Runel dormia em paz do seu lado da pequena fogueira de costas para mim. Os cavalos permaneciam acordados, porém estavam quietos presos na árvore. Juntei tudo o que eu precisaria para seguir em frente, deixando as coisas que pertenciam a ele para trás. Soltei meu cavalo com cuidado, temia que Run acordasse e visse o que estava acontecendo ali. Senti as pernas tremerem pela repentina decisão tomada por mim. Eu deixaria Runel para trás, já que ele não fazia mais questão de continuar com nossos sonhos e planos anteirores, e insistia que eu deveria voltar para Legolas, ignorando o fato de que eu o abandonara e isso era inaceitável de acordo com as regras da seleção. Não que aquela maldita disputa fosse real, mas enfim.
Eu não me permiti pensar muito sobre isso. Por um lado, todas as minhas forças interiores gritavam comigo, imploravam e choramingavam pela minha volta. Essa parte insistia que tudo se encaixaria e voltaria a ter paz se eu estivesse nos braços de Legolas outra vez. Mas outra parte, essa compõe a teimosia, o orgulho próprio e a aversão de certas coisas me faziam continuar com meus planos. E, no meio disso tudo, o tempo passava e eu me deixava levar para o que era mais fácil, pois sabia que se eu voltasse, talvez até já fosse tarde demais. Acho que Legolas não me perdoará nunca por magoá-lo dessa forma.
Enquanto avançava pela estrada na mais completa escuridão, esforçava meus olhos para ver se Runel não havia despertado. Segui calmamente e sem fazer muito barulho, com o máximo de cuidado para que o cavalo não nos denunciasse. Precisava seguir, era tudo o que me restava naquele momento.
Meu plano? Encontrar um lugar para ficar, primeiramente. Uma casa ou até mesmo um quarto apenas, e depois ver no que poderia trabalhar. E esquecer o príncipe e as tramoias de minha mãe e do rei, o que era meu objetivo principal.
Caminhei na escuridão até o sol nascer. Dei um pouco de água e comida para meu cavalo, e pus-me a rumar para um lugar qualquer, me distanciando da estrada principal para que Runel não me encontrasse facilmente, caso tentasse me procurar quando acordar.
Peguei um longo pasto onde alguns bois ruminavam calmos, e avistei alguns cavalos e insetos enormes também. Concluí que por perto, talvez, encontrasse alguma propriedade. Foram necessárias várias horas para encontrar a tal casa, esta tão estranha e misteriosa que não me atrevi a chegar perto. Algo nela me intrigava, aquela não parecia uma fazenda normal.
Porém, a poucas horas dali encontrei uma pequena lagoa que sustentava algumas árvores frutíferas ao seu redor, e me dispus a passar a noite ali. Colhi algumas de suas frutas e as guardei para o dia posterior, e dei algumas para o cavalo, que bebia água sem parar por causa do cansaço do dia.
Percebi que não tinha habilidades com fogueira ou com fazer fogo. A noite começava e eu sentiria frio. Apesar disso tentei esfregar os gravetos, mas em vão. Era uma coisa que eu não realmente não sabia como conseguir e desisti de imediato ao constatar meu fracasso.
A luz da lua era suficiente para eu enxergar a minha volta, porém sentia um frio incomum, que nunca senti em toda a minha vida.
Pensei no palácio e todo o seu escandaloso conforto. Nas luzes douradas e aconchegantes do jardim particular em frente à minha sacada. Nas árvores que mantinham o local confortável e com aroma agradável e ao mesmo tempo com um ar selvagem. Nas horas em que passei observando Legolas passear com as outras garotas e cortejá-las, numa tentativa frustrada de encontrar uma noiva adequada para ele. Eu nunca quis me envolver mais do que isso e sinto-me desapontada pelo rumo dado nessa história.
Meu cavalo deitou-se na grama e relaxou, e encostei minha cabeça em sua barriga, que se acomodou aos poucos. Passei minhas mãos por sua crina lisa e contemplei as estralas do céu, recordando-me dos brilhantes olhos do príncipe que eu pegava encarando-me por diversas vezes e suspirando um desejo antes desconhecido por mim.
Será que tudo ao meu redor me fará pensar nele?
Será que o tempo não o apagará de minha memória?
Sinceramente, eu teria de descobrir isso no dia-a-dia. Por enquanto, eu só me permitia relaxar mesmo sentindo muito frio, e tentar dormir mesmo com o tormento de meus pensamentos.
