O cavalo reclamou, há algum tempo já estamos cavalgando sem rumo certo. Runel me acompanhava calado, meio indeciso sobre o que realmente estava fazendo. Era mais do que claro que ele estava apenas me acompanhando por mera formalidade. E eu já não me importava se ele estava ou não satisfeito em me ter do lado, ou arrependera-se de me fazer companhia nessa nova vida. Provavelmente ele apenas estava ali para minha segurança.
Era madrugada quando saímos da fazenda de meus pais, por volta das quatro. Tentei descansar um pouco antes de prosseguir, meu corpo inquietava-se ao saber que ainda estava muito perto de minha mãe ou até mesmo da Floresta das Trevas. Meu corpo tremia de nervosismo e minha cabeça doía sem sinal de parar. Tudo o que eu queria era me afastar o máximo possível de todos aqueles que planejaram friamente minha vida inteira.
Eles não tinham direito nenhum sobre isso.
– Já são duas da tarde. – Runel falou depois de horas ignorando minha presença. – Os cavalos estão exaustos, precisam descansar um pouco. E você precisa parar para comer também.
– Eu estou bem. – respondi cheia de dúvidas. Meu corpo estava anestesiado para falar a verdade. Não sentia sede, dores, fome ou calor. Apenas continuava com a viagem, procurando me sentir afastada daquela sufocante presença de meus pais e demais. – Mas concordo que eles precisem descansar.
Paramos perto de uma pequena lagoa. Descemos dos cavalos e os deixamos beber da água e comer da grama enquanto sentávamos perto de uma frondosa árvore de maças. Runel pegou algumas delas para nós e outras para os cavalos, e só percebi a fome aparecer quando mordi um pedaço daquela suculenta fruta.
– Precisa comer mais do que uma simples maçã. – Run disse-me entregando um embrulho com pão e queijo. – Está pálida e espero que não desmaie de fraqueza.
Peguei o pão e o queijo e passei a comer aos poucos. Para quem estava acostumada com a comida farta do castelo aquilo era praticamente nada. Mas eu não me importava com isso mais, na verdade, os dias de preguiça e fartura do palácio eu fazia questão de deixar para trás. Lá eu era uma garota diferente. Uma selecionada obediente e pronta para seguir os passos que me impusessem. Alguém que aceitava as ordens dos outros e fazia tudo diante a lei de Thranduil sem me queixar, alguém que passara a admirar e a amar aquela pessoa que eu mal sabia o nome. Tudo ficaria para trás, pelo menos por uns tempos, eu precisava esfriar minha cabeça e sumir dali para pensar com cautela o que faria da minha vida e como encararia meus pais depois de toda verdade revelada. Por dentro, me sentia usada e humilhada pelas pessoas que eu amava, e isso era o que mais me partia o coração.
O dinheiro que meu pai me deu era suficiente para eu e Runel nos acomodarmos em algum lugar por um tempo antes de conseguirmos trabalho. Tínhamos o suficiente para começar uma vida singela, humilde, porém livre. Minha concepção de felicidade ainda não havia mudado. Viajar pelo mundo era o que eu queria, e era o que eu faria ao lado de Runel, se ele estivesse disposto a isso.
– Acho que consigo algum dinheiro cantando e tocando em bares. – Disse momentos depois, concluindo que conseguir dinheiro não seria algo difícil.
Runel encarou-me triste. Sua face ainda exibia total desaprovação para comigo, mesmo depois do beijo. Suas mãos passaram a me acariciar o rosto, puxando-me para encará-lo de frente.
– Não acho prudente uma lady frequentar coisas do tipo. Você nasceu, cresceu e foi treinada para se tornar princesa, para viver no conforto, para ter súditos aos seus pés e não para batalhar por um pedaço de pão. – ele me respondeu, deixando sua comida de lado.
– Por favor, não pense assim. – Respondi-o. – Eu sempre quis ter a vida que eu imaginava. Livre e dona de mim, nada dessa coisa de alteza e súditos. Estou feliz por ter que batalhar por um pedaço de pão, se quer saber. É muito melhor do que ter que obedecer alguém pelo resto de minha vida.
– Não creio que sua vida ao lado de Legolas seria tão ruim como imagina. – Runel parou de acariciar meu rosto e sentou-se bem de lado, fechando os olhos. – Você aceitou se casar com ele não foi? Provavelmente algo dentro de você dizia que seria a vida que queria ter. Foi preparada para isso, para ele e para ser a princesa de Mirkwood.
Suspirei. Tudo o que eu não queria pensar era em Legolas, nossas promessas e a vida que eu teria ao seu lado. E eu queria fugir para o mais longe possível, afim de que essas lembranças me deixassem por completo. Talvez com o dia a dia longe de tudo elas irão se esvair aos poucos. Era a minha esperança.
– Ele prometera-me que iríamos conhecer o mundo juntos. – disse, despertando Runel, que abriu os olhos e deu um sorriso fraco para mim.
– E eu não creio que ele não cumpriria. – Ele respondeu, encostando sua cabeça em meus ombros.
