"First, you both go out your way
And the vibe is feeling strong
And what's small turn to a friendship
A friendship turn to a bond"
(See you again - Wiz Khalifa & Charlie Puth)
Agosto de 2019
Amélie Lombardi
As coisas acontecem rapidamente em corridas de fórmula. A fórmula 2 não é uma fórmula 1, as velocidades são menores, ainda assim atingimos limites que a maioria das pessoas nunca vai sequer sonhar por toda a vida. Por isso os treinos diários, todas as atividades e exercícios para conseguirmos pilotar nessa velocidade e tentar fazer com que nada dê errado, controlar algo que não muito tempo atrás parecia incontrolável.
Os reflexos são uma coisa básica no automobilismo, nessa velocidade qualquer escolha errada pode ser fatal e todos sabemos disso, mas dia após dia fazemos de tudo para que, quando chegar a hora, possamos tomar a decisão certa.
Eu amo Spa, é uma das minhas pistas favoritas, mas sempre me incomodou a forma como a morte parece ser normal por aqui e não vejo uma comoção tão grande dos responsáveis para tentar acabar com isso e garantir uma segurança maior para aqueles que estão na pista arriscando suas vidas.
É meu quinto ano em monopostos, portanto chega uma hora que você se acostuma com o fato de que acidentes acontecem, principalmente na base. Tanto por erros dos pilotos ou carros estragando sem motivo aparente, todos querem evitar, mas o fato é que eles acontecem. Com você, na sua frente, ao seu lado, bem atrás, com seus companheiros ou até em um momento que você nem imagina que na mesma pista e no mesmo momento há pilotos vivendo momentos que podem vir a ser traumatizantes. Cheguei na fórmula 2 sem nunca ter me envolvido em nenhum acidente de grande importância, bati duas vezes, uma por erro do outro piloto que errou e me jogou para fora da pista e eu bati na barreira e outra quando meu carro resolveu apagar enquanto eu fazia uma curva de alta, não foram momentos particularmente divertidos, mas também não digo que foram traumatizantes. Em ambos o carro realmente não ficou muito bem, mas eu consegui sair intacta, sem um arranhão que fosse, o que eu sempre considerei minha maior conquista, sério. Já tive que presenciar meu irmão se meter em alguns acidentes que eu honestamente não sei como meu coração não parou no momento que via as imagens, mas ele também sempre ficou bem.
Porém as coisas eram diferentes em Spa, sempre foram. Eu particularmente amava a adrenalina que essa pista gerava, é especial, porém não sei dizer se num geral isto é algo necessariamente bom.
Sempre fico em alerta para passar pela Eau Rouge, é automático, mas nunca em minha carreira eu sequer havia presenciado algo ali, pelo menos não enquanto eu também estava na pista.
A questão é: na hora de um acidente, por mais rápido que nossos reflexos possam ser, por mais seguras que as barreiras sejam e por mais que a célula de sobrevivência dos carros vem sendo cada vez melhores, há locais, momentos e circunstâncias que nada parece ajudar e mesmo você não acreditando na existência de algo divino, parece ser só aquilo que vai te ajudar.
Quando eu vi Giuliano Alesi perder o controle de seu carro e rodar na pista eu estava em uma velocidade perigosa para a situação, seu carro saiu da pista pela esquerda e o estrondo de quando ele atingiu a barreira chegou a me assustar e por um milésimo de segundo eu quase não percebo seu carro voltando para a pista. Joguei instintivamente meu carro para a direita tentando fugir dos detritos e já em desespero por não ter visto ainda sequer uma bandeira amarela, mas desacelerando bastante mesmo assim enquanto tentava não perder o controle do carro. Não consigo descrever a sensação de quando senti o impacto na traseira do meu carro, fui arremessada para a frente e a única coisa que consegui fazer foi soltar o volante e torcer pra nada pior acontecer, quando senti o impacto com a barreira eu fechei os olhos, uma dor interna insuportável surgiu e eu não sabia se era algo físico ou proveniente do barulho que eu tinha ouvido segundo depois de baterem em mim, eu estava viva? Bom, parecia que sim. Juntei minhas forças e tentei soltar meu cinto, sem muito sucesso, então apenas olhei para o lado vendo a bandeira vermelha e os últimos carros passando pelo local do acidente. E não era qualquer acidente, dois carros estavam literalmente aos pedaços a minha frente, em um deles eu conseguia ver as pernas do piloto para fora, já que seu carro se partiu ao meio. Minha visão estava turva e eu comecei a ver estrelas, senti que não estava bem, mas precisava sair dali e tentar ajudar. Parei abruptamente quando vi fogo, fiscais finalmente chegando nos carros deles e também no meu, sabia que eles estavam falando comigo e por mais que eu fizesse esforço eu não conseguia responder. Eu estava bem? Acordada? Acho que sim. Mas não sabia como falar.
