Esse negócio de não ter amigos é algo complicado. Ainda mais quando tanto sua mãe quanto seu pai viajam à negócios no mesmo final de semana. Não que eu me importe em ficar sozinha, mas é, sendo o mais redundante possível, solitário. Não os culpo... Em partes. Talvez eu tivesse mais tempo de conhecer as pessoas se nós não nos mudássemos tanto. Só nos últimos três anos, foram quatro vezes, uma delas sendo até antes do final do ano letivo. Sempre que eu conseguia me acostumar com um lugar novo, eu ia embora.
Depois da quarta vez, resolvi parar de fazer amigos. Era mais fácil ir embora sem ser notada do que ter aquela chuva de lágrimas todas as vezes. Mas esse não é o ponto hoje - de certa forma. Hoje é sábado e eu não quero cozinhar e pedir comida seria quase metade do meu orçamento para sobreviver ao final de semana. O que fazer quando você não quer sujar o fogão para não ter que limpar depois e nem gastar seu orçamento? Isso mesmo, você vai até a loja de conveniência do bairro. Num sábado. Na hora do almoço.
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O sininho anunciava a minha entrada. A loja era grande, iluminada e tinha vários corredores de comidas que eu poderia pensar em comprar. "Deveria eu comer algo saudável e reforçado o suficiente para não precisar me mexer pelo resto do dia?", eu pensei, passeando entre as fileiras. A resposta certa era nítida, mas eu nunca fui de fazer as coisas do jeito fácil.
- Isso é tudo? - o caixa perguntou, olhando para a caixa registradora.
- Sim. - eu respondi, colocando meu macarrão instantâneo de copo em cima do balcão. Não era bem um copo, dessa vez: era uma bacia. Uma bacia repleta de sódio, macarrão frito e molho picante. Quando o caixa levantou a cabeça, ela achou que tinha reconhecido ele. - Brian? - ele olhou, confuso. - Brian... Calma, eu vou me lembrar do seu sobrenome...
- Kang. - ele esboçou um sorriso. - E você é a... - ele começou a estalar os dedos, com uma expressão de confusão. - Chelsea. Chelsea...
- Você provavelmente não vai lembrar meu sobrenome. - ele entortou os lábios. - E não tem problema! Não lembram do meu sobrenome normalmente.
- Nós fazemos Sociologia juntos, não?
- É isso aí. - ele usava um colete azul piscina por cima da blusa quadriculada também azul. Em uma das orelhas, ele usava uma argola prata em um dos furos. No outro, era um brinco com uma pequena corrente solta. Seu sorriso, por mais clichê que isso possa soar, completava, junto com o crachá de "Posso Ajudar?", o visual perfeito de um atendente de loja de conveniência.
- E você quer um... Ramen super picante? - ele disse, com a embalagem na mão. - Isso não combina com você.
- Não combina comigo?
- Sim, com essa sua cara de... Princesinha perdida. - eu ri. Ele me acompanhou, com um sorriso.
- Eu sou uma princesinha que gosta de comidas picantes na hora do almoço.
- Me diz que você comeu algo hoje. - ele disse, colocando as duas mãos no balcão, com a expressão mais preocupada que eu já tinha visto ele fazer.
- Uh... Não? - eu disse, meio assustada.
- Então você não pode, de jeito nenhum, comer isso.
- Ué. - eu indaguei. - Por que?
- Comer ramen super picante com o estômago vazio faz você passar muito mal. Eu recomendaria... - ele disse, saindo do balcão e se dirigindo até uma das fileiras da loja. - Esse aqui! - ele gritou, de onde estava. Em alguns segundos, ele voltou andando, sorridente, e colocou no balcão. - Esse sim você pode comer de estômago vazio.
- Obrigada? - eu sorri, confusa.
- Mas na verdade, eu não recomendaria você comer nenhuma comida instantânea com o estômago vazio, mas dos males...
- O menor. Saquei. - eu disse, pegando o dinheiro no meu bolso dianteiro da calça.
