-Senhorita Saori?
O som do piano que ecoava pela sala cessou suavemente. Saori ficou ligeiramente tensa ao ouvir o chamado de Tatsumi. A garota já imaginava o motivo do mordomo estar a procura dela aquela hora. O relógio indicava que em pouco tempo soaria a meia-noite e a mansão estava silenciosa. Nem parecia que havia o grupo de saintias e os cavaleiros de bronze ali hospedados, além dos inúmeros empregados a serviço da herdeira de Mitsumasa Kido. Saori virou-se lentamente e encarou o empregado.
-Sim Tatsumi?
O homem parecia desconfortável, segurando em uma bandeja de prata um pedaço de papel timbrado meio gasto. Ele se aproximou devagar.
-Isso chegou a pouco do Santuário. Imagino eu que seja a resposta que a senhorita aguardava.
Saori de maneira delicada pegou o papel e ao desdobrá-lo sorriu enquanto conferia o conteúdo. Com um suspiro ela devolveu a carta a bandeja.
-É exatamente isto Tatsumi. Por favor, prepare para depois de amanhã um avião que nos leve a Grécia. Está na hora de resolver esse... Problema.
-Mas... Senhorita...
Ela ficou curiosa quanto ao tom hesitante do mordomo.
-Algum problema?
-Tão... Cedo, assim repentinamente? Digo, não seria o caso de planejar melhor essa... Conversa, talvez deixar os cavaleiros de bronze resolverem isso e...
-Não. Eu que preciso resolver essa situação, e sim, os rapazes talvez irão comigo. Avise-os também, por favor. É o momento da decisão e não há mais motivos para esperar. Não se preocupe Tatsumi, sei que tudo sairá bem.
Apesar da decisão firme e do tom de voz gentil, Tatsumi não pareceu menos preocupado. Com um aceno de cabeça, ele se virou e saiu devagar, deixando Saori sozinha na sala de música da mansão Kido.
Saori Kido era a reencarnação da deusa Atena, deusa da sabedoria e da guerra da mitologia grega. Ela retornava a terra sempre que algum grande mal se preparava para tomar ou destruir o planeta. Liderava um exército de guerreiros que batalhavam com ela, dotados de imenso poder e que dispunham para batalhar nada além de seus corpos. Conhecidos como cavaleiros do zodíaco, esses combatentes podiam destruir montanhas com um soco apenas.
Na Grécia havia um espaço encoberto aos olhos comuns, onde ficava o Santuário, solo sagrado onde Atena repousava e onde os cavaleiros eram treinados e viviam até a hora de combate. No momento presente, o responsável pelas tropas da deusa, o Patriarca conhecido como Grande Mestre declarou combate a Saori alegando que ela era uma falsa Atena que enganara os cavaleiros de bronze para tentar tomar o lugar de comando no Santuário. Por conta disso, Saori enviara uma carta avisando que em breve iria pessoalmente visitar Ares para saber o que estava acontecendo. Ela deixara claro que em uma semana a partir do envio daquela carta desembarcaria em solo sagrado e desejaria um encontro com Ares. A resposta então chegara, um simples "estamos aguardando". Suficiente para que ela entendesse que eles a esperavam, e não de maneira pacífica.
Ela saiu da sala e subiu os degraus que levavam ao último piso da mansão onde morava. Dirigiu-se ao seu quarto, ignorando o luxo que a cercava desde sempre e que era praticamente cenário comum para ela. Quando entrou em seus aposentos, dirigiu-se a janela e ficou espiando o céu noturno.
Havia tanto a pensar... A fazer... Começar era um problema, quanto mais dar continuidade a tantas situações.
Saori sabia de suas questões como Atena apenas superficialmente: há pouco descobrira sua real identidade e tentava como podia saber mais sobre como agir dada aquela situação. Isso a consumira de tal forma que agora ela quase esquecera que além de uma deusa, ela também era humana. Uma garota. Que tinha uma questão bem comum para resolver, mas sabia tanto dessa questão quanto como agir como uma deusa.
Ir ao Santuário significava enfrentar Ares. Uma batalha deveria acontecer, e no mínimo alguém morreria. Isso é o que acontecia em guerras. A questão que a assombrava era justamente essa: quem vai morrer?
