generalizada.

Depois da ligação, Changbin comeu a comida que havia embalado de casa, nada envergonhado por utilizar uma das mesas do restaurante para isso. Como um mendigo, sentou-se ao meio fio e escovou os dentes ali mesmo, enxaguando a boca e cuspindo no buraco de esgoto à calçada.

As pernas doíam como nunca tinham doído antes. Dores musculares eram as piores e parecia que a cada movimento, areia se enterrava nos seus tendões. Aproveitou que a noite caía para vestir mais um casaco, ajeitando melhor o boné na cabeça. Ainda cheio de dor, mas destemido e com a bateria recarregada, voltou a pedalar pela avenida.

Já estava há quinze horas na estrada. Conforme seus cálculos malucos, ficaria mais quinze. Pelo menos não sentia cansaço por enquanto. O corpo mantinha-se bem alerta e acordado, seguindo o caminho em linha reta pela estrada. Titã parecia bem maior hoje. Era quase ridículo perceber que ontem ele não passava de um brilhozinho ― agora, já brilhava mais que a estrela mais brilhante do céu noturno.

Changbin tentou pensar em Yongbok. Mais especificamente, tentou se lembrar do gosto de sua pele, do cheiro do seu cabelo e do formato de seus lábios ― tentava, sempre, não se lembrar, mas as memórias inundavam cada segundo mesmo assim. Se tivesse sido menos infantil, menos medroso, poderia estar com ele agora e não no meio de uma via-expressa numa viagem que lhe dava mais medo que o fim do mundo.

O frio não perdoava de jeito nenhum. As pernas de Changbin doíam muito e agora elas tinham companhia ― podia sentir os nós roxos dos dedos da mão direita arderem feito o inferno, machucados expostos ao ar frio e cortante da noite. A lombar começava a reclamar ― justo ela, que nunca havia reclamado antes quando Changbin dormia até mais tarde. Justo ela. 

A noite ia caindo. O fluxo de carros diminuía e Changbin não parava de ficar alerta; sempre que um carro suspeito se aproximava demais ou caso visse um pisca-alerta logo à frente, Changbin ativava o seu modo berserk secreto. Não esperava a merda acontecer porque ele se prontificava de ser o responsável por ela. Podia sim não ser nada demais, só um cara desavisado que o cercava, mas Changbin não queria arriscar.

Sempre que se aproximavam demais, o que aconteceu duas vezes durante a madrugada, diga-se de passagem, utilizava a força dos braços e arrancava o retrovisor no soco para, em seguida, esmurrar o vidro do carro e berrar feito um psicopata que tinha uma arma.

Funcionou as duas vezes. Sob a camiseta, grudada na cintura, a garrafa d’água dava o volume certo para enganar. Por algum motivo, Changbin começou a dar risada ao imaginar Yongbok fazendo o mesmo: a cara fofa e nada intimidadora, mas com a voz super grossa e alta. Não sabia se o resultado seria o mesmo. Talvez, no lugar de quebrar o retrovisor, acabasse quebrando a mão.

Às sete da manhã, Changbin havia chegado a Gochang. Detestava admitir, mas estava um saco de lixo. Sentado com as pernas esticadas numa praça local, encarava a bicicleta e as casas ao redor com uma expressão vazia. Alguns senhores jogavam coisas de velho na praça, rindo e esfregando na cara de Changbin como eles conseguiram aproveitar toda a vida antes de serem mortos por um asteroide.

Que merda.

― Que merda ― disse para o nada, massageando as coxas. Com a coluna o mais ereta possível, suspirava para o céu cinza acima. Não choveria, mas estava frio e perfeito para dormir. Changbin ainda não sentia tanto sono. Só sentia um pouco, mas era mais devido à dor. Já havia virado muitas noites antes, isso não era um problema. 

O ombro esquerdo estava inchado e meio estranho devido aos socos nos retrovisores. Flexionando os dedos da mão direita, pensou mesmo se o que estava fazendo era o correto ― valia a pena, sim, se fosse para ver Yongbok mais uma vez.

Mas, mesmo assim, era uma merda.

Comeu ali mesmo, enfiando japchae frio, mas gostoso, goela abaixo. Comeu uma das três bananas que lembrou de trazer, escovando de novo os dentes agachado feito um mendigo. Com a maior cara de pau do mundo, aproximou-se dos velhinhos e perguntou se algum deles tinha água potável em casa e se podiam ajudá-lo a encher a garrafa.

Ninguém negava água às pessoas.

O carregador portátil fez o seu trabalho enquanto Changbin enchia a garrafinha e retomava as energias para mais um longo dia.

Depois de meia hora ali na praça, se despediu dos senhorzinhos e se preparou para mais uma rodada de dor e sofrimento. 

Diferente de Changbin, a bicicleta parecia melhorar a cada nova rodada. Parecia adorar o ar fresco de cidades novas, asfaltos novos, aventuras novas depois de tanto tempo. No rádio, pops antigos que Changbin adorava suavizava a viagem ― doía, sim, mas ele conseguia aguentar. Pelo menos não estava calor. Se estivesse, seria obrigado a tomar banho na via-expressa mesmo, porque não suportaria o próprio cheiro.

Changbin chegou a Mokpo às três e sete da tarde. Com a bunda, costas, coxas e dedos doloridos demais para descrever, achou um Starbucks qualquer e caiu no estacionamento. Permaneceu deitado lá por um instante, tentando normalizar a respiração.

Uma senhora colocou uns trocados perto da cabeça de Changbin. Explodiu em gargalhadas e agradeceu à velhinha com as mãos bem juntas. Era justo, ele parecia mesmo um mendigo. Pegou os trocadinhos com um sorriso besta no rosto, enfiando-os no bolso da calça antes de encarar a bike. Ela brilhava.

― ‘Tá gostando disso, né? ― resmungou, abrindo a mochila na frente do corpo para tirar o almoço. ― Acho que chego em Wando hoje à noite. Acho que vai dar para tirar um cochilo em algum lugar por lá ― ponderou, abrindo um recipiente com kimchi. ― Não tenho muita coisa porque gastei com a balsa, mas acho que vai dar para pagar um quarto barato ― continuou a falar para a bicicleta, dobrando as pernas e sentindo um alívio tremendo ao mudar um pouco de posição.

Changbin ligou para os Yoo. Conversou um pouco para tranquilizá-los e, quinze minutos depois, se preparou para continuar viagem. Estralou o pescoço, alongou um pouco o corpo e lá estava ele, bunda quadrada de volta à posição.

Agora ficava fácil. Saiu da via-expressa pela primeira vez na viagem, continuando a pedalar por grandes avenidas sentido Haenam. Não estava tão rápido como antes, mas dava para o gasto; tinha, agora, a certeza que não perderia a balsa.

Pedalando mais tranquilamente, chegou a Wando às oito da noite ― mais cedo do que previa. Seguiu pela avenida Wando-ro, devagar, aproveitando a vista do mar do Japão noturno. Era difícil acreditar que tudo aquilo sumiria em breve.

Pedra filha da puta.

Changbin chegou em frente ao local onde pegaria a balsa. Com um aceno de cabeça, suspirou ao clicar em concluir viagem no Maps. Era isso ― ele estava ali, e amanhã, neste mesmo horário, talvez estivesse com Yongbok. O coração de Changbin bateu forte só ao pensar sobre a possibilidade. 

Pesquisou por um hotel e encontrou um na rua em frente. Changbin nem precisou conferir a disponibilidade ― ninguém viajava hoje em dia. Decidiu andar até lá, empurrando a bicicleta pelos guidões, exercitando um pouco as pernas que imploravam por descanso eterno.

 O hotel era um pouco caro no geral, mas Changbin conseguiu o quarto mais barato. As recepcionistas pareceram tão surpresas ao vê-lo que não falaram nada sobre o Seo subir para o quarto com a bicicleta.

― Woah… ― exclamou, chocado, ao ter um vislumbre da paisagem. À distância, o mar do Japão refletia as luzes coloridas da ponte que ligava Songgok-ri, a ilha vizinha. Changbin até tirou uma foto, deslumbrado. Conseguia enxergar a balsa parada sobre as ondas tranquilas, tão iluminada quanto a ponte lá atrás.

Deixou tudo carregando antes de tomar o que pareceu ser o melhor banho da sua vida. Quentinho e enrolado num robe, ligou para os Yoo avisando que estava hospedado em Wando e que amanhã pegaria a balsa para Jeju. A bicicleta estava intacta e tão bem quanto anos atrás, então eles não tinham que se preocupar com nada. Jogado contra a cama, Changbin deixou que seu corpo lidasse, sozinho, com a dor pungente e generalizada.

