Segovia, Espanha.
Setembro de 2019.
Não havia notado as lágrimas frias que já cortavam minhas bochechas, mas consigo sentir braços envolverem com precisão meu corpo estremecido, jogando-me para trás de uma mesa. Aqueles braços. Meu lar.
― Brenton. ― Minha voz desaparece, sufocada pelo o medo. Eu ergo o rosto para olha-lo nos olhos, e através das lágrimas, o encontro pálido, os olhos lacrimejados, a expressão espantada. Meus dedos tocam suas bochechas, e meu coração falha uma pulsação aliviada por vê-lo lúcido. ― Brenton...nós precisamos sair daqui.
― Eu sei... ― Ele murmura, o pânico e medo selando seus lábios. ― Eu não entendo o que porra está acontecendo, mas se ficarmos mais um minuto aqui, esses loucos darão um jeito em nós. ― Sua voz é marcada pelo o medo, mas ele segura meu rosto em suas mãos, e continua: ― Nós vamos começar a correr, e tente não se separar de mim, mas faça de tudo para se proteger, qualquer coisa, mas se proteja, está me ouvindo?
― Sim. ― Balanço a cabeça, meu rosto molhado pelas as lágrimas, e ele olha-me fundo pela a última vez antes de afundar seus lábios nos meus.
Assim, ele agarra minha mão e nos impulsiona para cima, o que faz com que nossos pés encontrem o chão com urgência, movendo-nos entre mesas deslocadas e objetos espalhados para todos os lados do salão do restaurante. Há um acumulado de pessoas que correm em direções diferentes, desesperadas, chocando-se entre si, lúcidos com ilúcidos, e a cena horrenda faz meu estômago embrulhar. Meu corpo institivamente colide com outro, fazendo-me desequilibrar em meus próprios pés, mas forço minhas pernas a manterem-se de pé, contraindo o aperto de minha mão ao redor dos dedos de Brenton.
No caminho para as portas de saída, minha mente congela quando dois homens exasperados se atiram na nossa frente, impedindo completamente a passagem, seus olhos negros observando diretamente a mim com atenção, um sorriso amargo crescendo em suas faces escuras, e sinto que já presenciei essa cena antes. No momento que começam a correr até a mim, eu deslizo o olhar para o vaso de flores que se encontrava a alguns passos de distância, e por reflexo, curvo o corpo ligeiramente para frente e a seguro nas mãos, dando-me o tempo exato para arremessar o objeto na cabeça de um deles. Enquanto o material de porcelana explode no ar em milhões de pedaços, despencando-se no piso, vejo Brenton acertar uma cadeira contra o corpo do outro, sentindo sua raiva depositada no solavanco, e agora, ambos os homens estão caídos no chão, o sangue se espalhando em meus pés, sem provocar qualquer arrependimento em meu coração.
― Vamos! ― Brenton grita rouco, voltando a segurar-me pela à mão.
A saída não estava longe, somente mais alguns passos e estaríamos do lado de fora do recinto, mas meus olhos seguem um corpo voar contra as portelas, fazendo a vidraçaria rachar-se nas extremidades, e em seguida, outro alucinado caminha impetuoso até o corpo e profere socos certeiros em seu rosto, um punho e depois o outro, transfigurando-o. Meu couro cabeludo fervilha, e eu preciso olhar para o lado oposto ou cairia zonza em meus próprios pés, e nessa pausa para retomar o fôlego, avisto prontamente uma janela com as trincas abertas.
― A janela! ― Eu sucumbo alto o suficiente para que Brenton me escutasse, e sem lhe dar o devido tempo para analisar a situação, eu o puxo para mais perto, fazendo-o acompanhar os movimentos frenéticos de minhas pernas.
A fenestra por ser relativamente baixa; o que eu agradeço em meus pensamentos, Brenton impulsiona o corpo para cima e apoia as mãos contra as bordas com facilidade, sem perder o tempo em jogar as pernas para o lado de fora, e logo suas mãos são estendidas na minha direção, ajudando-me a subir junto a si. Meu rosto é estalado pelo o choque frio do vento, mas a dor não é tão profunda quanto a fincada funda que unhas pontiagudas cravam contra meu tornozelo. Eu solto um grito de sofrimento e terror, as vistas perdendo-se o foco de que tanto necessito, e quando viro o rosto para trás, reconheço uma mulher turva que escorria ódio em seus olhos negros. Porque pareciam tão familiares?