Pensando no pior cenário possível, ela seria uma das mortas. Se isso acontecesse, o que ela gostaria de ter feito antes que esse pesadelo se tornasse uma realidade?
Em seu íntimo ela sabia, mas questionava-se a cada vez que ousava responder a si o que desejava.
-O que eu faço agora?
Aquele rosto moreno com grandes olhos castanhos assaltava seus pensamentos com uma frequência maior do que ela desejava. Vê-lo era algo ansiado e temido ao mesmo tempo, pois ela não sabia como ou se poderia expressar o que sentia. A verdade é que não sabia como podia se sentir.
Amor...
O que era aquilo tudo afinal? Um sentimento? Uma ilusão?
A pergunta voltava a sua mente tanto quanto a imagem do cavaleiro devotado.
-O que eu faço agora?
Quando a gente conversa
Contando casos e besteiras
Tanta coisa em comum
Deixando escapar segredos
Essa era exatamente a dúvida que, alguns andares abaixo, martelava a cabeça do cavaleiro de Andrômeda. Shun estava em seu quarto encarando o cavaleiro de Cisne, Hyoga, pensando sobre o que deveria fazer naquele momento.
Os rapazes estavam rindo, um momento raro de alívio entre os jovens guerreiros. Após o jantar, eles se recolheram, mas nem bem saíra do banho, Shun encontrara Hyoga em seu quarto, disposto a conversar um pouco sobre tudo que vinha acontecendo. Nos últimos dias as coisas pareciam correr de forma maluca, viveram em uma semana emoções de um ano. Eram muitas descobertas, revelações, ansiedade... Havia um senso de urgência no ar para onde quer que olhassem e eles apesar de quererem participar, se viam envolvidos em outras coisas que para eles eram muito mais importantes.
E apenas agora podiam conversar sobre isso. E assim fizeram naquela noite.
Não que não houvessem vivenciado momentos como aquele antes; mas aquela noite era diferente, havia algo no ar. E depois de teorias, risadas, desabafos e dúvidas, os dois se viram momentaneamente em silêncio.
Encaravam-se, como se pela primeira vez depois de muito tempo pudessem realmente olhar um ao outro. Era bom, mas, ao mesmo tempo, era um momento tenso. Para ambos.
-Shun...
-Oi?
-Eu... Bom...
Hyoga sentou-se na cama próximo ao rapaz de cabelos castanhos. O encarou com um certo medo nos olhos azuis.
-Queria agradecer por poder dividir as coisas com você. É um dos meus melhores amigos, e sabe, não sou muito dado a demonstrações de afeto. Então só... Queria agradecer mesmo. Por tudo.
Shun sentiu o rosto esquentar. Por sorte estavam iluminados por um abajur e o amigo não o veria corado.
-Não por isso. Tudo que faço com você é um prazer pra mim.
Hyoga sorriu sem graça e Shun arrependeu-se na mesma hora de ter dito tal frase. Foi bem nesse instante que a dúvida de Saori se manifestou nos dois jovens. Se encarando com timidez eles pensavam no que dizer ou fazer em seguida.
-Quer dizer, sabe, tudo que fazemos juntos... Eu e você... E os outros... É sempre um prazer. Foi o que eu quis dizer...
-Claro. Eu entendi, sim...
A situação nesse momento ficou estranha. Os dois pareciam ver os sentimentos represados no íntimo saltando a olhos vistos para fora de suas cabeças e bocas. Ainda assim, eram imaturos para colocar em palavras tudo o que se passava em seu interior, e sentiam mais medo de enfrentarem as próprias emoções do que uma batalha de vida ou morte.
Hyoga queria falar algo que vinha o perseguindo há muito tempo. Shun também. Um podia ler no outro a mesma dúvida, podiam ver, ainda que disfarçada de outra coisa, a verdadeira emoção que desejavam compartilhar.
Mas não falaram nada sobre aquilo naquele instante. Ainda não estavam maduros o bastante. Faltava algo para os dois, e eles continuaram ali, conversando sobre suas épocas de treino, seus mestres, seus destinos como cavaleiros.
Tentando colocar normalidade em uma vida totalmente fora do normal.
