A vila estava em fervor. Pessoas iam para lá e para cá, preparando as coisas para o funeral e enterro das três garotas. A mãe delas permanecia inconsolável em sua dor, sendo visitada por todos da vila. A casa já estava lotada de comidas e pessoas entrando e saindo. Porém, o chefe não estava em lugar algum. Pediram ao padre Hongbin, que havia recém saído da casa de Taekwoon, para procurá-lo. Ele não precisou perguntar para saber onde o chefe estava.
Atravessando a mata e segurando a batina, o padre entrou na clareira onde os corpos haviam sido encontrados. E lá estava Han Sanghyuk, ajoelhado no limite das árvores e encarando a mancha vermelha na grama. Sua postura era rígida, mas lágrimas caíam de seus olhos. Ele não levantou os olhos.
- Padre... por quê? Por que a fera as levou? - Sua voz era a de um homem destruído. Seus olhos não tinham brilho, estavam opacos pela dor.
Hongbin permaneceu em silêncio. Não sabia a resposta e sabia que Sanghyuk se enfureceria se ele dissesse que fora pelo plano de Deus. Sanghyuk não acreditava Nele, apenas mantinha a igreja porque os habitantes da vila acreditavam. Hongbin, embora fosse um padre novo, também já não acreditava tanto. Principalmente, depois daquela noite, no primeiro dia de outono. Após aquilo... ele sentiu-se sujo, um ser demoníaco. Tentou até tirar a própria vida, mas Sanghyuk o impediu. Eles concordaram em nunca mais falar sobre aquilo ou fazer. Seria algo a ser esquecido. Mas Hongbin não conseguia esquecer.
Sanghyuk levantou-se devagar e espanou a neve de sua calça, secou as lágrimas como se sentisse vergonha da existência delas. Tomou um profundo suspiro de olhos fechados, então soltou o ar de uma só vez, como se pudesse expelir todo o sofrimento junto dele. Quando abriu os olhos, algo do brilho havia voltado. Ele olhou o padre. Ficou em silêncio, apenas o encarando. Ambos ficaram.
Contra a sua vontade, suas mentes lembraram-se daquela noite fria. Mesmo que estivessem distantes - Sanghyuk estava no lado contrário a Hongbin na clareira -, eles se afastaram mais um passo um do outro. Dentro de seus peitos, seus corações queimavam em vergonha, raiva, ódio de si mesmos... saudade um do outro.
- Os aldeões estão procurando por ti. Querem dar as condolências. - Hongbin enrijeceu a postura para falar, conseguindo sair do transe primeiro que Sanghyuk. Este assentiu devagar e curvou-se em respeito ao clérigo, então saiu da clareira em direção a sua casa.
Hongbin, por outro lado, foi para a igreja. Mais precisamente, para o seu quarto dentro da igreja. Seu corpo continuava a ansiar por Sanghyuk. Aquilo lhe fazia sentir nojento, um demônio. E demônios deviam ser castigados. Por isso, ele tirou a batina e a roupa que usava por baixo, expondo seu corpo nu ao ar gelado do inverno. Pegou o chicote sob a cama, ajoelhou-se no chão e fechou os olhos. Com a mão direita, segurou o terço e começou a rezar. Com a mão esquerda, fazia o chicote estalar em suas costas com força, punindo-se. Rezou o terço inteiro enquanto se chicoteava, não parou nem mesmo quando sentiu o sangue molhar seus calcanhares, escorrendo das feridas abertas nas costas. Sentia que merecia por ser o demônio que era.
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Sanghyuk recebia os pêsames de todos com um semblante vazio. Eles diziam que entendiam sua dor, mas era mentira. Ele não sentia dor. Se sentia vazio, quebrado. Sua esposa sentia dor, ele não sentia mais nada. Bem... ele sentia a urgência de abraçar Hongbin. E ficar com ele até o vazio em seu peito sumir. Ele sabia que devia fazer isso com a esposa, que era com ela que deveria estar desejando estar. E sentia-se terrível por não ser. E um demônio. Por isso, estava com ela. Era uma punição para si próprio, por cometer o pecado de amar alguém que era como si.
- Sanghyuk. Eu sinto muito pelas suas filhas.
Sanghyuk não precisou olhar para o rosto da pessoa para saber que era Jung Taekwoon, o único nobre da vila. Bastou ouvir a sua voz sussurrada e o frio na sua espinha para saber que era ele. Sanghyuk virou-se, então se curvou, aceitando as condolências. Mesmo que houvesse uma distância entre eles, era possível sentir o frio que emanava da pele do Jung. Era algo tão estranho. Como se ele estivesse morto. Porém, Sanghyuk nunca disse nada sobre. Era o nobre que cuidava da vila com o seu dinheiro, afinal, e sem pedir nada em troca. O chefe só deveria lhe agradecer.