Montou o alarme para às dez da manhã, virou de lado e dormiu.






 

― Eu queria te parabenizar pessoalmente ― diretora Jeong disse, acariciando as mãos de Changbin. ― Parabéns por ter sido tão forte. Eu tenho orgulho de você. O seu crescimento durante o ano foi palpável e eu adorei esfregar isso na cara do Conselho ― gracejou, tirando do garoto uma risada cúmplice. ― Parabéns pela formação. Espero continuar a vê-lo daqui em diante.

― Do que está falando, velha? Todas as terças temos um encontro marcado ― Changbin resmungou, incomodado com o colar de flores que colocaram ao seu redor. ― Vocês têm a cerimônia mais estúpida que eu já vi.

A diretora apenas ignorou as reclamaçõezinhas do garoto e o acolheu num abraço firme.

― Parabéns, Changbin.

― Obrigado — agradeceu. — Posso ir para casa?

― Yah. ― Séria, ela puxou o rosto dele. ― Eu quero vê-lo numa faculdade em breve.

― Ah, não, sem esse papinho. Não tenho o menor interesse em fazer faculdade e você ‘tá careca de saber disso. Vou continuar a trabalhar com o meu amigo tatuador ― explicou, afastando-se do abraço dela. ― Inclusive, você poderia vir à loja para fazer uma tattoo, não? Nesse bração seu ficaria show.

Fingindo estar puta da vida, a mulher empurrou o garoto.

― Você sabe que só falo verdades, Jeongyeon-ah. Meu amigo é bom pra caralho. Acha mesmo que deixaria um qualquer enfiar uma agulha na minha garganta? ― E, como prova, ergueu o queixo para mostrar a ela a pele recém pintada. ― Não dói nadinha e você vai ficar super descolada.

― Vai embora ― ela resmungou, empurrando-o até a porta. 

― Você me ama.

― Até terça-feira ― disse, o sorriso morno e contente idêntico ao de uma mãe.

― Até terça-feira ― Changbin respondeu. Pela primeira vez, curvou-se a ela respeitosamente antes de, pela última vez como estudante, sair da sala. ― Até mais, Jinjoo-ah ― despediu-se também da secretária, oferecendo o punho para ela socar.

― Até mais, Changbin-ssi. Boa sorte ― ela desejou com um sorriso enorme, acenando para ele.

Changbin sabia que eles se veriam muito ainda, por isso não estava nem um pouco triste ou emocionado. Além de continuar a dar aulas ― agora remuneradas ― às terças, Yongbok ainda teria um longo ano na Bora. Então, de verdade, Changbin não sentiria nenhuma diferença ruim.

Tinha um diploma nas mãos, havia se livrado de professor Park, poderia tocar instrumentos às terças-feiras e ganhar dinheiro para fazer isso e tinha um namorado incrível. 

É, sem nenhuma mudança ruim por aqui.

Mesmo odiando o colar brega, não o retirou a caminho do apartamento que dividia agora com Chan hyung. Bang Chan era um dos cara mais incríveis que já tinha conhecido na vida ― além de um tatuador incrível, era um amigo mais maravilhoso ainda. 

Changbin não podia continuar a morar na casa que tinha o sangue de seus dois pais. E Chan sabia bem disso. Portanto, ofereceu o cantinho disponível no apartamento a Changbin sem pensar duas vezes. Ajudou o Seo na mudança e não tocou em nenhuma memória ruim sem a permissão do mais novo.

Era bom morar com alguém legal.

Lee Yongbok o aguardava na frente do portão. Enrolado no enorme cachecol amarelo que ganhara de aniversário de Changbin, observava os próprios coturnos com bochechas vermelhas.

Seo Changbin agarrou a sua fofura com os braços fortes, tirando dele uma exclamação surpresa antes de embrenhar o rosto no pescoço cheiroso.

― Hyung! ― ele gritou, abraçando Changbin de volta. ― Parabéns pela sua formação! ― congratulou enquanto afofava o colar de flores artificiais pendurado no pescoço do namorado. ― Eu queria tanto ter visto… professor Park fez cara de merda para você?

― Ele não tinha feito, mas depois que eu o beijei, ele fez.

― Como é? ― Felix perguntou antes de gargalhar. ― Você beijou professor Park?

― Nas duas bochechas ― contou com um sorriso enorme, puxando a cintura de Yongbok para beijá-lo na boca doce. ― Vem, vamos entrar. ‘Tá frio aqui fora.

Felix havia se acostumado à nova casa de Changbin. Gostava muito de Bang Chan porque os dois tinham muitas coisas em comum e também porque ele ofereceu, sem pestanejar, um lugar seguro para o seu hyung. Não tinha como desgostar de Chan hyung.

― Então, qual o plano para hoje? ― Felix perguntou depois de retirar o casaco e cachecol, colocando-os atrás da porta.

― Chan hyung está trabalhando até mais tarde hoje ― Changbin contou contra a orelha do mais novo, sorrindo para ele. ― Pensei que, não sei, pudesse te mostrar minhas novas tatuagens.

― Hyung… ― Felix estreitou os olhos, entendendo muito bem as implicidades daquela frase. Arrastou a mão pelo peito de Changbin, sentindo os músculos fortes abaixo da palma. As tatuagens recém-feitas do Seo insistiam em aparecer sob a camiseta de manga comprida e gola alta, traços escuros e grossos contra e pele que recebia tinta feito manteiga.

Os últimos meses eram todos daquele jeito; se Chan hyung estivesse trabalhando e Changbin não, Felix tinha uma outra alternativa além da própria casa. Vovó Lee nem ligava; adorava Changbin, mesmo não sabendo exatamente o tipo de relacionamento que eles tinham.

Os planos, às vezes, envolviam maratonas de cartoons, assistir competições esportivas, ou dormir bem juntinhos. Changbin também costumava compartilhar as histórias sobre o garoto-dragão nas terras distantes ― pelo menos aquelas que ainda se lembrava. Seo sabia que existiam muitas, mas, infelizmente, poucas grudaram para sempre na sua memória.

Felix contava sobre os próprios pais. Aparentemente, eles tinham casas e apartamentos por todos os lugares do mundo de tão ricos que eram, mas não conseguiam dar atenção nenhuma ao próprio filho. Quando eles souberam dos abusos, preferiram entregá-lo a alguém que pudesse acolhê-lo — e Felix achava que essa havia sido a melhor decisão deles.

Às vezes, eles se beijavam muito também. 

Aquele dia, em especial, eles tomaram banho juntos, assistiram a um novo filme na Netflix e se embrenharam nas cobertas quentinhas na cama de Changbin.

― Doeu, hyung? ― Felix sussurrou enquanto dedilhava a área ao redor da nova tattoo no pescoço de Changbin. ― Com certeza doeu.

― Sim ― ele respondeu, sonolento. ― Mas ficou bonito.

― Ficou muito bonito… woah ― elogiou, observando a máscara de Tengu de um ângulo diferente. ― Você só tem uns bichos estranhos no corpo.

― Tatuagens estranhas para um sujeito estranho ― respondeu, com um olho fechado e o outro meio aberto. 

Movendo o corpo, Felix acariciou a imagem da mariposa no bíceps firme do Seo. Ao lado dela, uma guitarra em pedaços cobria toda a extensão até o cotovelo.

― Qual a próxima?

― Estou pensando ainda. Quer me ajudar?

― Que tal um gatinho fofinho? ― gracejou.

― Eu faço. Se você está pedindo, eu faço ― concordou, ainda sonolento.

Com um suspiro, Felix apoiou o queixo nos punhos, observando o seu hyung cair, devagar, no sono.

Dias assim eram os melhores.

Tinha dias preguiçosos onde tudo o que eles faziam era grudarem um no outro. Felix tinha o costume de ler (revista de quadrinhos, livros e jornais), enquanto Changbin apenas fungava o cabelo dele e dormia o tempo inteiro, relaxando o corpo contra a figura absorvida de Yongbok.

Teve um dia, no entanto, às vésperas da volta às aulas, que Changbin acordou graças às tremulações vindas de Felix. Ele chorava tanto que soluçava, óculos embaçados e com lágrimas respingadas pelas lentes.