E eu nem sei que hora dizer
Me dá um medo ( que medo )
E longe dali, a pergunta que parecia saltar de Atena para seus cavaleiros agora escapava dos lábios de um jovem chinês. Shiryu de Dragão estava próximo ao seu mestre, o cavaleiro de ouro de Libra. Sua pergunta englobava muito mais do que apenas o momento, e o velho guerreiro sabia bem disso.
Não havia muito tempo, Dohko fora atacado por um outro cavaleiro de ouro, Máscara da Morte de Câncer. O que impedira que Shiryu fosse derrotado foi a repentina aparição de Mu de Áries, que se dirigira aos cinco picos antigos de Rozan para se aconselhar com o velho guerreiro. A resposta certa para aquele momento saiu dos lábios de Mu, que dividia o espaço com os outros dois cavaleiros enquanto tomavam um chá.
-Agora é hora de guerrear. E tomar partido. Não há mais a possibilidade de permanecer longe de tudo.
Dohko de Libra encarou Mu com o olhar de quem sabe mais do que diz. Ele suspirou e, por fim, concordou.
-É verdade. O que significa que Atena irá ao Santuário batalhar contra Ares. E você, Mu, deve voltar para lá também.
O ariano mirava a xícara em suas mão sem desviar o olhar. Aquela decisão de retorno implicava muito mais do que apenas tomar um posto. Mu teria que resolver questões antigas e que muito o machucavam. Mesmo sabendo o que tinha que fazer, não achava aquilo certo. Como se lesse os seus pensamentos, Dohko disse:
-Pode não haver momento melhor. Devemos todos aproveitar nossas oportunidades, certo?
Mu apenas concordou com um aceno de cabeça. Shiryu respirava devagar, tentando decidir seus próximos movimentos. Havia decidido não mais batalhar, mas após o confronto com o guerreiro de Câncer não poderia ficar recluso. Imaginava que Seiya e os outros deveriam agir em breve, e se questionava se deveria se juntar a eles ou não. Enquanto debatia consigo sobre seu futuro próximo, Mu e Dohko conversavam através do cosmo. Os dourados repassavam momentos e questionamentos em sua conversa; logo menos acertaram o que deveria ser o acordo formal do verdadeiro atual patriarca e do discípulo do antigo Grande Mestre. Mu quebrou o silêncio, assustando Shiryu ligeiramente.
-Eu devo retornar ao Santuário. Não é de hoje que Ares vem enviando mensageiros exigindo o retorno da armadura de Áries e seu atual guardião. Caso realmente haja um confronto entre a menina Kido e Ares, é bom que todos estejam presentes. Não sabemos afinal, quem será o vencedor e nem quais os resultados dessa batalha.
-Desculpe Mu. Confronto entre Saori e Ares?
-Kiki tem monitorado a meu pedido os arredores do Santuário e Saori enviou uma carta solicitando uma audiência com o Mestre. Creio que em breve ele deve estar desembarcando na Grécia com os outros cavaleiros de bronze. Sabe o que isso quer dizer, não sabe Shiryu?
O cavaleiro de Dragão sabia. Sabia que teria que resolver definitivamente uma situação que há muito o incomodava. Uma situação tão clara que mesmo cego temporariamente ele podia vislumbrar diante de si. Uma situação que envolvia abrir mais do que a boca e dizer algumas palavras.
O que o levou a se recolher para longe dos outros cavaleiros era a vergonha acima de tudo. Vergonha de parecer fraco, vulnerável ou pior, dependente dos outros. Seu orgulho de guerreiro estava ferido depois que se encontrara cego. Havia planejado algo pouco antes da batalha contra Algol de Perseu, mas para vencer o adversário teve que sacrificar sua visão. E com essa atitude, sacrificou também a exposição de seus sentimentos. Por que fazer uma declaração era uma coisa já preocupante para ele no estado normal; naquela situação então era tudo diferente. Shiryu sentia-se inferiorizado, fraco e revoltado. Mas agora que uma situação extrema se apresentava diante de si, ele não poderia hesitar. Não sabia se teria tempo para isso. Qualquer batalha implicava em situação de vida ou morte, e ele não poderia mais deixar as coisas ficarem como estavam. Medo não cabia mais em seu futuro.