– Talvez cumprisse...
– Sei que você tem muitos motivos para odiá-lo agora. – Run continuou. – Mas você já parou para pensar nestes exatos motivos? Quer dizer, você não é do tipo que pensa antes de fazer as coisas.
Senti-me um pouco ofendida com aquilo. Sei que sou impulsiva, mas não era para tanto.
– Me diz quais são. – Runel voltou a encarar-me.
– Quais são o quê?
– Os motivos pelo qual você não quer ficar com ele. Mas estes motivos devem ser exclusivamente dele, não os motivos de sua mãe ou do rei.
Assustei-me com a pergunta. Como dizer os motivos pelo qual eu não continuaria com o príncipe, sendo que eu mesma não parei para pensar neles? No início era por causa de Runel e da minha liberdade, agora já não se encaixa mais. Legolas prometera-me sermos livres, e esse era um argumento que acabara de confessar a Runel. Na verdade, Legolas não me dera motivos suficientes para querer fugir dele, apenas mamãe e Thranduil.
– Eu não quero falar sobre eles. – Respondi, levantando-me e indo em direção ao meu cavalo. – Vamos continuar.
– Está fugindo, Bell. E não é de Legolas ou de sua mãe e o rei, é do sentimento que surgiu aí dentro de você e não sabe como suportá-lo de tão imenso que está. Está com medo de se tornar aquilo que mais abominou na vida, está com vergonha pois dissera a muitos que jamais se casaria com Legolas.
– Fique quieto, Runel! – Senti meu rosto esquentar de raiva. – Eu pensava que você gostava de mim, e que ficaria feliz de nós podermos finalmente seguir com nossos planos.
– Eu gosto de você, Bell. Mas eu não estou gostando do que isso se tornou. Você não sente o mesmo por mim, nunca sentiu e dá pra perceber. Você o ama, e nem precisa me confessar isso, eu vejo em seus olhos e suas atitudes. O ama como nunca amou ninguém, e nunca vai amar. Será que pode perceber isso? Para com esse orgulho bobo. Você rejeitou Legolas, mas está completamente apaixonada por ele e não quer admitir que teria a vida perfeita, mesmo ela sendo planejada por seus pais e o rei.
Montei meu cavalo, ignorando Runel completamente. Ele estava nervoso e equivocado, fazendo-me perder completamente a paciência.
– Você vem? – Limitei a perguntar, seguindo com o caminho logo após.
Runel seguiu-me, impaciente. Ouvia-o suspirar e controlar-se para não continuar com aquela conversa.
Enquanto continuávamos, meus pensamentos não paravam um segundo sequer. Queria conseguir vários motivos para justificar para Runel o fato de eu não estar com Legolas fora os planos de minha mãe e do rei Thranduil. Algum defeito em nossa história, algum motivo completamente absurdo que faria qualquer pessoa me entender e ver que eu e ele jamais poderíamos dar certo. Mas, cheguei à conclusão que eu não precisava mais de motivos do que os planos malucos de anos de minha Melrise e Thranduil, que eram os piores e mais bem arquitetados e planejados que já ouvi em toda a minha vida. Se ao menos essa Seleção fosse real, e Legolas houvesse me escolhido sem influência nenhuma ou favorecimentos, talvez eu e ele ainda estivéssemos lá planejando nosso casamento e contando a todos do reino nossa decisão.
Tentei, mais uma vez, ignorar tudo e continuar com a viagem no propósito de esquecer pelo que passei. Foram apenas alguns meses, não seria difícil apagar essa parte da minha vida. Mesmo sabendo que deixar de amar alguém é uma tarefa árdua e muito triste.
O dia começou a escurecer. Os cavalos recomeçavam a reclamar e Runel parou subitamente, amarrando seu animal perto de uma árvore que estava no meio do caminho. Retirou um frasco com água e depositou aos poucos na boca do cavalo, que respirava aliviado pela pausa.
– Vamos passar a noite aqui. Não podemos continuar nessa escuridão, precisamos acender uma fogueira, comer e descansar. Você precisa dormir. – Ele disse enquanto amarrava meu cavalo junto ao dele, dando um pouco de água ao animal e retirando várias maçãs para alimentá-los.
– Tudo bem. – respondi.
– Vigie os cavalos enquanto busco a lenha. – Run pediu e seguiu adentrando a floresta que pendia a poucos metros da estrada.
Minha visão foi acomodando-se a escuridão que começava. Os relinchos dos cavalos serviam para me manter acordada, já que meus olhos pesavam cada vez mais pelo cansaço. Nos últimos dois dias minha vida virara um caos, e não me permitia fechar os olhos, pois a cada vez que eu tentava, Legolas aparecia em meus sonhos. Era realmente uma tortura.
Runel voltou com alguns gravetos e depositou no chão, produzindo uma fogueira logo após. Senti o calor envolver meu corpo, e abri os olhos, voltando-me para o clarão do fogo e relembrando alguns dos momentos que passei perdida naquela floresta amaldiçoada.