― Yongbok? ― chamou, um pouco chocado, levantando-se num pulo. ― Por que está chorando?

― Esse livro, hyung ― explicou, sem fôlego, apertando o objeto nas mãos. ― Ele está acabando comigo.

Changbin arrancou o livro das mãos do garoto. A Canção de Aquiles.

― Larga essa merda. Vem aqui ― sussurrou, jogando o livro sobre a cama e acomodando o garoto nos braços. 

Felix não discutiu, e apenas chorava quietinho contra o peito de seu hyung.

― Por que continua a ler se te faz chorar?

― Porque é muito bom. A vida é injusta, hyung.

― Sim, sim, é verdade ― apressou-se para acalmá-lo, acarinhando as madeixas macias. ― Mas é só um livro.

― Não é só um livro, hyung… nunca é só um livro.

Changbin odiava ver Felix chorar. E aquele era um choro tão sentido, daqueles de criança, que conseguia destruí-lo inteirinho. Encarou A Canção de Aquiles do outro lado da cama como se o livro tivesse cometido um crime terrível.

Meia horinha depois, Felix trouxe o exemplar de novo para o colo e retornou com a leitura. Desta vez, Changbin o abraçou mais forte e espiou a coleção de palavras como se a ameaçasse: tire mais uma lágrima dele e eu te queimo interinho.

Felix pensava que eram momentos como aquele que o fazia amar Changbin ainda mais. 

Mesmo que, na realidade, doesse muito amar Seo Changbin.

Eles fariam seis meses de namoro em breve, mas o mais velho nunca havia dito eu te amo de volta. Felix era o único sussurrando, dizendo, implorando, prometendo. Sabia que Changbin não era um cara de muitas palavras, mas será que doeria dizer ao próprio namorado que o amava? Será que doeria recolher o rosto de Felix nas mãos, como sempre fazia, mas no lugar de beijá-lo na testa, dizer eu amo você?

Felix entendia que alguns eu te amos não precisavam ser ditos ― às vezes, um beijo na testa podia ser tão digno quanto a declaração. Mas a cabeça de Yongbok era teimosa, ansiosa e insegura. Ideias e pensamentos mirabolantes não paravam de invadi-lo a cada instante, e aquela ânsia incansável por um momento de reafirmação criando dentro dele um buraco que sugava todas as suas certezas. Depois de seis meses juntos, não era natural que Changbin dissesse pelo menos um ‘eu amo você’?

Apenas um?

E mesmo assim, óbvio desse jeito, o um nunca veio.

Talvez Changbin não o amasse de verdade. Talvez Changbin gostasse muito, muito de Felix, mas não era amor mesmo.

Não, não, Changbin não faria metade das coisas que fazia por Felix por alguém que gostasse muito, muito. Ele definitivamente amava Yongbok, mas talvez não do mesmo jeito que Yongbok o amava. 

Para alguém que precisava de reafirmação constante, Changbin jogava o pior dos jogos.

Todas as suas quatrocentas paranóias tinham razão? Ou elas não passavam de… paranóias?

Felix já não sabia mais. Só sabia que o coração doía e o sono não vinha, às vezes. Olhava para Changbin e queria gritar um “por favor, diga que me ama pelo menos uma vez”, mas desistia sempre que via o rosto feliz do mais velho.

No aniversário de seis meses deles, Changbin não conseguiu não notar a expressão estranha de Felix. Parecia deslocado e com a cabeça presa num planeta distante. Com olhos estreitos, afundou o dedo na casquinha e meteu o sorvete na bochecha corada do garoto.

― Yah! Hyung! ― exclamou, afastando-se num pulo.

― ‘Tava com a cabeça em outro lugar ― explicou, sorrindo. Umedeceu os lábios e beijou o rastro de sorvete do rosto dele, observando a tez avermelhar um pouco mais.

― Hyung… estamos em público ―  sussurrou, olhando ao redor. Estavam em um parque.

― E daí? ― Ondulou as sobrancelhas. ― Se alguém mexer com a gente, eu dou um jeito.

― Briguento como sempre.

― Não vou mudar. Agora, por que a sua expressão está assim? Aconteceu alguma coisa?

Felix arregalou um pouco os olhos.

― Não aconteceu nada demais.

― Mentiroso. Você está meio triste. Não releu aquele livro, certo? ― perguntou, desconfiado.

― Não, hyung. Não tem nada a ver com Aquiles ou Pátroclo… não desta vez.

― O que é então?

Felix mordeu os lábios. Aquela seria a hora certa para despejar suas inseguranças em Changbin? Deveria esperar um pouco mais? Não sabia. Não sabia! O coração apertava e ele queria respirar mais fundo, mas não conseguia. O mundo mantinha-se de ponta cabeça e sem respostas.

Changbin podia até ver as engrenagens de Yongbok funcionando.

― Hyung… é que… é idiota.

― Você ‘tá claramente sofrendo, não é idiota.

Felix suspirou.

― Sabe… é que… em seis meses, você nunca… você nunca…

― Eu nunca o quê?

― Você… hyung, você nunca disse ao menos um ‘eu te amo’ para mim.

Era estranho. Felix sentiu um enorme, enorme alívio por ter falado, mas ao mesmo tempo parecia que tudo estava dez vezes mais confuso. Changbin mal respirava; mantinha as sobrancelhas juntas, encarando Yongbok com os olhos tempestuosos.

― Você acha que eu não gosto de você?

Felix quis chorar.

― Eu acho que você gosta de mim, mas não acho que você me ama. E eu te amo, hyung. Eu te amo mesmo, de verdade, e eu queria que você me amasse de volta.

Seo Changbin quis morrer. Sabia que tinha que abrir a boca e falar alguma coisa. Qualquer coisa. Tinha que dizer ‘eu também amo você’, mas não saiu. Não saiu porque nunca havia saído antes. As sobrancelhas, antes juntas, derreteram para formarem uma expressão desolada.

Mais velho, Changbin sabia que havia amado Yongbok desde que sentiu o seu cheiro gostoso. Mas naquela época, jovem, inseguro e sempre à beira do mundo, não conseguia entender o que era amor de verdade. A última vez que havia sentido algo parecido fora há muito, muito tempo por um alguém que já não existe mais.

Quando Changbin não disse nada por um longo tempo, Felix contraiu os lábios, reuniu toda a coragem que tinha e foi embora. Não conseguia ficar mais ali, encarando uma expressão vazia de quem havia caído na real sobre os próprios sentimentos. Pelo menos, era o que Yongbok achava ― que Seo Changbin finalmente entendeu que jamais seria capaz de amá-lo de volta.

Parte de si achou que havia sido um erro tocar no assunto. Caso mantivesse o bico fechado, com certeza aproveitaria mais tempo ao lado dele. Mas parte de Felix não aguentava mais viver com aquela dúvida, inconstância e paranóia que iriam estragá-lo para qualquer outro relacionamento.

Não era um fim, nem de longe. Eles só necessitavam de um tempo para colocarem as coisas no lugar. Pelo menos, é o que Yongbok achava.

Changbin nunca quis tanto morrer. Nem sabia como havia conseguido chegar ao apartamento ― o corpo funcionando no piloto automático durante todo o trajeto. Não conseguia parar de pensar em Yongbok; não conseguia parar de pensar no rosto fatigado e choroso e nem nos dedos tensos ao redor da casquinha de sorvete.

Changbin era um amontoado de tragédias. Prometeu a si mesmo que quebraria quem ousasse fazer Yongbok triste ― e, pelo jeito que chegou em casa e afundou no colchão, ele estava cumprindo a promessa direitinho.

Nunca havia chorado tanto na vida. Sentiu que, de novo, não passava de um garotinho assustado dentro do guarda-roupa, escondendo-se entre casacos de inverno como a sua mãe havia mandado. Sentia que, de novo, era o cara que viu o pai abrir um buraco na própria cabeça. Sentia-se patético, fraco e abandonado.

De novo.

Talvez as coisas estivessem certas. Talvez fosse melhor deixar Yongbok bem longe do seu ímã gigante de problemas. Talvez Yongbok merecesse alguém que não hesitasse ao falar ‘eu te amo’. Alguém melhor, capaz de garantir um futuro seguro ao seu lado.

É, talvez fosse melhor assim.

Naquele dia, Changbin adormeceu sentindo que dentre todos os outros dias, aquele havia sido pior.