- Eu falo demais, desculpa. - ele suspirou, meio sem graça.
- Não, não é isso. - eu disse. - É que eu realmente tô com fome. Eu não como desde ontem.
- Mas são quase uma e meia. - ele disse. Antes que eu pudesse responder, ele voltou a falar. - O que significa que também tá quase na hora do meu almoço. - ele levantou uma sobrancelha. - Eu tive uma ideia. Você pretende almoçar isso sozinha?
- S-Sim. - eu disse, hesitante. Ele soltou mais um de seus sorrisos.
- Então você aceita uma companhia? - ele coçou atrás da orelha. - Nos fundos da loja tem um lugar que dá pra eu fazer os ramens.
- Não tem problema você pegar ramens aleatórios? - eu disse, enquanto ele pegava meu troco.
- É o mínimo que a loja podia me oferecer, não acha? - ele disse, me dando algumas moedinhas de volta. Ele saiu de trás do balcão e apertou a campainha. - Youngcheol, estou indo almoçar.
- Ok! - uma voz respondeu, vinda do fundo da loja. Ele sorriu e foi até um dos corredores da loja, voltando com um ramen idêntico ao que ele tinha trazido para mim as mãos.
- Um segredo? - ele soltou. - É o meu favorito. - sorrindo, ele pegou o ramen que tava na minha mão e foi andando até uma porta no fundo da loja. Eu soltei um sorriso também.
Eu sorri, aliviada. Não ia almoçar sozinha.
——
Eu fiquei esperando do lado de fora da loja, encostada na parede dos fundos, que era da mesma cor que o colete do Brian. Eu estava meio ansiosa, mas esses encontros casuais no meio da rotina é que fazia tudo ao redor valer a pena. Enquanto eu sorria com essa ideia na cabeça, ouvi a porta abrindo e era ele, carregando dois ramens com dois pares de hashi em cima.
- Você sabe comer de hashi? - ele disse, colocando em cima de uma espécie de mesa de piquenique de plástico.
- Sim, senhor. - eu disse, me aproximando. Ele colocou um em cada extremidade da mesa. Eu sentei no lado que estava mais perto de onde eu estava.
- O que você estava fazendo nesse tempo?
- Eu tava... Encostada na parede. - eu ri. - Ah, e estive pensando sobre meu final de semana.
- Seus pais viajam muito? - ele disse, colocando uma perna de cada vez para dentro da mesa.
- Sim. - eu disse, quebrando a junta dos hashis de madeira. - Eles vivem indo pra fora do país.
- O que eles fazem?
- Fazem guias de viagem, têm um blog sobre isso e de quebra ainda dão revisão para aqueles sites que têm propagandas irritantes na TV.
- Sério? Parece incrível. - ele disse, enrolando o macarrão nos hashis.
- E é. Pra eles. - eu respondi, o fazendo sorrir, enquanto eu comia um pouco do ramen que ele tinha escolhido. Era realmente bom.
- Você fica muito sozinha, então.
- A gente se muda tanto que eu esqueço onde a gente mora.
- Onde você já morou? - ele disse, com olhos curiosos.
- Minnesota, California, Ohio, Florida e Chicago só nos Estados Unidos. Morei no Chile durante dois anos. Fiquei um ano no Brasil, em Curitiba. Três meses no Japão... - ele arregalou os olhos.
- Você já passou por três continentes.
- E ainda não acabou. - eu sorri. - Argentina também.
- Um dos meus amigos nasceu na Argentina. - ele disse, puxando mais macarrão. - Ele toca guitarra e parece um frango. - eu ri. - Sério mesmo! Deixa eu te mostrar a foto. - ele puxou o celular do bolso e mexeu durante uns segundos. - Olha aqui. - ele virou a tela do celular pra mim e mostrou a foto de um menino magro, meio pálido com o cabelo bagunçado. Ele usava óculos redondos e tinha olheiras meio fundas.