― Porra! ― Quase no fundo, o urro desesperado de Brenton desperta-me de meu infeliz transe, dispondo-me da força em jogar o pé livre fortemente para trás e atingir em cheio a cabeça da mulher. Ela cambaleia, afrouxando a pressão de seus dedos em minha pele, mas antes que pudesse alcançar-me outra vez, sinto Brenton agarrar minha cintura e puxar-me de vez para fora.
Ele caí para trás comigo em seus braços, protegendo-me em seu peito, e o impacto do asfalto contra suas costas o faz gemer deliberadamente de dor. Aquele ruído aflora um soluço em minha garganta, e eu o aperto para mim.
― Amor, por el amor de Dios, estás bien? ― Eu gaguejo, a boca tão seca que mal posso formar as palavras.
― Estou...estou bem. ― Murmura, fraco, e mesmo com a escuridão da noite que reinava, consigo notar sua expressão perdida em uma angústia sem fim, como também observo seus dedos tocarem meu tornozelo ferido que já não me machucava mais do que vê-lo daquela forma. ― Droga, você está ferida.
― Apenas arde, o que me preocupa é você. ― Minhas palavras estão angustiadas, sem fôlego, e ele balança a cabeça negativamente em resposta.
― Você estando comigo, então eu ficarei bem. ― Ele sussurra, tentando desfazer meu medo, ao mesmo tempo em que se põe de pé comigo ao redor de seu braço. ― Temos que ligar para nossa família e ir buscá-los. Eu não sei se o que está acontecendo espalhou pelo o resto do município ou se está somente aqui. ― Diz, e começa a tatear os bolsos de sua calça. ― Merda, onde está a porcaria das chaves do carro?
― Brenton...esse desastre está por toda a parte do mundo. E-eu vi o noticiário hoje mais cedo no aeroporto que essa paranormalia afetaria todos os seres-humanos. Eu pensei que era mais uma notícia simulada para colocar medo nas pessoas, mas... ― Eu me embolo nas palavras, dizendo-as rápido demais, o que faz Brenton parar de procurar pelas chaves para olhar-me no rosto, incrédulo e confuso.
― Paranormalia? ― Pergunta, quase no automático. ― Se atingiria todos os indivíduos, porque nós não... ― Ele não finaliza, mas consigo entende-lo imediatamente.
Eu arregalo os olhos, sentindo o choque subir a bile somente em pensar sobre sua dúvida, que agora se transformou na minha, mas não tenho uma devida resposta, ou para qualquer pergunta que surgia em meus pensamentos, apenas incertezas e o gosto desagradável do medo. Eu torço os lábios, mas não tenho tempo para fazer qualquer outra coisa, já que o estrondo de pneus arrastando contra o concreto atinge por completo meus ouvidos. Como se estivesse em câmera lenta, um veículo descontrolado que corria ao longo da avenida caótica, perde o controle e desloca-se para fora da trilha, acertando um poste e atingindo nosso carro estacionado a poucos metros de onde estávamos.
Brenton joga-me contra a parede, cobrindo meu corpo com o seu ao posicionar as mãos de cada lado da minha cabeça. Eu grito de susto, e por cima de seu ombro, vejo nosso carro ser arremessado para longe, enquanto o carro desordenado é prensado de encontro a parede do restaurante, deformando a lataria. Eu me desenfilo de seus braços para correr até o veículo amassado, e quando a imagem dolorosa de uma criança falecida no banco de trás atinge minhas vistas, o resto do meu mundo parece desmoronar no chão, levando-me junto consigo. Exatamente igual àquela noite. Aquela noite.
― Não! ― Meu estômago se agita novamente, e eu toco as mãos sobre o vidro da janela, as lágrimas inundando meus olhos.
― Haumea, não há nada que você possa fazer! ― Ouço Brenton exclamar, a voz soando embargada em seus lábios. Eu aperto os olhos em meus dedos, e meu coração falha mais uma vez. Não há nada que eu posso fazer. ― Vamos! Não podemos ficar aqui. ― Ele agarra meu quadril e relutante, o deixo guiar-me apressado para longe do acidente, mesmo que não conseguia reunir forças o suficiente para erguer-me mentalmente. Elas haviam desfragmentado, assim como as imagens de alguns minutos atrás.
Apesar do calor escapulir para fora das labaredas de fogo que se alastravam em alguns pontos da rua tumultuada e irregular, eu sinto frio. Assustadoramente fria, até os ossos. Estou ciente de vozes abafadas, muitas vozes, mas elas estão no fundo, como um zumbido distante. Eu não ouço palavras ou gritos. Tudo que posso ouvir, tudo que posso focar, é no apocalipse estendido por todo ao meu redor, e ele nunca esteve tão vivo.
