Capítulo 7
Confidências I
Após se despedir de Dohko, Arethusa rumou aos aposentos da deusa, onde, a pedido desta, iriam tomar o café da tarde juntas.
A serva apreciava bastante a companhia de Athena. Aprendeu a respeitá-la como divindade, mulher honrada e admirável e, mesmo, uma companhia adorável. Seu apreço por Saori vinha desde que a deidade assumiu o Santuário após a Guerra; a deusa era, na ocasião, uma adolescente de 13 anos, e ela, aos 27, era uma serva exemplar. Fora designada pela antiga chefe das serviçais como serva pessoal da mocinha, logo depois da sua ascensão ao trono e, após um ano, conquistou também o cargo de chefia por ocasião da aposentadoria da anterior e por seus serviços irrepreensíveis. Porém, não quis deixar de servir a divindade, conciliando com muita competência as suas muitas atribuições.
***
- Permite-me a entrada, minha deusa?
- Claro, Thusa. Estava à sua espera. – ambas rumaram à fatídica mesinha da varanda, a qual a serva, com esmero, arrumou com uma toalha azul bem clarinha, xícaras com estampas de florzinhas delicadas, o bule de louça com chá de erva-doce e uma bandeja de prata com biscoitos de macadâmias.
- Posso servi-la, minha deusa?
Athena apenas meneou com a cabeça, afirmativamente, com um sorriso esmaecido e o olhar quase inexpressivo. Começaram a degustar o delicioso lanche em silêncio.
“Athena me parece distante e um tanto triste de semanas para cá... o que pode ter acontecido? Ai... seria atrevimento de minha parte perguntar? Nunca a vi desse jeito, e não gosto disso!” – ao ouvir um suspiro baixinho da deusa, a devotada serva não resistiu e resolveu indagar perante aquela situação incômoda:
- Senhorita... perdoe-me a indiscrição, mas... está acontecendo algo? Eu a noto entristecida há um tempo...
Saori teve um pequeno sobressalto e a encarou. “Ah, pelos deuses! Está tão óbvia a minha dor?”
- Thusa... não sei do que está falando...
- Peço-lhe perdão mais uma vez, mas... a senhorita sabe do meu imenso apreço. Eu a estimo muito, muito mesmo. Minha felicidade e realização são servi-la, e ao Santuário. Vê-la bem é a minha missão. Por isso... sua dor também é minha, deusa Athena.
Saori, que mantinha sua emoções discretamente guardadas em seu peito, não resistiu às palavras tão lindas, e à devoção desprendida de sua serva. Seus olhos tornaram-se rasos d’água, cheios das lágrimas represadas; levantou-se da mesinha e correu para o interior do quarto, entregando-se ao choro. Arethusa imediatamente foi acudir sua senhora.
- M-minha deusa... perdoe-me!
Saori lançou-se aos prantos nos braços de Thusa, a qual retribuiu abraçando a jovem e afagando seus cabelos lilases.
- Fui atrevida, senhorita? Insolente? Por favor, desculpe-me!
- N-não, Thusa... por favor... me deixe chorar... não fez nada de errado...
Arethusa, atônita, reteve a moça chorosa em seu abraço fraternal por longos minutos. Saori desvencilhou-se, tomou as mãos de sua estimada serva; fê-la sentar-se na cama e repousou sua cabeça em seu colo, umedecendo a saia da serviçal com derradeiras lágrimas. Arethusa continuou afagando os cabelos de Athena, até que a sentiu se acalmando após aquele desabafo . A deusa vagarosamente ergueu-se de seu colo, encarando com ternura o belo rosto da serva e, com desvelo, enxugou com a ponta dos dedos algumas lágrimas que também rolavam no rosto moreno.
- Thusa... obrigada por sempre estar comigo... por sua companhia, dedicação... sua amizade.
Arethusa sorriu, surpresa e agradecida. A deusa continuou:
- Sim, amizade... cumplicidade... nem mesmo algumas irmãs de sangue conviveriam tão bem e felizes como nós. Se me permite, poderia até dizer que... você é como uma irmã mais velha para mim. Confio tanto em você!
- Ah, senhorita! Fico tão honrada!
As duas sorriram, dando-se as mãos. Depois de Shion, Arethusa era a pessoa que mais convívio tinha com ela. Aquele momento serviu para descontraí-las; então, as “amigas” começaram a relembrar momentos alegres que já partilharam, afastando momentaneamente a tristeza de Saori: a ressurreição dos cavaleiros, a reconstrução do Santuário; o momento em que se conheceram, até mesmo a decoração do quarto divino, os pertences pessoais...
- Ai, Thusa... você se lembra quando fiquei menstruada pela primeira vez? Minha nossa!
- Eu me lembro... foi um mês após as coisas se ajeitarem por aqui. A senhorita achou que estava doente!