 

Changbin e Yongbok mantiveram distância por três semanas. Ainda muito machucados ― por motivos diferentes ―, não tinham ainda a coragem necessária para voltarem a conversar. Caso Changbin tivesse um pouquinho mais de maturidade, entraria rapidamente em consenso com os próprios neurônios, mas algumas pessoas demoravam mais que as outras. 

As aulas no Bora retornaram e Yongbok não foi à primeira aula de violão do ano. Jeongyeon e as crianças pareciam brilhantes ao reverem Changbin, todavia o garoto não conseguiu retribuir o mesmo nível de serotonina, por mais que desejasse ter retribuído.

O Seo nunca havia trabalhado tanto na vida; na loja de Bang Chan, limpava tudo quanto era canto e atendia os clientes da melhor forma possível para ganhar tempo e espaço mental ― caso pensasse um pouquinho em Yongbok, o seu ânimo ia para o ralo.

Nunca teve tanta vontade de vê-lo. Era como se sua alma coçasse, inflamada. Yongbok era como uma dor fantasma que não passava de jeito nenhum ― o seu cérebro já havia se acostumado com ele e com o seu cheiro por perto. Queria tanto só comprar um balde de chocolate e… visitá-lo. Abraçá-lo. Dizer que sentia muito e que, na realidade, ele era a única coisa que amava.

Mas Changbin não conseguia; não arranjava coragem. E a cada noite mal dormida, a saudade crescia desproporcionalmente.

Foi numa manhã de sexta-feira, uma mais quente que as anteriores, que tudo mudou. O celular de Changbin vibrou no bolso e, num reflexo esperançoso, encarou o número desconhecido com sobrancelhas juntas.


 

Desconhecido [10:02 am]

Changbin sunbae, aqui é Yang Jeongin. Eu sou amigo de Felix e peguei o seu número com ele.

Eu sei que vocês não estão bem agora, mas eu preciso contar isso para você.

A avó do Felix faleceu hoje mais cedo.

Desconhecido [10:03 am]

Foi bem de repente. 

As vizinhas de Felix ligaram para ele agora pouco, já que ele estava aqui na escola.

Desconhecido [10:04 am]

Eu sei que você se importa, sunbae, então estou falando isso para você.

Pelo o que ele me disse, vários parentes tomaram as medidas necessárias, mas ele está acompanhando a autópsia junto a eles.

Creio que o funeral seja amanhã ou, quem sabe, hoje mesmo.


 

Tudo rodou por um instante. Changbin apoiou-se à bancada do estúdio de tatuagem, encarando as mensagens por diversos segundos. Não conseguia acreditar. Vovó Lee morreu? Sentindo a súbita vontade de vomitar, Changbin caiu de cócoras no chão.


 

Changbin sunbae [10:06 am]

Você sabe onde ele está agora?

 

Desconhecido [10:06 am]

Fazendo o reconhecimento do corpo.

Jisung hyung está com ele.

Provavelmente ele voltará para casa ainda hoje. Eles precisam vesti-la para o funeral.

Desconhecido [10:07 am]

Vá vê-lo, sunbae.

Mande uma mensagem para ele.


 

Changbin sabia que deveria, e rápido, consolá-lo. Se estava doendo para ele, para Yongbok com certeza estava sendo o inferno. Com as mãos trêmulas e zonzo, ficou encarando a tela do celular até ela apagar. Não conseguia sair dali ― mal conseguia respirar, quiçá levantar a cabeça ou andar. 

Yongbok provavelmente chorava o coração para fora. Ele precisava de todo o apoio que pudesse ter agora, mas Changbin não tinha certeza se Felix precisava dele. Não sabia se fazia, no fim das contas, alguma diferença. Provavelmente, só arranjaria um jeito de estragar ainda mais as coisas do jeito fantástico que só ele sabia fazer.

Mergulhado em culpa, Changbin não foi ao encontro de Yongbok. Queria muito ter ido, mas pensava que só iria feri-lo ainda mais. Não foi no dia seguinte também. E nem no outro. Ou no outro. E no dia depois desse, também não foi.

Yongbok não ia às aulas de violão e, aparentemente, ele não comparecia mais à escola também. Foi a diretora Jeong que, com uma expressão surpresa, explicou a situação a Changbin.

― Felixie se mudou para Jeju, Changbin-ah. Que estranho, pensei que soubesse.

Como um robô, Changbin assentiu e foi embora.

Daquele jeito, bem assim, Lee Yongbok partiu. E, naquele momento, algo em Changbin sussurrou “será para sempre”. Jeongin e Jisung mandaram algumas mensagens para Changbin, mas saber que os dois existiam significava que Felix existia, o que o lembrava que nunca mais estaria ao lado dele.

Simples assim.

Lee Yongbok partiu achando que Seo Changbin não ligava. Achando que Seo Changbin não o amava.






 

Os ombros de Changbin foram cutucados gentilmente e, assustado, ele pulou no assento e assumiu uma pose defensiva.

― Perdão, senhor ― o piloto da balsa disse, parecendo mesmo apologético. ― Já chegamos a Jeju.

Changbin olhou ao redor, apertando os olhos ao se deparar com um céu azul pálido e algumas pessoas desembarcando lá embaixo. Com um grunhido de quem dormiu torto, esfregou a nuca, agradeceu ao homem de meia idade e, troncho, guiou a bicicleta pelo corredor. 

Pisou no solo de Jeju com um suspiro profundo. Provavelmente a cara estava amassada por ter dormido no meio da viagem de três horas, mas ele não conseguiu evitar; era tanto… nada azul ao redor que só seguiu o embalo das ondas tranquilas. Esfregando o rosto, terminou de guiar a bike para longe das pessoas, em direção à avenida.

Changbin estava todo dolorido. Uma vez que deitou para descansar, era fatal que o cansaço viesse todo de uma vez. Ainda dentro do terminal, Changbin ajeitou o celular na bicicleta e inseriu o endereço de Felix. Samyang Dong, Jiseok 10gil, 13-14, apartamento 4.

Não se esqueceria tão agora.

Era mais perto do que o esperado.

Changbin seguiu de bike pelas ruas planas. Era tudo muito bonito, mesmo em época de frio. O sol, devagar, aproximava-se do horizonte visível.

Com tudo mergulhado num brilho laranja aprazível, Changbin pedalou pelas ruas, mais devagar do que havia pedalado até agora.

À medida que aproximava-se do endereço, algo dentro de si começou a pulsar. Será que essa era a escolha certa? E se Felix se recusasse a falar com ele por, talvez, ainda estar machucado demais? 

Minado em ansiedade e com mãos trêmulas, Changbin parou em frente ao edifício no endereço. A escola infantil de taekwondo estava ali, acenando para ele.

Devagar, manobrou a bicicleta até ficar cara a cara com o interfone. Sem pensar duas vezes, porque iria desistir se pensasse demais, pressionou o número quatro. 

― Vou desmaiar ― sussurrou para os próprios botões, tirando o suor ansioso do rosto ao apoiar o ombro na parede ao lado da porta de ferro. Conseguiu respirar um pouco mais fundo, à espera de uma resposta.

― Sim? 

Changbin emudeceu por um segundo.

Sem dúvida alguma aquela era a voz de Lee Yongbok. Meio metálica graças ao viva-voz, mas era a voz dele. A voz barítona e doce de Felix. A voz que mais amava no mundo.

Changbin suspirou, aproximando-se do microfone.

― Yongbok-ah- 

Foi o bastante. Arregalou os olhos quando a luz vermelha apagou sem mais nem menos. Felix havia desligado em sua cara. Changbin riu amargo, quase sem voz.

Então era isso. Apoiado na parede do edifício, Changbin encarou a bicicleta verde-água. Claro que sempre existiu essa possibilidade; Felix não era obrigado a aceitá-lo de volta. Ele escolheu correr o risco. Acariciando o guidão gasto da bicicleta, tomou um segundo de coragem antes de se desencostar da parede e voltar a andar.

Changbin virou o corpo bem a tempo de enxergar o garoto parado ao batente da porta. A voz travou na garganta, presa perante a visão de Lee Yongbok. Depois de três anos sem vê-lo, era como se estivesse colocando os seus olhos sobre aquele rosto perfeito pela primeira vez.

Como já havia previsto, derreteu inteiro. Cada molécula tremeu e Changbin fora invadido por aquela onda de paz que não sentia há anos.

― Seo Changbin ― ele murmurou, em choque, mal piscando. 

