Brahms encontrava-se muito desorientado. Ele havia passado o dia girando sobre o próprio eixo, em seu quarto secreto, as pontas de seus dedos pressionando cada vez mais o topo da própria cabeça. A imagem de Isac Heelshire, tão jovem e sereno sobre o papel fotográfico em sua mão, o trazia lembranças confusas — muito difusas —; um terror do qual o jovem homem não se lembrava de ser tão atormentante.
Em todos os anos em que cresceu isolado, por detrás das paredes, após a tragédia que mudou a vida dos Heelshire inteira, sequer vislumbrou em suas memórias a figura de seu desprezível tio. Não o considerava como tal. Na verdade, não tinha fresco em sua cabeça se aquele crápula era mesmo algo da família, como Greta mencionara.
Brahms não se recordava. Sequer sabia o que era real e o que era coisa de seus pesadelos.
"Brahms!"
Ouvindo um choro muito alto, o de uma garota completamente desesperada e cansada, o homem mascarado correu pelo corredor das paredes da casa, assim que saiu de seu cativeiro. Havia focos de luz adentrando um buraco na madeira ou outro, no entanto aquilo era irrelevante, pois àquela altura se locomovia como um astuto gato de rua. Não se importou com os objetos de construção que caíram agressivos atrás de si; cilindros finos de metal e algumas madeiras que ainda possuíam a chance de serem usadas e que antes repousavam encostadas à parede.
Brahms continuou correndo como se, pela primeira vez, tivesse se perdido em seu próprio labirinto, sentindo — de repente — o desespero o consumir quando olhou para o teto e viu as sombras no painel virarem extensas árvores distantes.
"Tudo isso é culpa sua!", uma voz rouca e gritante, de um homem cujo não via o rosto, ecoou em meio à sua fuga, fazendo-o se encolher e bater sobre a parede da esquerda, após perder o equilíbrio. "Eu vi o que você estava fazendo. Você é o errado aqui!".
O suéter de Brahms já havia ganhado mais desfiados e rasgos do que se podia imaginar. Sua pele por debaixo do tecido portava feridas indolor, tamanho era a brutalidade com que esbarrava naquela espécie de ratoeira. Sua respiração era animalesca e queimava em sua traqueia; um grito podendo ser ouvido apenas em seu espaço quando o mesmo se frustrou e reverberou:
— Saaaai!!! — O punho de Brahms afundou a madeira da parede. — Eu não quero viver isso de novo! Quem é você?!
Ele se virou temendo a floresta, mas se desequilibrou, caindo sobre maletas de ferramentas e cavaletes empoeirados.
Ele via uma silhueta parada no matagal, o rosto escuro, impossibilitando a compreensão de seus traços.
— Certo. Já chega... — A outra voz ainda era alta, e para Brahms estava ali, bem na sua frente. — Se você for embora, eu vou matar ela. Se você for embora eu vou matar ela e vou atrás de você!
E ele se levantou, topando desta vez em uma viga baixa, desfalecendo sobre a última curva do corredor à direita.
"Brahms... Brahms!...", ele conseguia ouvir o choro infantil o chamar, em meio a própria visão turva. "Por favor!... Eu estou com medo!"
Brahms ouviu a garota gritar e espernear ainda mais, como se tivesse sido pega, e quando tentou se equilibrar sobre os dois cotovelos — para erguer a mão em sua direção — sentiu a dor latejante açoitá-lo sobre a barriga, assim como uma fisgada se acentuar sobre a lateral de sua testa.
Tamanho era sua confusão, sequer notou que a pancada que recebera — e que lhe arrancara sangue do abdômen e da cabeça — tirara de si seus últimos vestígios de consciência.
● ● ●
— Ele ainda não apareceu para mim. — Greta tinha o telefone sobre a orelha, enrolando, muito aflita, o fio do mesmo sobre o indicador. — É, Malcolm, desde que voltei do mercado. Já são dez para as onze, e ele não corresponde nenhum dos meus gestos.