- Doente? Eu achei que ia morrer! Você teve que correr até a vila para comprar absorventes, eu nem fazia ideia de como usá-los! Nem quando assumi novamente a Fundação eu fiquei tão perdida! – as duas riram. – e as cólicas, então?! Um suplício até agora!
- Mas o anticoncepcional reduziu suas dores, não é, senhorita?
- Um pouco, sim. E quem me acompanhou na primeira consulta ao ginecologista? Você, minha querida amiga, irmã mais velha!
- Sempre a ajudarei em tudo o que precisar, minha deusa – disse, feliz.
Saori ficou reflexiva diante dessa última frase. “Sempre a ajudarei em tudo o que precisar, minha deusa”.
- Thusa... – disse – “Thusa com certeza será uma boa confidente” – você... “ai, como posso começar?!”
- Diga, minha deusa.
“Sempre a ajudarei em tudo o que precisar”.
- Thusa, você... não se sente sozinha? Digo... hãn...
A serva arregalou os olhos, e foi a deusa quem se desculpou:
- Desculpe a indiscrição, mas... v-você já gostou de alguém? – enrubesceu.
- Senhorita... o q-que quer dizer?
- Nada, só... queria conversar a respeito... Nunca conversamos sobre isso. Você já foi comprometida? Poderia me contar como foi?
Arethusa suspirou; achou por bem não se esquivar e deixar a deusa Athena sem resposta; apesar de este ser um assunto um tanto indigesto, a serva guardava lembranças tristes, que precisavam ser divididas para, consequentemente, tornarem-se menos difíceis de carregar.
- Nunca falei sobre isso... sim, tive um namorado, há uns anos. Quase noivamos. - pausa. – eu tinha dezenove anos, trabalhava numa loja de roupas masculinas de grife em um shopping de Atenas. Ele era cliente da loja, tinha 26 anos, fazia compras com frequência lá. Começamos a conversar, e logo marcamos alguns encontros depois do expediente. Nos apaixonamos. Descobri que ele era dono de vinículas, muito, muito rico. Eu sempre fui humilde, mas ele não se importou. Nem quando me levava para de volta para minha casa, no subúrbio. Resolvemos assumir um compromisso como namorados, e então tudo se complicou.
- Mas por quê?
- Ele, bem intencionado, me levou para conhecer a família. Eles me detestaram. Eu era pobre, suburbana, sem berço. Não era o que esperavam como nora. Cochichavam, não conversavam comigo, jogavam indiretas em relação à minha baixa posição social. Deixaram claro que não me toleravam. Meu namorado sentia-se mal, e entrava em atrito com os familiares; ele e eu aguentamos essa situação por meses. Até que, inesperadamente, os pais dele me convidaram para um jantar na mansão. Fui muito contente, achando que tinham mudado de opinião sobre nosso namoro. Mas haviam convidado também um casal de banqueiros e sua filha solteira; o tempo todo, elogiavam a moça: linda, rica, refinada, estudada. Um ótimo partido para o filho. Praticamente a jogaram nos braços dele. Tudo na minha presença.
- Que horrível, Thusa...
- Nunca fui tão humilhada. Saí daquela mansão, terminei o namoro...
- E ele? Não a procurou?
- Todos os dias. Queria sair da Grécia comigo, teve depressão. Mas eu me recusei a voltar a namorá-lo... não tinha forças para lutar, não conseguiria ir contra sua família, ouvir desaforos. Resolvi esquecê-lo. Foi nessa época que vim trabalhar no Santuário. Uns meses depois, ele finalmente conseguiu se reerguer, e começou a namorar a tal moça do jantar. Dois anos depois, fiquei sabendo que ele faleceu na queda de seu jatinho, numa viagem de negócios.
- Sinto muito... muito mesmo. De verdade.
- Não sinta... Nikos agora é apenas uma boa lembrança.
As duas se olharam, cúmplices, por uns instantes.
- Ah, senhorita Athena... estava chorando até agora a pouco... desculpe se a entristeci com minha história. Não deveria ter contado.
Um longo silêncio se instalou, quebrado por Saori:
- Thusa, éh... bem... como é se apaixonar de verdade por alguém? Digo... como soube que o amava?
- Como assim, senhorita?
- Você sentia... coisas? Coisas do tipo... sonhava acordada com ele o dia todo? O olhar dele a desconcertava? O cheiro? Você ficava meio... sem reação na presença dele?
- Minha deusa...!
- Já sentiu seu coração doer? Acordou e adormeceu pensando no mesmo homem?
Arethusa arqueou uma das sobrancelhas, interrogativa... De súbito, sua intuição feminina sinalizou e ela abriu amplamente seu olhar:
- Senhorita... pelos deuses... está gostando de alguém?!
Muitos usuários deixam de postar por falta de comentários, estimule o trabalho deles, deixando um comentário.
Para comentar e incentivar o autor, Cadastre-se ou Acesse sua Conta.