Minha consciência está tão desequilibrada que somente percebo que Brenton nos levava até uma residência aparentemente vazia quando já estamos em frente à porta de madeira compacta. A pequena fresta escura indica que a mesma está aberta, e enquanto o vejo empurra-la lentamente para trás, eu checo aos meus arredores.
― Brenton, não acho que seja uma boa ideia... ― Advirto em um sussurro, pressionando as mãos em volta de seu braço à medida que entrávamos na casa em passos curtos, e de imediato, a sala de estar sob a penumbra se encontrava em um completo caos, a mobília bonita jogada pelos os quatro cantos do espaço, assim como alguns alimentos despejados sobre o carpete vermelho e felpudo. Fecho a porta atrás de mim, e meu corpo volta a estremecer.
― Eu vou olhar os outros cômodos e verificar se estamos seguros aqui. Por enquanto é o que temos até pensarmos em uma ideia melhor. ― Ele diz em voz baixa, observando meu rosto com cautela, até que abaixa a cabeça e toca sua nuca com os dedos, soltando uma risada fraca e sarcástica pelo os lábios. ― O que merda estou pensando? Não estamos seguros em nenhum lugar. As pessoas estão loucas, matando umas às outras como se fossem animais lá fora, nossa família pode estar em perigo, e não temos como se quer ir para casa porque a porcaria do carro está fodido. Não temos comida ou água, e eu sinto que posso perder você apenas se desviar o olhar. Não sabemos o que pode acontecer um segundo seguinte, então como estaríamos seguros, porra? ― De repente, ele está gritando em descrença consigo mesmo, perambulando o corpo de um lado para o outro enquanto enterra os dedos entre algumas mechas de seu cabelo, e nesse instante, eu posso sentir sua agonia refletir minha alma.
― Pare! Pare de falar assim! ― Grito desesperada, soltando a respiração que estava presa em minha garganta, e corro até o seu corpo, envolvendo-o fortemente em meus braços. Ele para de se movimentar para retribuir meu abraço apertado, como se pedisse em silêncio para ajuda-lo, mas o que fazer quando você mesma também precisa de ajuda? ― Nós vamos dar um jeito de sair daqui vivos. Nós sempre damos um jeito, não se lembra do que você me diz nos momentos mais difíceis? Agora é a hora de colocar suas palavras em prática mais uma vez. Nós vamos ficar bem, eu lhe prometo isso.
― Independente do que acontecer. ― Sua voz é quase inaudível, de tão torturado, e lágrimas rolam pelo meu rosto. Ele toca meu lábio inferior com o polegar, e se inclina para beijar minhas frias lágrimas, uma por uma, até que se inclina um pouco mais, selando meus lábios, tão suave e carnal. ― Eu amo você. Nunca se esqueça disso.
― Eu também amo. Amo muito. ― Eu enterro o rosto em seu peito, inalando seu cheiro doce muito profundamente para que nunca caia em esquecimento, e então, ergo o rosto úmido para ele e o beijo com força. O beijo, porque quero sentir todas as emoções se misturarem, como se fosse o nosso último. Quando o fôlego escapa, nossos lábios se separam lentamente, e eu respiro trêmula. ― E-enquanto ligo para nossa família, você averigua os outros cômodos. Deve haver comida ou algo que possa nos ajudar. Eu vou estar bem aqui.
Ele não diz nada, e procura apenas assentir em silêncio enquanto entrega-me seu celular; o único que nos restou já que meu celular havia se perdido junto com a bolsa em algum lugar no restaurante. Seus olhos avermelhados fitam-me com fervor antes de dar-me as costas, caminhando até o primeiro corredor. Quando percebo que estou sozinha, eu fecho os olhos de forma breve, suspirando fundo outra vez, e rapidamente enxugo as malditas lágrimas para longe do meu rosto com as costas da mão. Apresso os passos até a janela, e através das cortinas de seda, observo a algazarra ainda presente nas ruas, mas nada anormal perto o suficiente da casa. Uma estante comprida alcança meus olhos na parte direita da sala, o que faz-me ir até o objeto pesado e arrastá-la com dificuldade para frente da porta. Somente assim eu retiro o celular do bolso e começo a digitar os números memorizados sobre a tela.