O sorriso que rasgou os lábios do mais velho foi vergonhoso e quase ridículo, mas foi sincero ― talvez o mais sincero de todos. Felix tremia inteiro, vermelho até as clavículas. Até suas sardas, suas amáveis sardas, estavam ali para recebê-lo.

Changbin ergueu o boné para Felix vê-lo melhor. 

― Antes de falarmos qualquer coisa, eu só queria dizer que eu sinto muito ― começou aquela fala nada ensaiada e trêmula. ― Sinto muito por tudo. Sinto muito por ter falhado com você quando mais precisou. Sinto muito, muito mesmo por sua avó. Sinto muito por ter te feito chorar. Yongbok, eu amo você. Sempre amei. Durante todo esse tempo, não pude me perdoar por ter te feito achar que não. Eu só era muito idiota, muito imaturo. Não via futuro algum porque não achava que fosse capaz de conquistar alguma coisa e eu sentia que decepcionaria você a qualquer momento. E eu decepcionei. Sinto muito, Yongbok. 

Felix deu dois passos para frente. Estava descalço e vestindo apenas bermudas, tinha os lábios brilhantes e cada fio de cabelo úmido. Devagar, encostou as pontas dos dedos nas bochechas de Changbin. Estava meio suado, olhos arregalados e a boca bonita entreaberta. E exatamente como há três anos atrás, emanava um aroma de vida tão indescritível que, caso fosse numa outra situação, já estaria enjaulado nos braços do mais velho.

― Changbin hyung ― pronunciou como se não sentisse aquelas palavras na boca há muito tempo. As lágrimas já amontoavam nos olhos, e piscá-los uma vez foi o suficiente para fazê-las escorrerem. ― Eu não acredito…

― O mundo está acabando ― disse como se não fosse óbvio ―, e eu quero viver meus últimos meses ao seu lado, Yongbok. Esses três anos vêm sendo o mais terrível inferno para mim. Eu não consigo ouvir Geeks direito e nem olhar para o violão que você me deu sem me lembrar de você. Eu estou há anos tentando terminar de ler A Canção de Aquiles, mas eu não consigo porque esse foi o último livro que você leu ao meu lado. Eu estou absolutamente apaixonado por você desde o dia um. Eu sinto muito por ter quebrado o seu coração. Perdão por ter sido indiferente, imaturo e egoísta. Eu não soube amar você direito quando tínhamos todo o tempo do mundo.

Felix agarrou o rosto de Changbin e o trouxe para perto num abraço firme e quente. Chorava contra o ombro do Seo, olhos bem juntinhos ao tentar raciocinar e absorver direito o que estava acontecendo ― e o que iria acontecer.

― Changbin hyung ― sussurrou, tremendo nos braços firmes do garoto. ― Isso só pode ser um sonho.

― Não é um sonho ― respondeu contra o cabelo cheiroso de Felix. ― Prometo que não é um sonho ― sussurrou, arrastando os dedos trêmulos pela derme suave.

― Eu te perdoo, hyung ― sussurrou baixinho, acariciando a tez macia de Changbin. ― Eu te perdoo porque tentei odiar você, hyung. Cheguei a pensar que você me detestava, mas… hyung, eu… eu entendi como devia ser difícil para você. E está tudo bem. Eu… eu não te odeio. Eu consigo entender agora as ações que você tinha e a dificuldade de expressar o que você sentia e… está tudo bem. Eu também cometi erros quando éramos mais jovens. Eu sempre fui inseguro, mas deveria ter te abordado de outro jeito. Está tudo bem, eu prometo… pensei que nunca mais te veria. Pensei que me odiasse. Por que nunca disse nada? ― pediu por uma resposta com o rosto encharcado.

― Porque eu tive medo ― admitiu, baixinho, só para ele. ― Muito medo. Pensei que você me odiasse. Sempre fui covarde e te machuquei sem perceber. Nunca vou me perdoar por não estar contigo quando sua avó faleceu.

― Fiquei muito triste quando você não veio, hyung, Quando não me mandou mensagem alguma. Mas… Jeongin e Jisung me disseram que você parecia muito triste quando te viam às terças ― admitiu, fungando. ― Eu também tive medo de falar com você de novo. Achava que concluiu que de fato não me amava e eu não conseguia suportar o pensamento.

― Não ― refutou a teoria de Felix, agarrando o rosto dele. ― Não. Nunca. Você estava em processo de luto e triste por minha causa. Se tem alguém aqui que é culpado, sou eu. Foi necessário um asteroide para eu tomar coragem pelo menos uma vez na vida. 

Felix não quis rir. Não queria, mas não conseguiu aguentar. Empurrou Changbin pelos ombros, deixando a risada ecoar por todo o térreo. Felix, na realidade, já havia perdoado Changbin há muito tempo em seu coração. Agora, era fácil encará-lo, abraçá-lo e acolhê-lo. Ficaram assim, sorrindo um para o outro por um tempinho.

― Hyung… vamos.

Changbin fechou os olhos e respirou de verdade pela primeira vez desde que havia saído de Seul. Limpou as lágrimas com o antebraço, soltando um longo e aliviado suspiro.

― Você não sabe como é bom ouvir isso.

― Eu… consigo ter uma ideia ― murmurou, empurrando o portão para garantir a passagem do Seo. Quando viu que o mais velho agarrou os guidões da bicicleta, avisou:

― Pode deixá-la aqui mesmo.

― Não, eu vou subir com ela. Tenho medo de roubarem.

― Você alugou?

― Não. Ela que me trouxe de Seul.

A boca de Felix caiu um pouco.

― Você veio de Seul para cá... de bicicleta?

― Yep ― Changbin afirmou, sustentando o veículo nas mãos e subindo os degraus rapidinho. Felix seguiu logo atrás, ainda muito chocado. Por mais que Changbin quisesse desmaiar graças às dores generalizadas que estava sentindo, agora que estava perto de Yongbok, ia fingir que nada doía.

Afoito demais por ter escutado a voz de Changbin, Felix deixou a porta do apartamento escancarada. Meio envergonhado por ter sido pego no flagra, pigarreou e entrou por último. Embaraçado e nervoso, não sabia o que fazer com as próprias mãos. Fazia um tempinho desde a última vez que tivera visitas.

― Hyung, sobre a bagunça- 

― Não tem nada bagunçado ― Changbin o assegurou, encostando a bicicleta à parede. ― Sério mesmo, não se preocupe com isso.

Felix desocupou o sofá, tirando roupas que com certeza tinha largado em cima do estofado há uns dias. Changbin enfiou as mãos nos bolsos, olhando bem ao redor. Era modesto, mas confortável e bonito. As paredes tinham um tom calmo de azul e plantinhas cresciam saudáveis sobre prateleiras.

― Sua casa é bonita.

Felix andava de lá para cá.

― ‘Tá é bagunçada.

― Já disse que não tem problema. Vim sem avisar.

Felix então parou, no meio da sala e com uma calça jeans nas mãos, e encarou Changbin.

― Como tinha tanta certeza que acolheria você?

― Não tinha.

― Qual seria o plano b?

― Morar na rua. 

Changbin balançou o pé. Felix bufou.

― Hyung, você mudou, mas não tanto assim.

― Eu estava desesperado ― justificou-se, olhando para o piso. ― Era vir ou vir.

― Você não está cansado? Pedalou de Seul para cá… ainda não acredito.

― Nah, ‘tô tranquilo ― mentiu, casualmente desamarrando o violão das costas e sentando-se ao sofá. Impediu a si mesmo de soltar um grunhido satisfeito. ― A gente faz coisas loucas por amor.

Felix caiu no sofá bem ao lado de Changbin. Rápido, arrancou o boné da cabeça dele e o encarou.

― Você está mentindo.

― Sobre?

― Sobre não estar cansado ― disse como se fosse óbvio. Apertou as bochechas de Changbin, aproximando o rosto para inspecioná-lo melhor. ― Você é louco. Não, não faça uma piadinha ― resmungou, tapando a boca de Changbin. ― Você é mesmo louco.

Changbin limpou as lágrimas restantes do rosto de Felix com o polegar.

― Hyung… eu nunca esqueci você. Nem por um dia. 

― Você não sabe o quão aliviado eu estou ― Changbin admitiu, acariciando as bochechas de Felix. ― Pensei que ia morrer se não te visse. Mesmo que você me mandasse embora, pelo menos eu morreria satisfeito que vi sua cara uma última vez. Deveria ter vindo antes. Perdão.