— Você não acha que está… se preocupando demais com o Brahms? — Malcolm tentava ser gentil, no entanto não conseguia aceitar a maneira que Greta se importava demais com um louco-assassino. — Ele já está bem grandinho, Greta. Ou já se esqueceu do tom que o senhor e a senhora Heelshire utilizaram em referência a você quando escreveram aquela carta? — Ele afinou a voz. — "Ela é sua, ela é sua!... Sua para amar e cuidar!" — Acabou sorrindo, mas logo teve seu momento de descontração destruído pela cortante voz da babá.
— Malcolm, isso não vem ao caso. — Sua voz embargou, o que a forçou cobrir a própria boca com a mão. — O Brahms está desaparecido desde que lhe entreguei a fotografia, e eu ainda me lembro muito bem de como ele ficou atordoado ao sair da cozinha.
— Ele é mimado... Deve estar quebrando alguns brinquedos por aí.
— Quer saber, Malcolm?... — Greta se irritou com a resposta do amigo. — Eu vou desligar.
— Ei, Greta, espera aí…
— Quando vim para este lugar, não contava com a ajuda de mais ninguém. — Cortou mais a vez. — Então, eu irei me virar. E irei lidar com o Brahms sozinha.
— Você sabe que também não é assim. Que minha presen…
No entanto, a ligação já havia sido encerrada.
Greta precisou acariciar os cabelos para trás para que pudesse pensar com clareza. Era nítido que não teria o apoio sincero de Malcolm, e que ele era um risco, pois sabia de toda a verdade e a qualquer momento poderia acionar a polícia. Ela decidiu então que se importaria com aquilo depois, pois seu foco agora era encontrar Brahms. — E apesar de não se sentir à vontade apenas por se imaginar adentrando os corredores que, semanas antes, utilizou para fugir do local, sabia que teria de reviver aquele caminho novamente.
Apenas com a lanterna na mão, Greta engoliu em seco quando parou na soleira do único quarto infantil da casa. Os brinquedos antigos a encaravam de suas prateleiras, e arrepiada a mulher seguiu em direção ao armário. Lembrava-se de que ali havia uma entrada, e tateando as paredes ocas em busca da passagem, grunhiu quando sua mão se perdeu sem apoio.
Greta se enfiou sobre as roupas e o cheiro de naftalina, o corpo ultrapassando a linha tênue do lado "seguro" para o lado inacreditável, mas ao mesmo tempo tão real.
— Brahms?... — Chamou tímida, ajeitando a potência da luz de sua lanterna para o máximo.
Estava tão escuro que teve a impressão de que jamais sairia dali. Sabia que teria de passar a noite naqueles corredores, caso a lanterna parasse de emitir iluminação. Decidiu não ser pessimista e continuar a sua procura, entrando em diversos corredores, mas voltando do início para que pudesse seguir um mapa mental de acordo com a casa.
— Rastros… Siga os rastros. — Greta reparou a bagunça no chão, escolhendo caminhos opostos sempre que via manchas de sangue sobre a madeira suja do piso.
Ela tinha certeza que o lado que Brahms costumava seguir era limpo e mais civilizado.
Finalmente chegou ao quarto, seu coração se apertando por não encontrar aquele que procurava. Algumas coisas estavam fora do lugar; como por exemplo a Greta de tecido, que agora não passava apenas de um amontoado de pano irreconhecível no chão. A carta sobre a cômoda também não existia mais; e Brahms — o boneco — descansava remendado sobre o canto da cama. Foi um estrondo do lado de fora que fez a mulher se empertigar e finalmente seguir em direção ao barulho. Mesmo com o coração a mil, ela mirou a lanterna para fora do quarto, trocando os passos muito lentamente, seguindo pelo lado direito enquanto a outra mão buscava apoio na parede.
Ela segurou o protesto aflito em sua boca, notando — assim que virou a curva estreita —, um corpo estirado aos seus pés.
— Brahms! — Greta não parecia acreditar no que estava vendo, sua mão trêmula tateando toda a superfície do torso do homem. — Brahms, você está acordado?... Ai, meu Deus.
Seu coração apertou ao reparar que ele sentia dor, chocando-se quando iluminou o seu rosto atordoado e sentindo a falta de um pedaço de sua máscara. Instantaneamente soube o que havia acontecido, voltando a afagar o peito daquele pobre coitado que finalmente pareceu despertar.