~***~
– Aimee, está na hora. – Hëllinien despertou-me. Todos os dias as sete da manhã eu era desperta para por a mesa do café da manhã para os hóspedes da estalagem do senhor Guilden.
Acordei num susto. A voz de Hëllinien ás vezes parecia a de Vell quando tentava me despertar para o café com o príncipe e as garotas. Muitas vezes a chamei de Vellinel, e em muitas dessas vezes disse que não queria tomar café com o príncipe. Hëllinien ria, claro, eu não me atrevi a contar a ninguém sobre minha origem e minha vida e ela não sabia do que eu estava falando, então, sarcasticamente, respondia dizendo que o príncipe me aguardava ansioso e que não poderia me atrasar.
Levantei-me num pulo e suspirando forte. Há dois meses estou na estalagem deste senhor, que em troca de alguns serviços me deixava dormir junto com uma de suas empregadas no menor quarto que já vi em toda a minha vida. Até mesmo a casa de Runel e seu quarto, eram melhores do que aquele lugar. Mas eu não reclamava. Em pouco tempo havia juntado dinheiro o bastante para continuar minha viagem pela Terra Média sem passar por grandes dificuldades como foi no início.
A noite eu cantava e tocava em seu bar. Este que abria todos os dias e exigia que eu fosse em todos eles. O problema é que ficava lá até a madrugada chegar, e sempre morria de sono no dia seguinte, quando precisava arrumar os quartos e demais locais da propriedade.
Desci até a cozinha ainda abrindo a boca, cheia de sono. Trusdy já colocava o chá para os hóspedes e os donos, enquanto eu arrumava a extensão da mesa com os demais talheres. Os senhores, Guilden e sua esposa Landa, já bem avançados em idade, permitiam que seus filhos comandassem tudo em sua propriedade, o que era o inferno às vezes.
Eles me comiam com os olhos, e aquilo me deixava frustrada e muito incomodada com tal atitude. Tive medo no início do que eles poderiam fazer comigo, mas estes se comportaram até o momento, exceto no dia em que um deles "acidentalmente" passou uma de suas mãos por minhas coxas, enquanto arrumava a cozinha sozinha.
Agora, todas as vezes que me encontro sozinha com um deles, finjo que tenho outra coisa para fazer em qualquer outro lugar da estalagem e saio de sua presença. Precisava aguentar apenas mais alguns dias e iria embora daquele local imundo. Havia recebido uma proposta de um Gran Senhor para tocar no casamento de sua filha em menos de um mês e eu iria para sua cidade, este que se encatara por minha voz e minhas canções e prometeu-me ajuda com minha carreira musical. Ao contrário do senhor Guilden, o senhor TomWise e sua esposa abriram para mim um leque de novas possibilidades que eu faria de tudo para aproveitar.
– Prepare o quarto de hóspedes máster, Aimmee. Nosso novo hóspede e convidado chegará hoje, provavelmente já deve estar ultrapassando as fronteiras de Arnor. – Guilden II, o filho mais velho, ordenou-me.
– Imediatamente, senhor. – Respondi, servindo-lhe seu costumeiro chá de limão em seu quarto.
Aimmee era o nome que escolhi para esconder minha identidade e dar um nome mais artístico para ela. Se alguém procurasse por mim, não colheria informações sobre Luzziel Belle, a ex-selecionada do príncipe da Floresta das Trevas. Eu era agora apenas uma artista em ascensão, como o senhor Tom me dizia.
Após todos os demais serem devidamente servidos, me retirei para o maior quarto de hóspedes que a estalagem tinha afim de arrumá-lo para o viajante. Este que anunciara sua hospedagem há mais de dois meses atrás, finalmente chegaria ao destino final. Estava um tanto curiosa sobre de quem se tratava, o estranho parecia ser alguém importante.
Quase no fim do dia tudo estava pronto para recebê-lo. Quando percebi que meus serviços já estavam feitos, rumei para o quarto que ficava nos fundos afim de me arrumar. Seria mais uma longa noite cantando e tocando no bar, sendo ignorada por alguns bêbados e cobiçada por tantos outros. Não reclamava e aguentava pacientemente pois estes me davam gorjetas muito boas, apenas de sentir um arrepio na espinha de medo todas as vezes que algum parecia querer quebrar as barreiras da cobiça.
Quando sai do banho percebi que alguém me observava. Os olhos de todos os irmãos eram castanhos muito claros, e pude perceber que se tratava de algum deles. Assustei-me e dei um pequeno grito, porém ele não recuou. Continuou a me encarar, como se esperasse eu me despir da longa veste que cobria meu corpo.