Tento falar com mamãe e a ligação é interrompida na primeira discagem. Tento com a mãe de Brenton, e ligação mal se completa. Tento com Garfield e minha amiga, mas nada. Um turbilhão de pensamentos sobre como podem estar neste momento vagam por minha mente, e nenhuma delas é tranquilizadora o bastante. Eu apoio as costas contra a parede gélida e deixo meu corpo deslizar por ela, e quando sinto o piso abaixo de mim, a força que havia se acendido a minutos atrás em meu peito parece se esvaziar aos poucos até não sobrar um resquício. Dobro os joelhos e abraço minhas pernas ao redor dos braços, desarmada, mas antes de encostar a testa contra os joelhos, um brilho miúdo atinge meus olhos. Eu aperto as vistas, e quase na ponta do sofá, há a chave de um carro que reluz entre a escuridão.
Meu coração dispara, assim como meus pés que me impulsionam ligeiramente para cima. Eu me agacho e enrolo o objeto entre os dedos, sem notar que havia pressionado o botão de ligar o carro. Um ruído sibila abafado de fora da casa, e ao correr novamente até a janela, avisto os faróis frontais acessos do veículo exíguo. Após um segundo imóvel, um curto sorriso cresce em meus lábios, esperançoso, e não demoro a ir atrás de Brenton para lhe dar a notícia.
― Brenton, eu achei as chaves do carro! Nós vamos conseguir sair daqui! ― Começo a gritar por seu nome entre cômodos, abrindo e fechando portas, mas tudo parecia quieto demais. ― Brenton? Onde está você?
A última porta do corredor é aberta bruscamente por mim, e sem esperar, todo o meu sistema se congela tão rápido que a respiração volta a me faltar. Ele estava lá, em frente à janela do quarto, paralisado, somente movimentando os ombros conforme respirava baixinho, mas eu não conseguia ver seu rosto ou qualquer parte de seu corpo da frente, já que estava totalmente de costas para mim. Um arrepio lesivo passa através de mim, e não sou capaz de movimentar um músculo se quer.
― Brenton? ― Eu o chamo outra vez, a voz expilando pavor, mas ele não me responde. Não se move. Não faz absolutamente nada. Eu dou um passo para frente, e algo sufocado grita dentro de mim. ― Amor? O que está fazendo? Nós podemos ir agora...
Quando estou perto o suficiente de si, os arrepios ecoando de dentro para fora, ergo o braço e toco seu ombro. Se passa um segundo, ou talvez três, e somente após esse intervalo que o vejo virar o rosto lentamente para mim. Naquele instante, nunca pensei que um dia poderia sentir o pânico arrebatador moer todo o meu corpo ao olhar para o meu marido, nunca pensei que um dia iria ter que se afastar de seu corpo porque tudo o que ele me causa é horror e temor, mas o que meus olhos estão presenciando não é o meu marido, e por isso, o dia chegou, estou vivendo exatamente agora, e com os seus olhos negros e perversos, ele suga o que resta em mim. Eu sinto as lágrimas queimarem meus olhos, mas a sensação do fogo não chega ao menos perto de ser ruim quanto a percepção de sua mão chocar contra meu rosto.
O golpe feroz me joga com força no chão e minha cabeça bate com um estrondo ensurdecedor no assoalhado. A dor explode, meus olhos ficam desfocados com o choque do impacto, desencadeando uma tristeza que arfa através do meu corpo. Eu solto um silencioso grito de sofrimento e terror, mas não tenho tempo ao menos de pensar, já que no próximo minuto, sinto chutes cruéis nas minhas costelas e a minha respiração é interrompida pela força dos golpes. Fechando meus olhos com força, eu tento lutar contra a náusea e a dor, lutando por um sopro precioso, mas estou perdida, afogada com o acumulo do medo. Oh, meu amor. Meu lar, meu mundo. Porque você? Porque?
― Não, pare! Brenton! ― Eu chamo por seu nome pela a última vez, e como de esperado, ele não me escuta, não dá atenção aos meus gritos. Ele está cego e surdo pelo o ódio, pela a maldade.
Eu puxo as minhas pernas para cima, encolhendo-me em uma bola e antecipando o próximo golpe. Não. Não. Não. Aquela voz que gritou rasgada em meus pensamentos, agora está mais nítida, e ela me diz para correr, correr para muito longe. Mesmo com a dor que corrói meus ossos, eu olho para o lado e entre as sombras nebulosas da escuridão, avisto um taco de basebol jogado a passos de mim. Eu estico o braço, lufando de angústia, e ao rodear os dedos no contorno da madeira, a fúria adormecida parece correr através de mim, e então eu encontro a minha voz:
― Você não vai me machucar mais! ― Grito, agarrando o objeto contra minha mão e arremessando-o com toda a força que conseguia em sua parte íntima.