— Oh, Brahms… o que você veio fazer aqui? — A voz de Greta saiu em lamento. — E porque estava correndo desta forma? — Ela olhou para o teto, iluminando com a lanterna.
Sem ter a resposta, seus dedos rumaram em direção ao grande pedaço de porcelana ao lado do homem — que naquele segundo se partiu em dois —, voltando a encará-lo quando pensou ter ouvido sua voz.
— E… mily.
Greta engoliu em seco, adiantando-se em fazer de sua coxa uma espécie de travesseiro para Brahms.
— Brahms. Brahms! — A babá tocou o rosto do desfalecido no chão, vendo, muito de perto, as cicatrizes profundas em seu rosto, no lado onde não era coberto mais pela máscara, grunhindo assustada quando sentiu sua mão tocar algo diferente.
Deixou a lanterna de lado e foi averiguar, arregalando os olhos quando teve certeza que era o sangue de Brahms tingindo sua mão esquerda.
— Meu Deus, você está ferido!
Greta se esforçou para erguer o torso largo de Brahms, tirando de toda sua determinação a força da qual precisava para levá-lo dali. Àquela altura ambos já estavam de pé, o corpo do homem um tanto mole, mas visivelmente tomando consciência, começando a se mover por entre aquelas paredes estreitas. Greta rangia os dentes tamanho era seu esforço. O peso do braço de Brahms sobre seus ombros a fazendo se lembrar da força colossal que aquele homem possuía; a imagem de seus dedos a impedindo de respirar na noite em que fugiu da mansão.
Ela se dedicou em encontrar uma saída, o coração palpitando forte quando ouviu uma voz baixinha ao seu lado — uma voz rouca, e nada infantil.
— G-Greta…
Com cuidado e paciência, o corpo de Brahms pousou sobre a superfície da própria cama. Ali, na iluminação do quarto da casa, Greta conseguiu ver a gravidade dos ferimentos sobre a lateral da testa, descobrindo também que os pontos que haviam na barriga dele haviam se soltado e eram os responsáveis por ter sujado seus dedos de sangue.
— Vai doer só um pouquinho — Ela já tinha em mãos um algodão molhado. —, mas estou aqui com você, Brahms.
Ele nada falou, mas seus olhos acordados não desviavam da imagem dela.
Silenciosa, Greta limpou as feridas, e as outras que encontrou depois quando tirou a blusa do homem. Seus olhos embargavam a cada pouco segundo, o nó em sua garganta se intensificando até que não houvesse mais como disfarçar.
Sem forças para fechar a ferida da barriga de Brahms, ela escondeu o rosto choroso quando abaixou a cabeça. A agulha com a linha ainda estava entre seus dedos, mas não a soltou, por mais que agora o toque do homem embalasse seu punho.
— Eu não… consigo fazer isso. — Uma lágrima percorreu sua bochecha, e ela o encarou com incerteza. — Me… desculpe. — Desabou. — Jamais deveria ter tido a ideia de… de vir para o Reino Unido.
Greta secou as lágrimas do rosto, piscando algumas vezes para que voltasse a realidade. Ela observou de perto o ferimento, encarando os olhos misteriosos de Brahms quando falou:
— Está fechado. Não acho que precise de pontos, só foi um ferimento devido o puxão de algumas linhas… — Ela ponderou. — Você fez isso sozinho?
Ele concordou com a cabeça. Parecia fraco.
— Como conseguiu?...
Greta se achou uma idiota; uma pergunta daquela não fazia sentido quando se estava de frente para um assassino. De repente recordou-se de Cole, imaginando onde poderia estar o seu corpo, e sem esperar que Brahms respondesse qualquer uma de suas perguntas, ela se levantou em meio a mais uma crise de choro.
— Eu… vou preparar alguma coisa para você. — Estava de costas para ele. Sentia-se nauseada e não queria olhá-lo nos olhos. — Não saia daqui… ou ficará de castigo.
Ela se virou para ele em um gesto impulsivo, sendo firme, acusando:
— Você se comportou mal hoje. Quase me matou de susto.
E saiu, rumando em direção à cozinha, mas demorando quando se abaixou ao lado da pia e começou a chorar.