Porco nojento!
Ouvi vozes logo após vindas atrás dele. Aparentemente o visitante chagara. O irmão, que reconheci ser o mais novo, deu uns passos para trás e saiu da janela do meu quarto, rumando para a entrada da hospedagem.
Senti meu corpo tremer em fúria. Eu não merecia aquilo! Era desrespeitada da pior forma possível, cobiçada por alguns bêbados sem escrúpulos e meus patrões, tratada como lixo até mesmo pelas criadas de mais tempo as vezes. Até mesmo os senhores mais velhos me viam como apenas mais uma criança iludida com o mundo, que chegara cheia de sonhos em uma cidade relativamente velha, e dera de cara com a realidade. Uma realidade muito pior do que aquelas de quem vive em Valle ou em Mín. Inaceitável aos olhos de meu pai, e até mesmo do gentil Senhor Bard, que sempre prezou por igualdade e justiça para todos. Vivi cercada por esses princípios, e percebi que até mesmo Thranduil, que era detestável a maior parte do tempo, mantinha um nível altíssimo para os seus súditos, tratavam-lhes com o melhor sempre, e ao seu povo sempre fora dadas coisas maravilhosas, fora o respeito e a segurança. Coisa que era desconhecida onde estou. Mas aquilo estava prestes a acabar, e quando eu estivesse prestes a ir embora cuspiria algumas palavras para eles.
Mal-educados filhos de orcs!
Vesti minhas roupas o mais rápido possível. Arrumei meus cabelos e os prendi tratando de sair dali muito depressa possível. Suspirei, tentando controlar meu súbito ódio por aquele moleque nojento e segui para o saguão. Quando o bar abrisse, eu ajudaria as moças a organizar tudo antes dos clientes chegarem. Porém, antes mesmo de cruzar as portas, vi que Hëllinien servia o chá para o novo hóspede com um sorriso de orelha a orelha. Este que retribuiu o sorriso sem malícia, parecia simpático. Tinha os olhos azuis muito bonitos e os cabelos negros lhe caíam em sua face um pouco castigada pelo sol. Devia ter pouco mais de trinta anos, mas seu olhar revelava uma experiência e delicadeza que quase ninguém daquela família tem. E responsabilidade.
Bom, espero que esteja certa quanto a isso.
Meus olhos pesaram durante as músicas que tocava naquela noite. Sentia muito sono por causa da pouca movimentação do bar naquele momento, e mesmo tentando tocar as melodias mais agitadas, o sono não passava.
Por volta da meia noite avistei o dono e seus filhos adentrarem o local com o visitante. Estes sentaram-se perto do piano, e o senhor de olhos azuis passou a observar-me atencioso, cantarolando algumas das canções. Sorriu algumas vezes para mim, e passou a conversar com os anfitriões. Algo naquilo me incomodou profundamente. Aparentemente, ele conversava sobre o senhor TomWise. Parei um momento a música afim de ouvi-lo:
-Ele e sua esposa, infelizmente, não sobreviveram. - O senhor de olhos azuis informou, e senti minha face travar em choque. - A filha mais velha tomaria seu lugar assim que ela se casasse, mas seu futuro marido também veio a óbito.
Engoli em seco. A família TomWise era adorável!
-Morreram queimados, você disse? - o filho de Guilden do meio perguntou.
-Assassinados, em minha opinião. Algo me diz que a garota também era alvo, mas esta conseguiu escapar.
-Está ouvindo, Aimmee? - Guilden virou-se para mim. - Seu próximo anfitrião está morto!
Ele sorriu glorioso e senti uma imensa vontade de socar-lhe a face. Velho imbecil!
Dei por encerrada as apresentações daquela noite, estava chocada e tive que engolir minhas lágrimas diante toda aquela informação. Aquela família não merecia isso, um final trágico para pessoas tão doces.
Cada dia que se passava me surpreendia com as atrocidades que ouvia sobre os quatro cantos da terra.
– Senhorita Aimmee, um momento. – Guilden II, o irmão mais velho, chamou-me a atenção quando me viu adentrar meu quarto.
– Senhor?
– Quero que vista isso, e vá servir Aragorn em seu quarto. – Ele disse, entregando-me uma camisola branca, fina e quase transparente.
– Como é? – Perguntei incrédula. – Eu não vou fazer isso!
– Claro que fará. É uma ordem!
Encarei-o.
– Não vou cumprir com essa ordem. Não pode me mandar cumprir tal coisa, não manda em mim. O que pensa que eu sou, uma meretriz?