Ele cai na minha frente, gritando em agonia, o que me dá um minuto para ficar de pé e começar a correr. Eu cambaleio em meus pés, tropeço em meus próprios movimentos, a dor aguda espalhando-se por todo o meu corpo, mas não paro de correr, não paro em nenhum minuto, porque ouço passos pesados me seguindo, como um monstro perseguindo sua vítima. Ele está atrás de mim, rastreando o cheiro do meu medo, e não irá parar até ter-me em suas mãos. O reflexo borrado de uma porta aberta reluz em minhas vistas, indicando ser um banheiro, e quando a alcanço, jogo-me para dentro do cômodo. Minhas mãos juntas empunham a porta, e quando faltava somente uma fresta para fecha-la por completo, seu pé surge para impedir-me. Eu cerro os dentes por puro rancor, e ainda comandada pelo o ódio, empurro o pé contra seu sapato, pisoteando-o. Ouço seu urro de dor, e depois a trinca da porta se fechando no momento em que a tranco.
Escuto-o esmurrar a porta sem qualquer pausa, batendo, chutando, golpeando, mas todos os ruídos estão longe demais. Tudo é pesado e dolorido; meu estômago, minhas costas, cabeça, o coração. A essa altura, a realidade realmente recaí sobre meus ombros, e não resta nada mais nela além do vazio. Eu perdi minha família, perdi o meu grande amor, o meu trabalho, a minha vida, e ao virar meu rosto para o pequeno espelho suspenso no centro do azulejo, aquele reflexo escuro que reflete os olhos negros ponderando-me, eu percebo que agora perdi a pessoa que eu mais precisava. A mim mesma.
Sybûrnia, Yukantan.
Mês desconhecido, 2050.
Um tinido tímido acaricia meus ouvidos. Ele está distante, remoto, e quase não consigo identifica-lo com clareza. Se passa um tempo, e o zunido se transforma em um ruído pesado. Ele está se aproximando, crescendo, acelerado, até que posso escutar os batimentos apressados do meu coração. A pulsação causa-me dor. Muita dor. Eu quero gritar. Eu preciso. Algo dentro da minha mente se rompe a ponto de provocar-me grande agonia, e eu subitamente abro os olhos.
Estou respirando muito forte. Posso ouvir o fôlego escapar de meus pulmões, fazendo meu peito oscilar descontrolado, mas não consigo entender porque apenas vejo uma luz branca e possante pincelar meus olhos. A luz diminui sua potência, dando lugar a uma parede revestida de azulejos azuis, e depois alguns objetos desconhecidos surgirem na espreita, para assim o vislumbre de um cômodo comprido refletir minhas vistas. Com certa dificuldade, tento levantar-me de algo que estou deitada, mas logo sinto meu corpo voltar na posição que estava antes, forçando-me prontamente constatar os meus pulsos e calcanhares atados a braçadeiras estranhas fixadas de cada lado da maca equipada, e tudo parece ser ainda mais incomum em ver meu corpo vestido por um macacão de plástico e largo demais para meu torço.
Naquele momento, eu arregalo os olhos, a aflição engolindo-me sem avisos, e desesperadamente, tento me soltar das amarras que impediam todos os movimentos do meu corpo, fazendo um aparelho cintilante ao meu lado acionar entre apitos.
― Socorro! Tirem-me daqui! ― Eu grito alto, minha voz rouca de lágrimas entorpecidas e o caroço grande formado na minha garganta.
Não sei quantos segundos se passaram com meus gritos aflitos ecoando por todos os cantos, mas foram segundos o suficiente para que um grupo de pessoas surgissem entre as cortinas do cômodo e corressem até onde eu me debatia ferozmente. Quanto mais se aproximavam, mais eu percebia suas vestimentas serem exatamente iguais a minha, e o único detalhe que se diferenciava, era os capacetes de metal com uma tela nos olhos dispostos em suas cabeças, ocultando quaisquer vestígios de suas fisionomias. Mas o que diabos é isso?
― Ponera 28120 despertada! Verifiquem seus sinais vitais imediatamente! ― A pessoa ao meu lado sucumbe, e logo identifico uma voz masculina soar através do seu capacete. Há um pequeno sotaque diferenciado que trilha em sua voz, no entanto, não consigo distinguir exatamente qual. Por um instante, eu franzo o cenho diante da sua fala. Ponera? Onde ouvi essa palavra antes?