● ● ●
Não havia se passado tanto tempo desde que Greta deixou Brahms no quarto. Esperava que ele obedecesse o seu pedido, e sentiu-se ridícula por ter feito aquilo de novo. Um de seus objetivos era fazê-lo entender que não era mais uma criança, e que ameaçá-lo com castigos e frases de desobediência eram duas coisas que tinha de sair de suas listas de atitudes. Ela terminava de grelhar um punhado generoso de omelete sobre a frigideira quando foi obrigada a desligar o fogo, pois uma batida se fez sobre a porta. Demorou mais alguns segundos para que andasse até a porta, abrindo-a com mais alívio quando ouviu a voz de Malcolm e depois sua imagem parado frente à porta — depositando em seu corpo um abraço apertado, que o deixou sem palavras.
— Você está bem? — Perguntou.
Greta apenas concordou com a cabeça, afastando-se lentamente enquanto segurava maçaneta atrás de si.
— Eu encontrei o Brahms. — Disse como se estivesse em transe. — Ele estava caído nos corredores da parede de seu quarto secreto, ferido, como se tivesse em meio uma fuga desesperada.
Malcolm mordeu o lábio inferior pensativo, tirando as mãos dos bolsos para que pudesse dar apoio à mulher.
— Olha, me desculpa. — Malcolm foi sincero. — Eu sei que te chateei de alguma forma, e eu me sinto um idiota por causa disso, Greta. Quero ser seu apoio, muito mais que apenas um ombro amigo. — Ela esboçou um pequeno sorriso, o que deu forças para ele continuar. — Eu estou nessa com você, e quero fazer algo por você, apenas por você, para que saiba que não está sozinha, que não precisa enlouquecer neste lugar sem um companheiro de verdade.
Malcolm segurou as mãos de Greta e as levou em direção ao próprio rosto, depositando um beijo demorado e doce, sendo firme nas palavras quando falou:
— Brahms… não é um companheiro para você. Entenda isso. — Seus olhos desviaram por três segundos sobre a porta atrás da mulher, que rangeu, revelando a escadaria vazia ao fundo, mas aterrorizante. — Ele quer ser. Mas não possui essa capacidade agora. Lembra-se?... Ele age como uma criança para conseguir o que quer, então mostre a ele que precisa agir como um adulto, e o faça dar as respostas que tanto procura, o induzindo a isto.
— Certo. — Ela concordou. — Já que está comigo nessa, pra valer, eu preciso que descubra algumas coisas para mim, Malcolm.
— O quê?
— Quem é Isac Heelshire. E quem foi, de verdade, Richard Martin Willians.
Os dois mantiveram-se em silêncio por alguns segundos, analisando a determinação das pupilas um do outro.
— Estamos lidando com uma coisa muito grande aqui, você tem razão, não posso confiar em qualquer um que chega, dita algo, e deixa muitos furos no enredo.
— Precisamos saber o nível de gravidade acerca de todas essas questões envolvendo os Heelshire. — Malcolm concordou. — E porque Brahms tentou fugir de alguma coisa, como você mesmo mencionou.
— Precisamos saber também com o que vamos lidar ainda. Conhecer o possível inimigo… — Ela tentou encaixar algumas peças soltas em sua memória. — Isac parece ter sido um gatilho à Brahms… eu sinto isso. E acho que deixei alguma coisa passar, quando entrei naquele quarto secreto.
Malcolm concordou, soltando por fim a mão de Greta. A porta rangendo mais uma vez sendo o motivo para que incentivasse:
— Melhor você entrar. Voltarei o mais rápido que puder e, não se esqueça, seja firme com ele. Olhando sempre em seus olhos. — Afastou-se. — Pessoas como ele se sentem sob poder quando percebe uma vítima acuada. Mostre para o quê você veio, Greta.
Ela sorriu, aliviada por Malcolm estar ali, escondendo o corpo por trás da porta finalmente — emocionada — agradecendo:
— Obrigada, Malcolm. — O silêncio. — Você é o homem doce e compreensível que eu sempre desejei...
E desapareceu, fechando a porta. O coração estava incerto, ponderando se não havia falado demais.
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