Guilden encarou-me impaciente.
– Ou fará, ou será imediatamente expulsa sem nenhum centavo no bolso e sem seus pertences!
– Mas...
– E não lhe devolverei seu cavalo. Ficará conosco pelas suas dívidas.
– Dívidas? Do que está dizendo, não devo nada a nenhum de vocês! Seus porcos!
– E acha que alguém acreditará em você? – ele cuspia em meu rosto a medida que as palavras saíam. – TomWise, aquele velho insolente que queria lhe tirar de nós está morto agora e não há quem possa lhe defender. Nem identidade a senhorita tem, não há quem diga o contrário. És minha serva a partir de hoje. Sou seu dono agora.
– Claro que não! – Minha voz alterou-se. – Sou livre! Nasci e cresci livre, e não lhe devo nada!
Guilden pegou-me pelo braço, forçando-me a encostar na parede.
– Não, não é. Agora vista essa camisola, Aragorn gostou de sua belíssima aparência e você irá servi-lo.
O irmão mais velho tentava arrancar meu vestido a força, enquanto eu protestava e gritava. Percebi que ninguém daquele local teria piedade em me ajudar, apesar da súplica.
Sem mais delongas, aquele ser asqueroso que se considera homem arrancou minhas vestes, deixando-me apenas com as finas vestes de baixo, e tapando minha boca com uma de suas mãos, ele enfiou a camisola por minhas pernas e me forçou a vesti-la.
Guilden arrasto-me até o quarto de hóspedes do tal Aragorn, empurrando-me porta a dentro. Cai praticamente aos pés do senhor de olhos azuis, agonizando em lágrimas e sentindo meu corpo fraquejar perante os dois homens diante mim.
Seu rosto, porém, emitia um estado petrificado e confuso.
– Guilden, está maluco? Solte-a! – O senhor ordenou, chamando a atenção de Guilden. – O que pensa que está fazendo?
Guilden soltou-me no chão e num instinto tentei cobrir meu corpo seminu dos olhares dos dois. Em prantos senti meu espartilho ceder e as lágrimas caindo sobre meu corpo, revelando parte dos meus seios.
– Essa vagabunda não quer obedecer minhas ordens! – Guilden gritou, nervoso pela intervenção de Aragorn.
– E o que te leva a crer que ela deveria? Estava maltratando-a e, pelos céus, ela está quase nua e arranhada. Não deve tratar uma dama assim. – Ele respondeu agachando-se ao meu lado, pronto para me ajudar a levantar.
– Como sempre se fazendo de bom moço, Aragorn? – Guilden passou a rir sarcasticamente. – Estava preparando-a para você, visto que gostou da moça.
Aragorn abraçou-me pela cintura e me levantou com cuidado.
– Gostar da aparência dessa bela jovem não significa que quero possuí-la! Pensei que me conhecesse, e soubesse que eu não aprovo esse tipo de violência contra uma dama. E você também deveria respeitá-la. Ela não é sua escrava, Guilden. Tenha uma atitude honrada, e peça perdão a ela.
– Quem pensa que é para me dar ordens ou para questionar meus métodos, Aragorn? – Guilden gritou, cerrando os punhos. Porém ele era muito mais fraco que o amigo, e provavelmente tinha algum medo deste, já que não tentava atacá-lo.
Aragorn entregou-me um manto para me cobrir, enquanto mais lágrimas desciam em meu rosto. Fiquei imóvel. Eu não sabia como me comporta perante a situação e o desespero em meu corpo me fez ceder ao medo. Queria agradecer esse senhor por ser um perfeito cavalheiro e entender o medo que se apoderava de mim.
Ele fitou-me.
– Eu lhe levarei dessa casa, se quiser. Estou em rumo à Floresta das Trevas, mas posso te deixar em outro lugar a caminho, menina. Tenho certeza que conseguiria algo melhor para a senhorita do que isso, não merece ser tratada como mercadoria e não precisa ficar sob as asas deste... senhor. - Aragorn encarou Guilden ameaçador.
Assustei-me com a proposta dele e senti todos os pelos de meu corpo se eriçarem. O que ele faria na Floresta das Trevas? Ele conhecia os Greenleaf?
– Não pode levá-la! Ela é minha propriedade. – Guilden bufou, porém Aragorn ignorou.
– Venha comigo. Te ajudarei a se livrar deste covil.
Apenas balancei a cabeça em afirmação.
Mas e agora? Para onde eu iria?
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