Após o seu comando, alguns do grupo apanham diversos materiais unidos por um único fio que ligava a máquina larga próxima a minha maca, outros movem um aparelho pequeno sobre meu corpo, logo registrando algo em suas cadernetas que se digitavam sem que os dedos tocassem na tela. Sinto-me zonza, indefesa, como uma boneca que precisava ser reparada e concertada, mas não gosto do modo que me tocavam. De jeito nenhum.
― Quem são vocês? E onde estou? ― Eu digo entre dentes cerrados, sacudindo meu corpo para longe daquelas mãos, mas todos pareciam focados demais em fazerem o que foi comandado para que pudessem me ouvir. ― O que vocês fizeram comigo? Deixe-me ir, por favor!
― Ponera 28120 verificada. Seus sinais vitais estão limpos e não há qualquer sinal de infecção da doença em seu corpo, senhor. Mais um encargo com sucesso. ― Agora é uma voz feminina que anuncia, uma voz doce e parece profundamente emocionada.
― Boa notícia, meus amigos. Boa notícia! A Ponera 28120 pode ser liberada, Doutora Conor. ― O homem desconhecido diz contente, e assim, as amarras se abrem em um movimento automático, liberando meus pulsos e calcanhares, no entanto, estou tão amolecida que não consigo mover qualquer músculo, por mais que tentasse com todas as forças no interior do meu ser. Eu quero chorar, mas também não consigo. Estou vazia, mas ao mesmo tempo, preenchida por uma sensação suave. Não consigo entender o que se passava comigo. ― Iremos anunciar as autoridades, Doutora. ― Continua, mas antes mesmo de seguir as outras pessoas para fora das cortinas, ele se aproxima um pouco de mim e toca suavemente em meus cabelos espalhados pelo travesseiro, murmurando: ― Bem-Vinda ao novo mundo, minha querida. Estamos muito felizes em recebe-la.
Assim, sem dizer uma palavra, o homem se vai, deixando-me a sós com minhas intermináveis dúvidas e uma única pessoa no cômodo junto a mim. Em silêncio, a pessoa pressiona um botão atrelado em seu macacão, fazendo com que o capacete deslizasse de sua cabeça e exibisse uma fisionomia feminina e incrivelmente bonita. Seus traços são tão bem contornados que me lembrava de personagens fictícios de desenhos, e posso notar o brilho tênue que saltita em seus olhos castanhos à medida que me alcançava em passos pequenos. Ela abre um sorriso para mim, vivo, e por alguma razão, não consigo sentir nenhuma maldade em seu ser.
― Olá, Haumea. Meu nome é Conor Troy, e sei que tudo está muito confuso para você neste momento, mas eu lhe garanto que irei responder a todas as suas dúvidas, e que principalmente, você está a salva. Finalmente. Não sabe o quanto é maravilhoso vê-la bem depois de tantos anos. ― Ela diz de uma forma gentil enquanto aperta outro botão sobre um controle pequeno nas mãos que faz a maca reclinar lentamente na vertical. Nessa posição, posso vê-la com mais clareza, mas ainda assim, sinto meu sistema girar. ― Você está sentindo algo? Dor?
― Porque está agindo como se importasse comigo? ― Eu finalmente pronuncio depois de um tempo.
― É porque eu realmente me importo. Não somente eu, como todos os demais que estavam presentes aqui alguns minutos atrás. Nós apenas queremos o seu bem. ― Eu aperto os olhos, e viro o rosto para outra direção. O que ela quer dizer com isso?
― Onde estou e como vim parar aqui? ― Pergunto, e ela assenti rapidamente.
― Você está na CPRDP; A Corporação para Recuperação de Poneros, e faço parte de uma grande equipe de médicos. Durante todos esses anos, somos responsáveis por trazer de volta a consciência daqueles que foram infectados cruelmente por uma paranormalia maligna chamada Poneria. Ela afetava todos os sistemas nervosos do cérebro, desligando os sentimentos bons e mais cruciais dos seres-humanos, como o amor, afeto, alegria, coragem, afetividade, bondade, carinho; deixando vivo apenas os sentimentos ruins, principalmente o medo, onde os indivíduos fantasiavam seus traumas mais profundos nos outros ao redor, criando o desejo em matar o seu próximo, mesmo que não haja de fato uma real intenção já que a paranormalia deixava o hospedeiro completamente em estado de inconsciência. ― Ela diz, sentando-se em uma cadeira próximo a mim e respirando fundo antes de continuar: ― Antes da paranormalia surgir, o cientista que descobriu a mesma anos antes, implorou para que o governo norte-americano liberasse recursos com o objetivo em criar o remédio da cura, mas como o governo acreditava que essa doença não passava de uma grande mentira, o cientista conseguiu formular somente uma pequena quantidade do remédio as escondidas das autoridades americanas. Quando a paranormalia manifestou-se em dois mil e dezenove, já era tarde demais para o governo se quer pensar em reverter a situação já que a doença contagiou quase cem por cento do mundo.