Eles devem ter percebido que eu estava me mexendo, então cortaram o cinto de segurança e perguntaram se eu conseguia sair do carro sozinha, a essa altura uma ambulância já estava na pista, mas claramente minha situação não era nem de perto tão grave como a dos outros, a onda de preocupação adicionada a um esforço tremendo para conseguir me retirar do carro fez tudo ir por água abaixo e assim que meus pés tocaram a brita eu cambaleei um pouco, vi minha vista escurecer e a última coisa que me lembro são braços me segurando me impedindo de cair no chão.
[...]
Branco, eu via branco por todos os lugares, teto e luzes, parede, a cama, tudo e meus olhos não pareciam querer se ajustar ao local. Segundos depois eu consigo sentir mãos em meus braços e depois de me concentrar bastante eu ouço uma voz.
— Amélie? Você acordou?
A súplica em sua voz faz com que eu junte todas as forças do meu corpo e me vire para o garoto parado em pé ao meu lado.
— Onde eu estou?
— No centro médico, os médicos fizeram uma primeira avaliação e segundo eles não encontraram nada grave. As situações dos outros eram piores e como no helicóptero só cabem dois então...
— Hum, certo. Posso ir então?
— Claro que não, fica quieta eu vou chamar um médico.
— Charles, espera.
Eu percebi a forma como ele estava agindo, sei que muita coisa deve estar passando em sua mente no momento principalmente porque isso acontece justo no fim de semana que meu pai não está, mas a melancolia em sua voz não era só por minha causa e eu o conhecia bem o suficiente para saber disso.
— O que foi? Precisa de algo?
— O que aconteceu? Seja sincero.
Ele me encara no fundo dos meus olhos, parecia estar em uma batalha interna se deveria ou não responder a minha pergunta. Eu me levantei, percebendo pela primeira vez que estava com uma agulha enfiada no braço, então usei minha outra mão para puxá-lo de volta para meu lado, segurando sua mão como incentivo para continuar. Ele respirou fundo antes das palavras saírem de sua boca.
— Eu não acho que ele vai sobreviver, o Anthoine.
Foi a minha vez de respirar fundo, eu imaginava que pela cena do acidente alguma lesão séria poderia acontecer, mas nunca passou pela minha cabeça que seria algo nesse nível.
— Você viu ele?
— Não. Na hora que eu vi o seu carro no acidente eu fiquei em piloto automático até te ver aqui e ter a garantia dos médicos de que você ficaria bem. Mas fui buscar água enquanto esperava você acordar e vi os médicos comentando sobre o que viram e pela pressa que eles tiveram com ele...algo muito grave tem que ter acontecido.
Uma lágrima acaba escapando do meu olho e Charles logo passa seu polegar em meu rosto para tentar me acalmar, o que acaba piorando a situação.
— Foi ele que bateu em meu carro?
Ele acena afirmativamente.
— Ele foi parar no meio da pista e o Juan bateu no meio do carro dele em um T. Eu estava assistindo a corrida e não prestei muita atenção, mas quando entendi a gravidade eu fui rever para tentar entender o que aconteceu, as imagens são horríveis e é realmente desesperador de assistir. O pior de tudo é que ninguém fez nada errado, talvez os fiscais, mas o real problema está na pista.