-Mestre... Preciso me juntar a Atena e aos outros cavaleiros. Como chegarei a Grécia a tempo?
Dohko sorriu e piscou para Mu.
-Primeiro eu vou testar você. E digamos que caso você se mostre apto, Mu poderá te dar uma carona. Posso contar com isso, Mu?
-Claro Mestre Ancião, será um prazer. Talvez eu tenha que deixá-lo nas proximidades do Coliseu, não acho que meu retorno seja um momento visto com bons olhos, mas com certeza posso te deixar no Santuário.
-Agradeço.
-Decidiu batalhar então junto com Saori Kido?
-Sim.
Mas a real intenção de Shiryu era batalhar não apenas por Atena. Mas para se certificar que teria a chance de pôr em palavras o que há tanto vinha guardando. Ouvira inúmeras vezes que um sábio de verdade aprende com os erros dos outros. Aprendera com o maior erro de seu mestre, segundo as palavras do próprio.
Não ia persistir no erro.
É que eu preciso dizer que eu te amo
Te ganhar ou perder sem engano
É eu preciso dizer que eu te amo
Tanto
-Eu faço o relatório. Pode ir descansar Milo.
-Não preciso descansar Afrodite.
O cavaleiro de Peixes sorriu de maneira debochada. Ele havia sido enviado com o cavaleiro de ouro de Escorpião a ilha de Andrômeda, um local de treinamento de cavaleiros que era gerido por um guerreiro de prata conhecido por Daidaros. As ordens eram de checar a razão do silêncio do cavaleiro em relação aos chamados do Mestre. Caso houvesse algum sinal de rebeldia, a ordem era clara e simples.
Extermínio.
Porém Daidaros não era um cavaleiro qualquer. Figurava entre os cavaleiros de prata que possuíam poder equivalente aos guerreiros dourados, e quem sabe no futuro seria o sucessor de algum deles. A prova disto é que lutara contra Milo de Escorpião em pé de igualdade. Aliás, provara-se superior, haja vista que o cavaleiro de Peixes se viu obrigado a intervir na batalha, enfraquecendo o guerreiro de prata para que Milo não fosse sobrepujado.
Covardia, sim, mas o importante era cumprir as ordens do Mestre com urgência.
E agora que a missão fora cumprida era hora de reportar os acontecimentos. O que Milo realmente não contava era com a surpresa que teria naquela noite. Estava teimando com Afrodite quando reparou que o companheiro estava paralisado.
-Afrodite? Dite?
Mesmo balançando a mão diante do colega não obteve resposta. O pisciano encontrava-se com os olhos fixos em um ponto qualquer do horizonte. Estavam nos arredores do Santuário quando isso ocorreu. Milo exibiu ligeira preocupação.
-Dite, o que...
-Eles voltaram. Depois de tanto tempo...
-Eles quem? De que diabos está falando?
O aperto que Afrodite deu no braço de Milo expressava bem o assombro do guerreiro. Com a expressão aturdida e a voz rouca ele revelou:
-Touro, Capricórnio e Aquário. Sinto os cosmos deles, preste atenção...
Milo ficou um segundo fora de si; o retorno dos cavaleiros citados era prenúncio de algo muito ruim e sério, mas o choque maior era com a menção do último guerreiro citado por Afrodite. Touro e Capricórnio encontravam-se em missão havia algum tempo, seu retorno já era esperado. Mas Aquário...
Camus de Aquário estivera isolado nos últimos anos nas terras gélidas da Sibéria, treinando aspirantes a cavaleiros que manipulassem o gelo como principal atributo cósmico. Por ser conhecido como o guerreiro mestre na manipulação da água e do gelo, recebera tal incumbência e partira sem demora, mal se despedindo dos companheiros.
E o que mais sofrera com isso fora Milo. Milo tinha profundos sentimentos por Camus, tão profundos que mesmo que ele não soubesse lidar bem com eles, todos ao redor já identificavam e guardavam silêncio a respeito disso. Ao verificar a verdade nas palavras de Afrodite, Milo sentiu como se o chão se abrisse debaixo de seus pés.