― Quase cem por cento? ― Pergunto, sentindo o coração bombear em meus ouvidos. Ela balança a cabeça.
― Sim. A Poneria foi muito forte, e os únicos não infectados foram o cientista e seus ajudantes que se preveniram com o remédio, provando que o mesmo realmente era a cura se tivesse dado-lhe a devida importância, mas isso não os desanimaram. Com o apocalipse diante de seus olhos, ele e sua pequena equipe deram o sangue e suor para trazer de volta os seres-humanos que ainda estavam vivos, mas com a doença no corpo. Criaram quantidades maiores do remédio e estudaram para uma evolução, mas infelizmente, não foram todos os indivíduos que a equipe conseguiu salvar. Na verdade, entre bilhões de pessoas, somente alguns milhões foram livrados, isso porque a doença em diversas pessoas já não tinha mais salvação.
― Você diz algo sobre anos, mas quanto tempo, exatamente? ― Eu inclino um pouco o torço para longe do encosto, focada em sanar todas as minhas dúvidas que dançavam em minha mente vazia.
― Desde setembro de dois mil e dezenove, já faz trinta e um anos que se busca salvar a humanidade, e após a morte do cientista e seus ajudantes, a fórmula do remédio foi passada a cada ano nas mãos de cientistas novos que foram salvos da doença, crescendo cada vez mais a equipe, e por consequência, os números salvos de indivíduos. Quando atingiu um número bom o suficiente de cientistas, criou-se a CPRDP, onde reúne os Poneros para começar o processo de cura. ― Eu arregalo os olhos, e todo o meu corpo oscila. ― É por isso que você está aqui hoje, em dois mil e cinquenta, curada após dezoito anos de tratamento. Os cientistas da Corporação encontraram você vagando sozinha nas ruas no ano de dois mil e trinta e dois, os olhos negros dominando seu rosto, e foi muito difícil traze-la até aqui. Você relutava com todas as suas forças.
― Como...como eu não envelheci durante todos esses anos? ― Meu lábio treme perante minha voz.
― A paranormalia congela todo o sistema que faz o ser-humano envelhecer normalmente, então você possui a mesma idade que tinha antes de ser atingida pela a doença; vinte e quatro anos. Como está curada, a partir de hoje, você volta a ter o sistema normal de envelhecimento.
― Porque o tratamento leva tanto tempo para salvar uma pessoa? ― Ela cruza as mãos sobre suas pernas, e lança-me um olhar triste.
― Isso depende de cada indivíduo e do nível de agravamento da paranormalia no cérebro. Alguns podem durar meses ou anos, outros podem nunca serem salvos. E para isso, no momento em que é injetado o remédio, ele faz com que as memórias e lembranças de toda a sua vida repassem pela mente como flashbacks, relembrando-a dos sentimentos vitais além do medo, relembrando-a de sua infância, de seus pais e parentes, de seu namorado e empregos, do seu...
De repente, eu não consigo mais prestar atenção em sua voz porque algo em minha mente faz-me olhar diretamente para um ponto específico do meu terceiro dedo na mão esquerda. Eu passo o polegar por cima da pele, sentindo uma marca suave naquele lugar, como se um anel estivesse ali antes, e então, como um golpe certeiro, eu me lembro. Minha família. Meus amigos. Meu lar. Meu marido. Não. Não.
― Minha família! Brenton! Onde eles estão? Pelo amor de Deus, diga-me! Onde eles estão? ― Um soluço involuntário escapa da minha garganta enquanto grito desesperadamente, tentando escorregar para fora da maca em um impulso trêmulo das pernas, mas Conor me segura no lugar, tocando-me nas bochechas para que eu olhasse diretamente em seus olhos.
― Haumea...eu sinto muito, mas sua família e amigos não sobreviveram da paranormalia. Eles faleceram no mesmo dia em que foram contaminados, e seu marido... ― Ela abaixa os olhos, travando o maxilar em uma linha dura, até que volta a olhar-me nos olhos. ― Ele se transformou em um de seus medos, e como você também estava contaminada e o via como o seu trauma, você mesma o matou.