― Não acredito que veio de bicicleta para cá ― Felix sussurrou, aproximando-se. ― Você é louco ― repetiu, tremendo de amor antes de colar a boca a de Changbin.

O Seo recostou no sofá, acolhendo o corpo de Felix em seus braços enquanto o beijava de volta. Ah, como havia sentido falta disso! Arrastou os dedos pela pele exposta, provocando terremotos pelo corpo esguio e moreno. Tinha gosto de pasta de dente e… certo. Yongbok parecia viver em seus braços, agarrando-se à camiseta e beijando Changbin daquele jeito desesperado de quem não o beijava há anos.

Changbin sentia uma vontade incontrolável de chorar. Parecia que, de novo, tudo na sua vida estava certo. O elefante branco sentado sobre o peito desapareceu, substituído por uma leveza que outrora acharia ridícula.

― Obrigado, hyung ― Yongbok chorou contra os lábios do mais velho. ― Obrigado por pensar em mim. Obrigado por vir. Eu ‘tô com tanto, tanto medo. Quando ele surgiu no céu noturno há alguns dias, eu não parei de chorar.

― Eu sinto muito ― Changbin sussurrou, acariciando as costas expostas. ― É uma merda que você não vá conseguir realizar os seus sonhos.

― Eu fico pensando, sabe… os bichinhos não sabem o que está acontecendo. Eles vão pedir ajuda a nós, desesperados, mas não vamos conseguir ajudá-los. Eles vão pensar que decidimos abandoná-los, que não ligamos. Eles irão morrer se sentindo traídos. Eles morrerão não sabendo nem o que está acontecendo. Por que não é um vírus ou alguma merda assim que só afeta humanos?

― Mas aí os animais seriam deixados sozinhos na Terra ― Changbin tentou consolá-lo. ― Escuta: todos nós vamos morrer juntos; eles não ficarão sozinhos. Fora que eles vão cheirar o desespero nos humanos também. Eles são espertos, entenderão que é algo maior que todos nós. Você acredita em Deus, não acredita?

― Sim, eu acredito.

― Eu tenho certeza que Deus poupará eles da dor ― disse a primeira melosidade que veio à cabeça. No fundo, desejava que fosse verdade. ― Eles não vão sentir nada; morrerão em paz. Eu sei que é injusto morrer desse jeito, incapaz de fazer qualquer coisa para impedir, sabendo que outras pessoas tiveram a oportunidade de viver uma vida feliz e completa, morrendo de velhice e que isso foi roubado de nós, mas… não podemos fazer nada. Se há ou não um motivo, jamais saberemos.

― Você não ‘tá com medo?

― É claro que sim ― admitiu, e essa era a primeira vez que o fazia em voz alta. ― Morrer esmagado por uma bola enorme pegando fogo não deve ser uma experiência legal, mas… ― Changbin deu de ombros. ― Pelo menos será rápido. E eu estarei contigo. Vai ser um prazer.

Felix balançou a cabeça.

― Eu tenho medo de sentir dor, hyung.

― Eu também… mas algo em mim diz que estaremos tão loucos em adrenalina que nem vamos sentir nada.

Felix ajeitou-se melhor, colocando a cabeça contra o peito de Changbin. Suspirando, ouviu o coração do Seo ― rápido e nervoso. Felix então fechou os olhos.

― Será que nos encontraremos de novo, hyung?

― Como assim?

― Eu vou ficar muito bravo se eu morrer e descobrir que acabou. Que não tem nada depois.

Changbin riu.

― É a pior sensação quando você pensa que tem cenas pós-crédito e não tem nada.

― É. ― Felix riu também. ― Mas eu acredito que há algo depois, uma vida num plano superior e distante. Espero que a gente se encontre lá. 

Changbin acariciou o topo da cabeça de Felix.

― Mesmo se o Céu de fato odiar gays, bolar uma armadilha muito bem feita e nos jogarem um continente de distância, é só esperar por mim. Eu vou achar você. Não é como se eles pudessem me matar. De novo.

Felix riu, apertando Changbin um pouco mais.

― Se Deus de fato odiar gays, nós iremos para o inferno, hyung.

― Melhor ainda. Os caras que quebram regras estão lá. É só roubar um carro, uma bicicleta ou um tapete voador, vai saber. No Céu, com certeza os caras são muito certinhos, ninguém me ajudaria.

― Deve ter pedágio no Céu ― Felix teorizou.

― E provavelmente devem te dar um lança-chamas no seu primeiro dia de inferno.

Felix respirou fundo.

― Eu senti a sua falta, hyung. Muito.

― Eu também senti a sua falta. Muito.

 

 

― Não, você tem que clicar na câmerazinha embaixo ― Changbin gritava para o celular, apontando para baixo. ― Clica na câmera, porque aí vai mostrar vocês.

― Hã? Você não ‘tá vendo a gente?! ― Vovó berrava, confusa.

― Não, não estou! Vira a câmera, como eu mostrei. ― Changbin apontou para baixo. ― Clica na tela uma vez e clica- isso! ― berrou quando os dois apareceram. ― Isso! Agora sim, não mexe mais em nada, eu ‘tô vendo vocês! Deixa assim!

― Oi, Changbinnie! ― Vovô berrou, acenando para a tela. ― Você acredita que só encontramos o dinheiro que você deixou no meu bolso hoje?! Você é um grande safado!

― Comprem algo legal com o dinheiro. Quero que usem ― pediu, apontando para eles. ― Vou ficar chateado se não usarem.

― Vamos usar. A gente vai comprar um bolo bem legal para comemorarmos nosso aniversário de casamento! ― Vovó exclamou, feliz. ― Será nosso aniversário de número sessenta.

― Woaah, estou com inveja… ― Changbin choramingou. ― A vida é injusta, vovó.

― Cadê o garoto? ― Vovó interrompeu para perguntar, não sabendo direito como mexer. ― Só ‘tô vendo você.

Felix timidamente apareceu também. 

― Aqui, vovô, o Yongbokie ― anunciou, agora a tela mostrando um garoto absurdamente bonito e loirinho ao lado de Changbin.

― Olá! ― Felix acenou, constrangido quando os dois velhinhos começaram a berrar o quão bonito Yongbok era. ― Obrigado, vocês dois também são muito bonitos. 

― Changbinnie, seu jogador! ― Vovó berrou, tapando o rosto. Ela estava chorando. De orgulho? De saudade? 

― O garoto é muito bonito mesmo ― vovô disse à mulher. ― Mas Changbinnie é esbelto e forte, não estou surpreso.

Changbin estava passando mal de tanto rir.

― Yongbok, quantos anos você tem? ― Vovó perguntou.

― Vinte e um ― o garoto respondeu, ansioso.

― Woaah, você é uma graça. Que Deus te abençoe muito.

― Vovô, você reparou como ela perguntou a idade dele antes? Se eu fosse você, ficava de olho porque essa velha ia te trocar pelo Yongbokie ― Changbin gracejou, sorrindo para os dois.

― Eu vou esconder todas as garrafas de soju, quero ver ela vir com essas graças ― ele resmungou. 

― Esconde para você ver o que acontece com os seus remédios ― ela ameaçou.

― Começou ― Changbin reclamou, balançando a cabeça. ― Se vocês começarem a brigar, eu vou desligar.

Depois de uma boa hora jogando conversa fora, eles desligaram com acenos felizes e saudosos.

― Então você virou vizinho deles depois que se mudou do apartamento de Chan hyung?

― Sim, fiquei perto deles por três anos ― contou, um sorriso agridoce esparramado nos lábios. ― Já sinto muito a falta deles. 

― Eu imagino, eles são muito engraçados ― Felix concordou, acariciando o joelho de Changbin.

― Eu cuidava sempre deles… quando a notícia estourou e as invasões começaram, eu morei com eles por umas duas semanas. Ficava dia e noite espiando a noite para verificar que ninguém entrasse. O vovô tem sérios problemas de pressão, se ele levar um susto…

― Acho que dentre todas as notícias, essa da invasão de áreas mais pobres me deixou mais nervoso. Eu soube de casos de velhinhos morrendo de susto não apenas por conta das invasões, mas também pelo jeito que noticiaram. Eles não pensaram nisso quando colocaram a repórter mais desesperada possível no ar. Sinto que, caso minha avó estivesse aqui ainda, ela seria mais uma vítima.

Changbin acariciou as mãos de Felix, juntando as sobrancelhas.

― Tudo bem, hyung. Vou vê-la em breve. Ela deve estar num lugar bem melhor e mais animado agora, fazendo comida gostosa para outras pessoas. Era o que ela mais gostava de fazer.