– Ele beijou outra. – Disse num impulso, lembrando-me de um fato ao qual me fez querer afastar do príncipe.
– Como é? – Runel encarou-me sem entender.
– Legolas. Ele beijou Hangar, uma das elfas que participam da Seleção em minha frente, logo após dizer que seu primeiro beijo fora comigo uns dias antes.
Runel ainda me olhava sem entender.
– Me perguntou os motivos, estou lhe dando um.
Runel sentou-se ao meu lado. Riu de minha expressão e encarou-me um pouco triste.
– E o que você fez para isso? – Ele perguntou logo após.
– Fugi para a Floresta das Trevas, afim de nunca mais vê-lo novamente. – respondi.
– Não foi isso que perguntei, embora seja bom saber. – ele tornou a rir. – Quero saber o que fez para que ele beijasse outra garota, porque provavelmente você aprontou alguma logo após.
Recordei-me do dia e das gafes que disse para ele.
– Estava tentando ensinar a ele uma dança quando ele me beijou. E eu me deixei beijar, deixei que cometêssemos aquela loucura sem pensar direito. Depois disse que era uma forma de pagamento pelos inúmeros deslizes e gafes, ou um pedido de desculpas pela estupidez que eu cometia. Alguma coisa assim. Ele ficou chateado. Sei que fui indelicada.
– Deixou claro que não queria nada com ele alguma vez?
Maneei a cabeça em concordância.
- Inúmeras.
– E ainda quer que ele seja fiel a você? Que ele não tente ficar com outra, quando você mesma não fez questão de tentar?
– De que lado você está? – perguntei Runel, nervosa. – Diz que me ama, que me esperou esse tempo todo, que estava com saudades, e ainda o defende? Parece que quer que eu fique com Legolas e o deixe. Que tipo de amor é esse?
Meu amigo suspirou mais uma vez, tentando controlar-se. Ele era muito calmo, mesmo quando eu explodia em raiva e rancor. Procurou meus olhos e fixou-se neles.
– Eu amo você. Nunca tenha dúvidas disso. Mas não sou eu quem você ama e me dói saber que sofre por isto. Entende? Eu não quero que você fique comigo estando apaixonada por outro. Eu não quero ser responsável por você ter esperanças de que um dia você o esquecerá. Porque não vai. Bell, eu amo mesmo muito você, mas não quero que você fique comigo pois não seremos felizes. – Os olhos de Runel começaram a tremeluzir à luz da fogueira.
– Mas... – tentaria argumentar contra ele, porém ele continuava.
– Certa vez ouvi algo que agora faz muito mais sentido. Foi sua mãe quem disse, na época tínhamos dezessete anos, e ela conversava com minha mãe sobre algo. Ela disse: "... porque o amor é uma porta aberta. Você não sabe o tamanho do espaço que vai encontrar dentro dela, mas ainda assim tenta se encaixar, e se você não couber perfeitamente dentro, você se aperta e se machuca. E mesmo que você tente e consiga alargar esse espaço, acabará se ferindo e mudando o coração da outra pessoa. Até que em algum momento você desiste e abre os olhos, vê que em outro lugar tem uma pessoa tentando entrar pela sua porta, e quando você menos espera ela se encaixa lá dentro perfeitamente. Não machuca, não alarga, não reclama de dor, apenas se acomoda como se aquele lugar fosse feito especialmente para ela. Quando você olha para o lado e vê que aconteceu a mesma coisa com aquele que antes você tentava entrar, você entende e compreende que se realmente se preocupa com esta pessoa, deixaria a porta dela livre para o verdadeiro amor entrar. " Não conheço o contexto dessa história, mas agora ela faz sentido para mim. Guardei esse trecho, o reescrevi em um papel para nunca me esquecer. Faria dele um argumento contra ela no dia em que nós dois resolvêssemos ficar juntos. Mas agora eu o compreendo de maneira diferente. Eu deixei sua porta livre para Legolas entrar porque por mais que não soubesse do envolvimento de sua mãe com o rei, sabia que você se encaixaria perfeitamente com o príncipe. Seu coração agora pertence a ele e é ele quem está aí dentro ocupando todo o espaço, não eu. E eu quero que você também perceba isso. Eu guardei essas palavras, mas nunca imaginei que as usaria contra você, e sinto muito.
Runel levantou-se e caminhou até o cavalo em busca de cobertores para nós. Voltou, depositou um em meu corpo enquanto permanecia calada, e sentou-se longe de mim.
– Não acha mais que poderíamos dar certo? Por que não se dá a chance? – perguntei logo após.
– Eu estou dando. Estou me libertando para você ser feliz. – Ele respondeu-me e virou-se de lado para dormir.
Permaneci na mesma posição por muito tempo depois. Minha mente vagava, não indo necessariamente a algum lugar em específico. Runel não me queria como esposa, e desistira de mim por causa de Legolas. Mas ainda assim não tinha problema. Eu continuaria com a minha viajem, e isso era toda a conclusão que eu tomaria naquele momento, com ou sem marido, com ou sem companheiro.
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