Ouvi ele dizer isso me acalmou um pouco, mas bem pouco mesmo. No fundo eu sabia que quando visse tudo direito eu iria arranjar algo para me culpar e me martirizar pelo resto da vida. Afinal eu estava lá, também causei um impacto, poderia ter sido eu.
— Eu apaguei por quanto tempo?
— Uns 30 minutos, na minha mente ansiosa talvez tenham passado horas, mas realmente foi apenas o tempo de eles trazerem você aqui e eu chegar já gritando para conseguir informações.
— Fez uma cena no centro médico por minha causa, Charles Leclerc?
Digo tentando descontrair o clima e tirar o peso de tudo aquilo da cabeça, pelo menos por enquanto.
— Você não faz ideia, eles me colocaram aqui dentro quando ainda estavam te examinando pela barulheira que eu arrumei.
— E precisava?
— Óbvio! Amélie você lembra o que aconteceu nessa mesma pista no ano passado? Você lembra como você se sentiu?
Lembro tão perfeitamente que a simples menção do ocorrido faz meu estômago embrulhar. Tamanho desespero que eu fiquei vendo a cena que eu inclusive tive um ataque de pânico, eu só acalmei quando vi ele intacto na minha frente e pude ter certeza disso, foi completamente desesperador e isso porque o halo o salvou, mas passava pela minha cabeça o que poderia ter acontecido se fosse o mesmo acidente apenas alguns anos antes. Realmente é difícil imaginar como ele se sentiu vendo meu acidente hoje, estando aqui praticamente como o responsável por mim (palavras do meu pai) e em uma categoria sem o nível de apelo e tecnologia da fórmula 1 que deve ter feito com que as informações não tivessem chegado tão rápido assim, naquele momento eu compreenderia qualquer reação que ele viesse a ter.
— Certo, você tem razão. Mas eu estou bem, não poderia estar melhor, eu prometo.
Ele sorri e beija minha testa, eu me agarro em suas costas tentando acreditar em minhas próprias palavras.
— Você acordou!
O médico entra pela porta nesse momento e nos separamos abruptamente, Charles vai até o canto dando espaço para o médico me examinar.
— Sim.
— Está sentindo algo? Dor em alguma região específica ou alguma outra queixa?
— Uma dor de cabeça, mas no corpo acho que não.
— É a força G, provavelmente, e se você não está sentindo mais nada já é uma preocupação a menos. De qualquer forma acho melhor você ir para o hospital fazer um check-up para garantir que está tudo certo, a ambulância que vai te levar acabou de chegar.
— Ambulância?
— Melhor assim, é bom você ter acompanhamento médico por perto nessas primeiras horas pós acidente, algumas coisas ainda podem se manifestar pouco depois. Tem uma representante da prema ali fora que vai acompanhar vocês ao hospital.
Acabei concordando e ele ainda deu algumas orientações antes de sair e voltar com o enfermeiro que tirou o soro de mim e me ajudou a ir até a ambulância. Charles ficou ao meu lado literalmente o tempo todo, só separou quando me levaram para uma sala fazer os exames. Fiz todos possíveis e em dado momento até o entrar nas máquinas ou o "faz tal coisa" começou a piorar minha dor de cabeça. Descobri depois que estava no soro por estar desidratada o que eles perceberam logo que cheguei no centro médico, por isso antes de me liberar eu fiquei ali mais um pouco até terem certeza de que eu estava bem, depois de também tomar analgésicos para melhorar a dor de cabeça. Já estava no tédio de ficar naquela cama e no momento estava esperando Charles que havia ido até a lanchonete buscar algo para comer já que eu estava morrendo de fome, mas quando a porta abriu e ele passou um desespero tomou conta de mim quando vi sua expressão corporal.
— Charles, o que aconteceu?
Ele respirou fundo, colocou uma sacola na mesa ao lado da minha cama e se sentou ao meu lado, passando seu braço por trás de meu corpo enquanto segurou minha mão livre com o outro.
— Ele não resistiu.
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