― Ela faz a melhor sopa de algas do mundo ― Changbin acrescentou.

Orgulhoso, Felix sorriu e assentiu.

― Ela faz, sim.


 

Um mês se passou desde que Changbin havia chegado a Jeju.

Eles faziam comida juntos, estendiam roupas juntos e tocavam música juntos também. Felix havia aprendido a tocar Officially Missing You e a sua versão era a melhor de todas (fonte: ele mesmo). Participavam de conversas por vídeo-chamadas diárias com Jeongin e Jisung, que mesmo distantes mantinham-se presentes na vida do Lee. Os dois quase caíram de suas cadeiras ao verem Changbin pela primeira vez numa das lives, mas quando tudo foi explicado, eles aceitaram o Seo ao grupinho.

Às tardes, andavam de bicicleta — a bike de vovô Yoo não cedia de jeito algum — e também caminhavam de mãos dadas pela areia fofa das praias de Jeju, mesmo que fosse frio demais às vezes.

Uma vez, Felix empurrou Changbin para dentro do mar gelado num dos dias mais frios do ano. Quando eles chegaram em casa, foi atacado com cócegas até chorar de rir. Mas, sendo o bom namorado que é, logo ele compensou o super dano — ou seja, um nariz escorrendo — com uma sopa de arroz muito quentinha e gostosa. 

Eles assistiam aos reruns dos piores shows do mundo no Youtube. Changbin ficava super irritado quando pessoas burras não acertavam perguntas óbvias, sendo obrigado a chutar um dos bichinhos de pelúcia de Felix contra a parede.

Eles ouviam muita música. Leram e ouviram muitos livros no rádio de Changbin enquanto observavam estrelas.

Finalmente terminaram A Canção de Aquiles. Changbin chorou por algumas horas seguidas escondido no banheiro. Odiava Madeline Miller e a sua história estúpida de semideuses gregos gays.

Faltavam dois meses e meio para o fim do mundo.

Era até ridículo dizer isso, mas era insalubre o quanto eles transavam. Não havia um lugar da casa que não havia testemunhado os orgasmos cegantes dos dois. Os corpos quentes se lembravam do contato antigo, com certeza, vibravam e ganhavam vida e energia sob o toque alheio, excitados graças à atenção que há muito era negada.

― Quantas tatuagens são agora? ― Felix perguntou uma vez, deitado no colchão contra o corpo firme de Changbin. O Lee não sabia explicar, mas havia algo inexplicável sobre as tatuagens. Nos últimos três anos, o Seo havia ganhado músculos e mais tinta.

― Não sei… muitas ― sussurrou, acariciando os ombros expostos de Felix. ― Mas estou decepcionado contigo.

― Por quê?

― Não reparou nesta aqui. ― Changbin dobrou o braço, expondo uma pequena tatuagem no bíceps direito. Era um coração com um y dentro. Em meio às incontáveis outras, seria loucura reparar nela. Mas agora que Felix havia reparado, ele não conseguia mais não enxergá-la.

― Hyung... quando? ― perguntou, sem palavras, acariciando a tinta impressa.

― Sei lá ― murmurou, mantendo o braço no lugar. ― Só lembro que era seu aniversário… woah, seus aniversários eram os piores ― resmungou, balançando a cabeça. ― Enchi a porra da minha cara e me tatuei. 

― Você se tatuou? Bêbado? ― Felix cobriu o rosto. ― Por que estou surpreso? 

Changbin riu, puxando-o pela nuca para beijá-lo na testa.

― Não tem vontade de fazer uma tatuagem? Se tiver, a hora é essa. Eu faço as honras, se quiser.

― Não sei, hyung… talvez. Mas tenho um pouco de medo ― admitiu, rindo. ― E se doer muito?

― Não vai doer nada se você fizer nos lugares certos.

― Não sei, hyung… eu não sei o que tatuaria. Acho que não estou a fim de fazer nada.

― Tudo bem, é claro ― assegurou, sorrindo. ― Eu queria conseguir fechar o corpo todo. Como um yakuza.

Felix ainda dedilhava a pele marcada do mais velho. Agora havia todo o tipo de coisa, desde seres mitológicos poderosos a objetos do cotidiano, como uma garrafa de soju. Felix encontrou, também, coisas bastantes aleatórias, como um gatinho fofo, a Morte andando de skate, caveiras soltando fumaça e a silhueta da Coreia do Sul. Sorria quando encontrava um detalhezinho, cada tatuagem acrescentando um pouco à personalidade do garoto.


 

Com dois meses para a destruição da Terra, Titã era um monstro no céu. Cobria um raio ridículo no meio da noite, tão grande que era necessário deitar no chão para enxergá-lo todo. Conseguiam ver as crateras e cada linha ao seu redor, tão bonito quanto aterrorizante.

Junto a outras estações espaciais, a NASA enviou ao espaço uma cápsula que vagaria por cem anos antes de voltar à Terra. Nela, havia as melhores coisas da raça humana: Beatles, Michael Jackson, internet, esportes, Jane Austen, Beyoncé, cachorros, baleias azuis e eventos históricos que marcaram a nossa humanidade desde o início. Lacrada de um jeito que não poderia ser queimada, dissolvida ou esmagada, a cápsula só podia ser aberta caso a tampa fosse movida numa sequência específica ― e a sequência estava escrita no metal da cápsula. Ou seja, somente vida inteligente conseguiria abri-la e se lembrar de nós, frágeis e estúpidos humanos.


 

Eles tinham crises, às vezes.

Nas crises, choravam o dia inteiro. Bebiam muito e acordavam na manhã seguinte com ódio de nada e tudo ao mesmo tempo.

Pedregulho do caralho.

Não houve Natal pior que o daquele. A única coisa boa sobre a semana do dia vinte e cinco foi que Eiichiro Oda postou uma nota imensa, explicando, timtim por timtim, o final de One Piece. 

Os fogos do ano novo pareciam lágrimas gigantes e coloridas. Nada era pior que olhar para cima e tentar se distrair com os fogos e... Opa! olha só o motivo da sua, minha, nossa morte bem ali!

Alguns artistas postavam online desenhos fofos sobre Titã. Colocavam olhinhos fofos e frases como abraço fatal ou oi, vamos ser amigos. Changbin tinha muita raiva desses artistas; que se foda olhinhos fofos nessa pedra do caralho. Felix sempre chorava de rir quando Changbin começava o sermão, puto.

A data e hora da colisão foram divulgadas. Sete de janeiro, às três e vinte e oito da manhã.

― Hyung, acho que deveríamos nos casar.

Changbin quase derrubou o seu sorvete. Com olhos arregalados, observou a expressão de Felix em busca de qualquer sinal de brincadeira.

― Estou falando sério ― Yongbok disse, apertando a mão de Changbin. ― O fim do mundo é em cinco dias. A gente deveria se casar.

― Você está certo ― Changbin respondeu, rindo, apertando de volta a mão de Felix. ― Deveríamos mesmo nos casar.

― Ah, que bom que concordou… eu tomei a liberdade de providenciar tudo ― Felix disse, tirando do bolso uma folha dobrada e dois anéis prateados.

Changbin ficou encarando a situação por um tempo.

― Calma... o quê? Quando?

― Hoje de manhã.

― Você foi ao mercado e ao cartório?

― E à joalheria ― acrescentou, rindo. Deslizou da cadeira, colocando o papel sobre o assento. ― A moça disse que eu poderia trazê-los… ela me deu os anéis de graça, como se não fosse nada… ― explicou, rolando as joias nos dedos. ― Ela parecia triste… mas ao mesmo tempo feliz também. Ela me disse que eu era o único que apareceu por lá em meses.

Changbin ajoelhou-se ao lado de Felix, olhando para a papelada e para os dedos do garoto.

― Tenho certeza que ela se alegrou. Pelo menos por um instante.

― É, também acho. A gente assina ou coloca os anéis primeiro?

― Faz diferença? ― Changbin perguntou com um sorriso. ― Me dá a sua mão. 

Devagar, Changbin deslizou o anel pelo dedo esguio de Felix. Além de encaixar direitinho, o Seo tinha certeza que não existia escolha melhor. Ansioso, Yongbok espelhou a ação no dedo de Changbin.

Compararam as mãos ao espalmá-las contra o assento da cadeira, observando, orgulhosos, como elas iam bem juntas. Não havia par melhor no mundo.