- Meu Deus, ele parece mesmo um franguinho. - eu ri, com a mão na boca.
- Ele nasceu na Argentina mas não sabe nada de nada de espanhol.
- Eu morei lá e não aprendi nada. - eu ri. - Português até arranho, mas espanhol...
- Onde mais você morou? - ele apoiou o queixo nas duas mãos, parecia uma flor. Eu senti minhas bochechas corando automaticamente. Ele tinha um olhar tão carinhoso que me deixava sem graça.
- Eu morei em Portugal também...
- E você veio de onde?
- Bristol.
- Onde fica isso? - ele sorriu, franzindo as sobrancelhas.
- Inglaterra. - eu disse, terminando de comer o ramen. - Muito obrigada pela sugestão, inclusive. Esse ramen é melhor do que o que eu comprava.
- Viu? - ele disse, sorridente. Brian era o cara mais sorridente que eu já tinha conhecido. - Eu sou bom nisso. - ele também usava muito as sobrancelhas.
- Você fala usando as sobrancelhas, né? - ele gargalhou.
- Eu sou muito expressivo, verdade.
- Mas eu já falei muito. Fala sobre você agora.
- Ah, minha vida não é tão movimentada quanto a sua...
- A minha vida é muito inconstante. E isso me irrita demais. Eu só queria conseguir ficar em um lugar tempo suficiente para fazer amizade com alguém.
- Disso eu não posso reclamar. Bem, mais ou menos... - eu entortei minha cabeça. - Eu sou coreano.
- Sério? Isso explica seu sobrenome.
- Eu só estou no Canadá de passagem.
- Você pretende voltar pra Coreia?
- O mais rápido possível. - ele sorriu. - Eu gosto daqui, mas...
- Mas você sente falta de casa.
- Muito. - ele fez uma cara meio agridoce.
- Eu sinto falta de me sentir parte de algum lugar, sabe? - eu cocei a cabeça. - É como se eu não pertencesse a lugar nenhum.
- Sabe, eu não sei como é essa vida de sair por aí e conhecer o mundo, mas... Casa é algo relativo. Você pode escolher algo que represente sua casa.
- Eu nunca pensei desse jeito. - eu respondi, esboçando um pequeno sorriso. - Além de ser coreano, o que mais você é?
- Baixista. - ele disse, sem graça.
- Sério? Isso é incrível!
- Você acha?
- Com certeza! Você sabe tocar um instrumento, isso é incrível. Eu queria saber tocar algo.
- Eu posso te ensinar algumas coisas.
- Sério mesmo? - eu disse, franzindo minhas sobrancelhas, um pouco desconfiada.
- Com certeza. - ele, com as sobrancelhas, dizia que sim. Eu sorri, admirada. - Seu sorriso é muito bonito. - eu fiquei tão sem graça que escondi meu rosto com as duas mãos.
- Suas sobrancelhas também. - eu disse, ainda com a cara escondida. Ele riu.
- Droga. Meu almoço acabou. - ele disse, chateado.
- Tudo bem.
- Mas... Você pode, não sei, deixar seu número...
- Você tá pedindo meu número de um jeito diferente, Brian? - eu disse, cerrando meus olhos e sorrindo.
- Talvez... - ele disse, se levantando e rindo.
- Tá. Você foi uma companhia boa demais para ser de um dia só. - eu disse, pegando o celular dele em cima da mesa. - Como eu salvo meu contato?
- Chelsea ao redor do mundo.
- Onde no mundo está Chelsea Sandiego? - eu ri.
- Isso! - ele riu. - Eu adorei.
- Então te vejo logo, Brian Kang.
- Younghyun. - ele disse.
- Quê?
- Meu nome na Coréia.
- Você tem um nome só pro Canadá? - ele ficou sem graça, com as bochechas coradas. - A gente ainda precisa conversar sobre muita coisa.
- Até logo, Chelsea Sandiego.
- Até logo. - eu disse, enquanto ele entrava na loja novamente.
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