-É verdade... Então...
Afrodite suspirou por um segundo, assumindo o controle da situação. Era incrível como podia pensar e agir rápido diante de situações intensas.
-Milo, eu farei o relatório. Não acha que deve ir a tua casa e se arrumar? Digo, imagino que deseje visitar Camus em melhor estado do que sujo após uma batalha. O que me diz?
Aturdido com aquela surpresa, Milo apenas concordou e viu o companheiro afastar-se rapidamente. Sua cabeça parecia um caldeirão, os pensamentos indo e vindo, misturados, confundindo os sentimentos. Ele concentrou-se para sentir a movimentação cósmica dos companheiros e quando por fim adentrava o solo sagrado, pode ver que cada um ocupava a morada que lhe correspondia.
Iniciou a subida das doze casas em silêncio, e cumprimentou os poucos moradores acordados aquele momento ainda. Era tarde e a lua brilhava alto no céu da Grécia. A medida que subia e sentia o cosmo de Camus mais próximo, Milo ficava mais nervoso.
Tudo que mais desejava era confrontá-lo de imediato e obter respostas nem que fosse a força. A principal resposta que desejava era sobre a razão de Camus ter ido embora sem sequer despedir-se direito. Ainda mais quando ambos desfrutavam de um nível de intimidade tão profundo que Milo sentia como se...
Não. Não podia sentir aquilo tudo daquela forma. Sozinho. Tinha que ter alguma reciprocidade ali, tinha que ter algo além...
Milo tirou a armadura e jogou as peças de qualquer jeito na urna dourada que abrigava sua veste sagrada. Correu a tomar um banho, ansioso por livrar-se da poeira e do suor da viagem e finalmente poder encarar Camus nos olhos. Depois de tanto tempo... Tantos sentimentos sufocados... Milo tinha que desabafar. Tinha que conferir a verdade, que não estava sentindo tudo que sentia sozinho, que ele até podia...
Céus...
Vestia um jeans escuro e uma camiseta cor de vinho. Calçou as primeiras sandálias que viu e saiu apressado para dirigir-se a mansão de Aquário quando deteve-se de súbito próximo a saída da sua própria morada.
-Boa noite Milo.
Na verdade ele já não estava raciocinando bem, mas ao vê-lo ali, diante de si, seu cérebro levou um tempo maior do que o normal para processar a situação. Camus tinha os cabelos muito mais compridos do que Milo podia lembrar, e vestia-se como no dia em que fora embora: com uma calça escura e uma regata. Exibia uma expressão não muito conhecida, pois em seu rosto algo como um esboço de sorriso tímido se formava. Os olhos estavam arregalados e os longos cabelos ruivos eram suavemente agitados por uma brisa noturna que parecia surgir apenas para deixá-lo mais encantador do que nunca.
-Cam... Camus...
O cavaleiro de Aquário se aproximava devagar e parou a centímetros de Milo. Os dois se encaravam, olho no olho, tentando controlar o inevitável e prestes a explodir.
"É agora. Por todos os deuses do Olimpo Milo de Escorpião, abra essa maldita boca e diga... Diga a ele... Diga de uma vez..."
Milo não expressava o que acontecia dentro de si, exibindo uma expressão abobalhada, encarando Camus como se visse um fantasma. Por sua vez, o cavaleiro de Aquário sentia como se toda a adrenalina de seu corpo estivesse concentrando-se em seu estômago e os arrepios frios que percorriam suas costas nada eram comparados ao frio da Sibéria.
"Vamos Camus, diga algo... Qualquer coisa... Peça desculpas. Diga que sentiu saudades. Mostre seu arrependimento. Qualquer coisa, apenas... Faça alguma coisa. Você é um homem ou tornou-se um iceberg? Olhe para ele, Milo só pode estar calado pelo choque, o que mostra que ele sente tanto quanto você. Vamos Camus..."
Eles precisavam expressar o que sentiam. Mas não sabiam como. E pensavam como agir naquele instante de decisão.
E até o tempo passa arrastado
Só pra eu ficar do teu lado
Você me chora dores de outro amor
Se abre e acaba comigo
mas nesta novela eu não quero ser teu amigo
-E eu acho que é isso. Não é quem sou. Não sei ser de outro jeito Mino.