― Não! ― Eu grito. Grito alto, e todo aquele vazio que antes dominava meu corpo, está sendo ocupado por um misto de sentimentos que parecem sufocar-me até deixar-me entorpecida em cima da maca. Dor, tristeza, mágoa, lembranças. A expressão de Conor é de absoluta pena. Pena por mim, e eu jogo os braços ao redor das minhas pernas, abraçando-as, como se isso pudesse suprir todo o sofrimento que senti, mas não supre. Não chega ao menos perto disso. Oh, meu amor. Eu sinto muito. Sinto muito. ― Por favor, não...
― Sua dor nunca será esquecida, Haumea, mas você mesma irá curá-la com o tempo porque agora você o tem daqui para frente. Nada do que aconteceu foi sua culpa. ― Ela murmura, delicada, e aperta minha mão na sua. ― Venha, deixe-me mostra-la uma coisa.
Ainda com sua mão na minha, ela me ajuda a levantar da maca, e sob os meus pés estremecidos, Conor leva-me para fora das cortinas. O corredor vasto do saguão nos direciona para uma porta branca, e antes de envolver a mão ao redor da maçaneta, ela me esboça um pequeno sorriso, aquele que poderia facilmente amenizar o meu coração se o mesmo não estivesse tão conturbado, mas mesmo assim, ela abre a porta, revelando uma sacada comprida e uma vista simplesmente de tirar o restante do meu fôlego. A luz forte provoca um pequeno incomodo as minhas vistas, mas meus olhos são banhados pela a paisagem de uma metrópole limpa, sem muitos prédios, mas com casas bonitas e harmônicas. Os lagos são cristalinos, a grama esverdeada, as árvores vivas e dançantes, as pessoas felizes caminhando tranquilamente entre as ruas, e as máquinas vigentes flutuando sem tocar a superfície. O paraíso.
― Você é uma mulher muito forte, Haumea, e continuará a ser neste novo mundo. Não somos mais em sete bilhões de pessoas, mas sessenta e oito milhões. Não temos mais seis continentes, mas somente um. Temos agora vinte cidades, e no meio deste mundo, aqueles medos que a atormentaram durante toda a sua vida, sejam quais forem, nunca mais irão te causar dor. Você está livre deles agora. Nas mãos, você possui uma nova chance de viver. Uma chance em faze-la valer a pena desta vez.
Meus medos. Medos. Eles dominaram minha alma até o último suspiro. As lágrimas caem em cascata por meu rosto, e então eu entendo.
Quando criança, lembro-me de quando sofria humilhação constantemente por três garotos da mesma sala em que estudava. Esses garotos representam os três primeiros homens que apareceram na noite do restaurante. O garçom, e os outros dois que se colocaram na minha frente para que não alcançasse a saída.
Na pré-adolescência, via minha mãe sofrer abusos e violências domésticas por meu padrasto bêbado e delinquente. Adentro dos olhos negros de Brenton, eu enxerguei os olhos perversos do meu padrasto.
Quando adolescente, presenciei a grande violência que decorria no bairro perigoso em que morava com minha mãe. Essa violência foi refletida no alucinado que proferia socos no rosto de outro homem contra a porta do restaurante.
No dia em que realizei a minha primeira entrevista de emprego, já recém-formada da faculdade, a supervisora da empresa descartou-me simplesmente por causa da minha cor de pele. A maldade crescente em seus olhos era exatamente igual ao da alucinada que feriu meu tornozelo quando escapava pela a janela do restaurante.
Depois de um ano de casamento com o meu grande amor, Brenton e eu tivemos a felicidade em sermos pais quando descobrimos que eu estava grávida, mas logo nas primeiras semanas, eu perdi o meu filho em um acidente de carro onde o motorista chocou-se com meu carro simplesmente porque eu estava dirigindo na velocidade adequada. O acidente que aconteceu em frente ao restaurante naquela noite, retrata a dor em que senti pela a perda de meu filho que nunca segurei nos braços.
E durante toda a minha vida, entre traumas e recaídas, tive o grande e pesado medo em me tornar uma pessoa ruim por ter convivido com a maldade por boa parte da minha existência. Quando me olhei no estreito espelho do banheiro, eu me tornei aquilo que eu mais temia.
Esses são os meus medos e eles foram causados por pessoas que não se importaram com a minha dor. A maldade humana se transformou em um universo onde ainda não se encontrou os seus limites, isso porque, os verdadeiros monstros não são mais aqueles que surgem por debaixo das camas quando a escuridão desabrocha, mas na verdade, aqueles que o rodeiam, e eu, Haumea, fui a prova vida de que esses monstros realmente existem, e podem estar muito mais próximos a você do que se imagina.
El Fin.
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