Assinaram os papéis e, sentindo que na realidade nada havia mudado de verdade, sorriram um para o outro em meio às idiotices. 

― Acho que o nosso casamento é o único com o fim previsível, hyung.

― Não diga isso, Yongbok-ah. A gente vai durar para sempre ― murmurou, dando um peteleco na orelha do mais novo. ― Agora levanta, vamos 'pra nossa lua de mel ― disse, muito sério, tirando do mais novo uma gargalhada besta.


 

Presidente Moon Jaein voltou à televisão. Com a pose séria, mas claramente quebrado, disse a todos que sentia orgulho de seu povo; milênios de honra e dignidade não seriam exterminados nunca e todos eles partiriam em paz.

Às oito da noite às vésperas do fim do mundo, Changbin ligou para os Yoo. Buscava por tudo, incluindo conforto.

― Não tenha medo, Changbinnie ― vovó disse, muito calma. ― Tenha coragem. Eu sei, é difícil, mas partiremos em paz. Sei que sim. Aqui em Seul há uma barulheira danada na rua. As pessoas saíram de casa, parece um evento enorme.

― É o último feriado, vovó ― gracejou, observando os detalhes no rosto dela pela última vez. ― Onde está vovô?

― Dormindo. Só vai acordar do outro lado ― ela brincou, e começou a dar risada. ― Também vou tentar dormir agora. Você vai ficar acordado?

― Sim, vamos ficar na cobertura do prédio. Parece idiota, mas quero vê-lo quebrando na atmosfera.

― Não é idiota. Se eu tivesse disposição e aguentasse ficar até tarde acordada, também o observaria entrando na nossa atmosfera. Ele pode ser gigantão e cruel, mas é bonito.

Changbin respirou muito fundo.

― Vovó… isso é um adeus, então?

― Claro que não. É um até logo. Não tenha medo. Eu te amo, Changbinnie.

― Eu também te amo, vovó. Changbin encarou a chamada encerrada por um tempo.

― Sabe um número que eu gostaria de ter agora? ― perguntou à Yongbok, que há pouco havia encerrado uma chamada de vídeo com Jeongin e Jisung.

― De quem?

― Diretora Jeong.

― Oh ― Felix produziu, baixinho. ― Sente falta dela, hyung?

― Às vezes. Ela é bem incrível. Quando disse a ela que não queria mais dar aulas, ela olhou bem para mim e disse: eu sei que você está destinado a coisas incríveis. 

― Ela sempre foi incrível. Acho que deve estar bem. Do jeito que ela é, deve ter montado um quadro com um cronograma de afazeres até o fim do mundo e está o seguindo religiosamente ― gracejou, sorrindo só de pensar em como sua ex-diretora estava lidando com o apocalipse. ― Sinto saudades dela, também.

― Ela deve estar bem melhor que muitos ― Changbin teorizou, olhando para a noite tranquila de Jeju. ― Queria que as coisas fossem diferentes. Queria que tivéssemos tempo.

Felix entendia o sentimento. Terminaram de ajeitar a casa e, com o violão e rádio em mãos, seguiram para a cobertura. A maioria dos vizinhos de Felix foi à praia, mas o garoto sabia que o senhor Choi passaria dormindo.

Sozinhos, sentaram-se no chão e observaram o asteroide que nunca esteve tão grande. Era arrebatador. Uma onda de ansiedade tomou conta dos dois ao observarem aquele titã, tão grande que já não era possível observá-lo totalmente. As crateras aumentavam gradualmente de tamanho, aproximando-se devagar até que às três e sete da manhã invadisse a atmosfera para, um minuto mais tarde, começasse a festa.

Felix brincava com os próprios dedos, ouvindo o coração em muitas partes diferentes do corpo. Televisões e rádios não funcionavam direito. O mundo estava silencioso, aguardando o seu fim.

Changbin não parava de olhar para Yongbok. Dedilhava as cordas, mas a sua atenção era total e absoluta do garoto ao seu lado. 

Seo Changbin nunca havia dito isso a ninguém, mas passou a acreditar em Deus porque precisava acreditar que teria chances de encontrar Felix de novo. Precisava encontrá-lo de novo. Precisava, da próxima vez, viver com ele até chegarem aos oitenta. Não importava se a próxima vez viria dali a bilhões e bilhões de anos, num planeta distante, com os dois agora tendo formatos estranhos e recheados de pernas e com nomes difíceis de pronunciar; eles se olhariam bem fundo nos olhos e saberiam de imediato ― Changbin conseguia esperar. Não pararia de procurá-lo nem por um segundo.

Temia a morte porque temia, mais que tudo, não encontrá-lo de novo. Temia o fim do mundo porque isso significava que o seu mundo pararia de existir do jeito que Changbin conhecia.

E isso era uma merda.

― Sabe, eu falo sério quando eu digo que vou encontrar você. Nem que tenha de pedalar mais quilômetros e quilômetros, eu vou encontrar você.

Felix sentia a garganta presa e olhos irritados, como se estivesse prestes a chorar.

― Eu te amo, hyung.

― Eu também te amo. Eu vou sentir a sua falta, Lee Yongbok.

Felix riu, aproximando-e mais.

― E eu vou sentir a sua, Seo Changbin. 


 

Titã afundou na atmosfera às três e oito em ponto. Flamejante e três vezes menor que a Terra, chocou-se contra a Ásia oriental e oceano Pacífico. O impacto arrancou a crosta de dez quilômetros da superfície terrestre, tão forte que ondas de choque viajaram a velocidade supersônica e quebraram as placas tectônicas sobre o magma, rachando o planeta em dois. 

Países da Europa e Ásia voaram pelos ares em alta velocidade na forma de detritos, que explodiram em baixa órbita terrestre e retornaram para destruir a superfície. 

Foi, na realidade, bem rápido. A nuvem de fogo com fragmentos incandescentes e descargas elétricas causada pelo atrito constante de detritos na atmosfera circundou toda a Terra, vaporizando a vida pelo seu caminho.

Em menos de vinte minutos, toda a superfície de Terra tornou-se inabitável. O nosso planeta azul, agora, não passava de uma bola incandescente de lava que brilharia em meio ao fogo por décadas, rachado e com pedaços lançados no espaço.


 

Poderia dizer que eles não sentiram dor ― poderia dizer que eles sentiram toda a dor do mundo, mas por razões diferentes; Titã, quando eles olhavam um para o outro, não passava de uma pedra superestimada.

O apocalipse, às vezes, tinha um cheiro indescritível, sardas, voz barítona e fazia tudo ― tudo mesmo, até cruzar o país inteiro de bicicleta ― valer a pena.


Notas Finais


o apocalipse de pompeia pode até ser fictício, mas nós estamos enfrentando alguns múltiplos e bem reais apocalipses ao redor do planeta. a boa notícia que é nós podemos ajudar.
eu sei que aqui do brasil nós não conseguimos fazer muita coisa, mas ALGUMA coisa a gente consegue fazer. eu vou deixar aqui embaixo algumas petições que ainda precisam ser assinadas, que ainda precisam de bastante atenção. por favor, se você ainda não assinou, assine, compartilhe e ajude a mudar as coisas.

https://yemenhumancrisis.carrd.co/
https://blacklivesmatters.carrd.co/#petitions
https://dalitlivesmatter.carrd.co/
https://trans--rights.carrd.co/
https://twitter.com/needyniamh/status/1277691283524464640?s=19 (abaixo do tweet há diversos outros com links pra petições)
https://twitter.com/pacinosangel/status/1276892836340867072?s=19 (uma thread com vários também)

Só para deixar bem claro, NENHUMA dessas petições pedem dinheiro. É só a sua assinatura.

dito isso!!
se você leu até aqui, meu nobre, amável e resiliente guerreire, só tenho que agradecer. do fundo do meu coração, obrigada por ter me dado uma chance. espero que tenha gostado!! caso você tiver alguma recomendação de música para colocar na playlist, me diga~

a descrição do titã dando um abraço caloroso na terra veio de um vídeo do discovery channel que simulava o encontro de um asteroide mesmo contra o nosso planetinha. é um vídeo na realidade bem legal audiajd,k é esse: https://youtu.be/bU1QPtOZQZU

se você gostou dessa fic, por favor, considere deixar um favorito e um comentário, eu vou ficar muito, muito feliz (*´▽`*) alimente essa pobre camponesa com biscoitos,,,
nos vemos numa próximaaaa!


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