-Eu sei Seiya... É só que...
Mas ela sabia que não adiantava argumentar. Mino tentava convencer Seiya a abandonar a vida de cavaleiro e tentar seguir como um jovem normal. Podia ter um futuro, e um bom futuro. A fundação Kido arcaria com os custos de seus estudos, o encaminharia ao mercado de trabalho, em breve ele poderia ter a vida dos sonhos de milhares de pessoas...
Mas não. Ele queria, ou melhor, precisava lutar. Para proteger a paz dessas pessoas que ansiavam por esse tipo de vida. Para tornar o mundo um lugar melhor. Para todos os motivos que ele já espora a ela e nunca seriam aceitos.
Por que no fundo Mino sabia a verdade. Seiya encontrara uma nova razão para lutar. Por anos sua motivação fora encontrar sua irmã. Porém o cavaleiro de Pégaso amadurecera e no fundo, lutava para proteger os amigos e a jovem Saori Kido. Amava-os com todas as forças e a simples ideia de perdê-los após reencontrá-los era um pesadelo sem igual. Daria a vida sem hesitar por qualquer um e por todos, e isso doía em Mino. Por que ela nada podia fazer, a não ser aproveitar os curtos instantes em que estava com ele. E que muito em breve ela sabia iriam acabar.
Caminhavam pela orla da praia, fazendo o caminho de volta para o orfanato onde foram criados e Mino agora trabalhava. Calados eles apenas aproveitavam os poucos minutos que os separavam de um destino incerto. Mino ouvira por cima sobre a gravidade da batalha e isso a entristecia e amargurava profundamente. O risco de nunca mais se reencontrarem era enorme.
E Seiya parecia preocupar-se com todos menos com ela. Mino ouvira o rapaz falar sobre como sentia-se irritado com Saori, mas agora a admirava e respeitava. Na verdade ele ficara imensamente carinhoso após algumas batalhas, principalmente na qual Shiryu perdera a visão para salvá-lo. Mino não o reconhecia mais depois disso. Só ouvia ele falar sobre sua preocupação com o chinês, sobre como sentia-se fraco e culpado, sobre como o amigo lhe era caro. A sensação de impotência o enervava e deixava insuportável; apenas os amigos tinham paciência com ele.
Mino estava era confusa. As atitudes de Seiya demonstravam claramente que ele estava apaixonado. A única pessoa que não se dera conta disso ainda era ele mesmo. E havia um porém.
Ele ainda não poderia dizer nem por quem estava apaixonado. Mino apostaria em Shiryu dada a inquietude que assaltava o moreno quando tocavam no nome do cavaleiro de Dragão; mas ao mesmo tempo sentia como Seiya se derretia por Saori, como seu olho brilhava quando junto a ela. Nada em Seiya indicava que ele fosse homossexual, mas isso não é algo que apareça com um marcador. Independente do resultado, para Mino o problema era apenas um.
Ela não era o objeto de afeto de Seiya. O jovem guerreiro podia amá-la como amiga, como uma lembrança boa de um tempo ruim, mas nada além disso. Aquilo machucava profundamente.
Mal ergueram os olhos, haviam chegado ao seu destino. Seiya estava desconfortável.
-Chegamos... Acho que é isso então Mino.
-Seiya...
Ela se jogou nos braços dele, incapaz de verbalizar os verdadeiros sentimentos. Ficara mais agoniada ainda por não dizer que não aguentava mais ocupar o papel que tinha até aquele momento. Ela não queria mais aquele papel naquele espetáculo. Queria o amor dele. E a célebre pergunta martelava também na sua cabeça.
“O que eu faço agora?”
É que eu preciso dizer que eu te amo
Te ganhar ou perder sem engano
Eu preciso dizer que eu te amo
Tanto
Nunca uma noite fora tão comprida e tão intensa. Parecia até que o céu e as estrelas condenavam as atitudes de Saga. Havia pouco tempo que Shura de Capricórnio chegara trazendo informações de que dera cabo do traidor Aioros. A notícia foi recebida com um pesar que o cavaleiro de Gêmeos nunca imaginara que sentiria alguma vez na vida.
-Então... O traidor foi eliminado. É isso?
-Sim, Mestre. Conforme ordenado.
-Bom... Parabéns Shura, parabéns. Vá... Descanse.
Saga se retirou após dispensar o cavaleiro e ficou a pensar sobre tudo. Uma inquietação o perturbava e ele sabia que em breve agiria por impulso.
E foi exatamente o que fez. Disfarçando com a habitual maestria, saiu em direção aos limites do Santuário, tentando rastrear a presença da armadura de Sagitário, com, no fundo, alguma esperança de que seu dono não estivesse realmente morto. Utilizando-se de suas habilidades ao máximo sem dar-se a revelar, ele correu até que, próximo a um penhasco sentiu o coração alegrar-se e despedaçar-se ao mesmo tempo.
Aioros jazia agarrado a Atena, a armadura parecendo velar pela sua segurança, apontando sua flecha de forma ameaçadora para Saga a medida que ele se aproximava. O bebê estava aninhado tranquilamente em seu peito, uma energia cósmica sutil emanando dela para o homem ferido.
Saga via o sangue correndo devagar. Aquelas feridas eram culpa sua. Todas elas. Podia perceber que havia alguns pontos vitais gravemente feridos e deduziu que aquilo só poderia ser obra de Shura. Esquecendo-se de quem era, do que fizera e do preço que um dia pagaria, ergueu seu cosmo e com o dedo indicador começou o processo de cura que os cavaleiros conheciam, fechando as feridas de Aioros uma a uma, tentando consertar a grande burrada que fizera. A medida que o processo avançava, o medo evoluía junto pois ele chegara muito tarde. Ainda que forte, Aioros perdera muito sangue e precisava de cuidados médicos urgentes. Porém levá-lo a algum lugar que prestasse socorro seria expor-se. E isso colocaria fim aos seus planos.
Titubeava diante da enormidade da decisão. Salvar Aioros seria condenar a si a morte por traição. Deixá-lo para morrer era matar sua melhor parte, a parte que parecia valer a pena. E não tinha tempo para enrolar.
Perdido em meio ao medo e a dúvida, assustou-se quando Aioros abriu os olhos e o encarou. Nenhuma palavra fora dita, mas os olhos castanhos se fixaram nele intensamente. Havia medo, tristeza, decepção, piedade... Tudo era transmitido através daquele olhar. E Saga sentia as palavras brotando, sentia a necessidade de deixar claro que apesar de tudo ele...
-AIOROS!
O quarto escuro e vazio parecia mais frio do que o habitual. A respiração descompassada foi se acalmando a medida que a consciência retornava ao normal.
Era o mesmo sonho que tinha há treze anos. Estava cada vez mais frequente e cheio de detalhes. Saga sabia que não era apenas um sonho, mas sim as lembranças daquela noite em que declarara que o amor da sua vida era um traidor. As lembranças que o machucavam mais do que tudo, e que se intensificavam por conta do fortalecimento do cosmo de Atena. Saga tinha certeza que era esse o motivo dessa perturbação noturna.
Levantou-se e caminhou até uma janela próxima. Abriu-a e sentiu a brisa noturna, respirando fundo. Como hábito dos dias em que tinha as memórias despertas, fechou os olhos, conversando com ninguém e com todos os deuses ao mesmo tempo.
-Eu errei. Assumo minha culpa. Me ofereço em sacrifício para que ele volte e viva. Só peço que deixem que ele saiba que eu... Eu preciso dizer que...
Mas Saga sabia que, como nas outras noites, não teria nenhuma resposta. Tudo que ele podia fazer era aguardar. Tivera sua chance de ser feliz, de fazer feliz alguém que o amava, e desperdiçara isso da pior forma possível. Tinha que pagar o preço, e a cobrança se aproximava com a chegada de Atena ao Santuário.
Todos os envolvidos com Atena nessa geração naquele momento tinham uma mesma dúvida e necessidade. É incrível como as vezes são necessárias situações extremas para gerar ações simples porém essenciais.
Como por exemplo, verbalizar um sentimento. Dizer que se amava, independente da resposta.
Todos precisavam dizer que amavam. E enfim chegara a hora.
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