- A besta pagará pelo que fez. - Havia promessa na voz de Taekwoon, assim como um tom que fez os pelos de Sanghyuk se arrepiarem.
Entretanto, antes que ele pudesse perguntar ao Jung o que ele quisera dizer, viu o outro dirigir-se para dar as condolências a sua mulher. Percebeu que ele era o último visitante. A vila inteira tinha passado por ali, deixado comida e seus pêsames. Sanghyuk olhou pela janela. As nuvens estavam escurecendo, então o sol estava se pondo. O funeral de suas filhas seria ao amanhecer do próximo dia. Novamente, antes que ele pudesse fazer, falar ou sentir qualquer coisa após constatar isso, um camponês abriu a porta da casa. Estava esbaforido, vermelho, parecia que tinha corrido por toda a aldeia.
- Chefe! - Sanghyuk aproximou-se dele, preocupado. Para ele, o bem-estar dos cidadãos era a sua maior prioridade. - Ele chegou! Está na cidade.
- Quem? - Sanghyuk gesticulou para a mulher pegar um copo de água. Ela o fez sem demora, alcançando para o camponês que bebeu o líquido com desespero.
- O caçador.
A palavra pareceu pesar no ar. Sanghyuk respirou fundo e assentiu, saindo sem dizer uma única palavra. Seus pés arrastavam-se na terra, como se estivessem se recusando a andar, a avançar. Parecia que sabiam que a chegada do caçador mudaria tudo. Conforme ele avançava naquela marcha lenta e sofrida, começou a sentir o torpor do vazio se dissipar do seu peito. Viu as pessoas reunidas na praça prinpal, sentiu suas mãos formigarem. Percebeu estar sem luvas no frio invernal. Lembrou que as tinha posto antes de sair de casa ao ouvir o som dos sinos, mas não lembrava de tirá-las. Começou a mover os dedos azulados numa tentativa vã de aquecê-los. Concentrou-se nisso enquanto o vazio ia embora, dando lugar à dor.
Aperta.
Solta.
Suas filhas haviam sido arrancadas de si.
Aperta.
Solta.
Seus corpos haviam sido destroçados por uma besta.
Aperta.
Solta.
Ele não havia conseguido protegê-las.
Aperta.
Solta.
Ele não havia sido capaz de cuidar delas.
Aperta.
Solta.
Ele iria vingá-las.
Ele passou pela multidão e chegou até a carruagem que lá estava, tendo sido trazida por cavalos brancos como a neve. As portas estavam fechadas. O cocheiro olhou para Sanghyuk, então desceu do seu lugar. Este não parecia nem um pouco interessado em desviar o olhar da carruagem, que era negra como uma noite sem luar, mas reluzia como as penas de um corvo. Que material era aquele? Todos os habitantes da vila encaravam em assombro, surpresa e curiosidade. O transe e o cochichar foi interrompido apenas pela abertura da porta pelo cocheiro.
Um homem alto e moreno saiu. Seus passos não fizeram som na madeira dos degraus. Sua respiração também não fazia nuvens quando ele olhou os aldeões. Seu olhar era felino, frio e incisivo. Quem ficou sob ele, encolheu-se de vergonha e desconforto. Sentiam como se ele soubesse até os segredos mais profundos da sua alma. Sanghyuk deu um passo à frente, o olhar dele se chocou com o do outro homem. Este, por sua vez, lhe sorriu e se curvou.
- Prazer em conhecê-lo, Han Sanghyuk. Sou Cha Hakyeon. Onde está o padre?
Sanghyuk olhou em volta. Realmente, o padre não aparecera. Em vez disso, Taekwoon aproximava-se. Ele curvou-se respeitosamente a Hakyeon. Voltou a ficar ereto como se uma espada lhe atravessasse a espinha. Seu maxilar estava retesado como se sentisse dor.
- Ele está ocupado com o funeral. Mandou-me em seu lugar. Prazer, sou Jung Taekwoon.
O visitante olhou Taekwoon com um brilho estranho no olhar, inclinou a cabeça para o lado. Eles encararam-se por um tempo, então Hakyeon assentiu como se Taekwoon houvesse dito algo.
- Pois bem. Levem-me ao local onde encontraram as crianças. Não temos tempo a perder. Não somos capazes de saber se a besta está saciada.
Ambos, Sanghyuk e Taekwoon, concordaram.
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Enquanto andava, passei a me recordar do estado em que havia encontrado o padre ao ir até o seu quarto para avisar da chegada de Hakyeon. Eu havia sentido o cheiro de sangue ao me aproximar da igreja e era familiar. Apenas o cheiro, não o gosto, devo deixar claro. Não provava o sangue humano fazia séculos.
Distraído ao lembrar, deixei os dois andarem na minha frente. Estava quieto e pensativo, tentando justificar o que levara o padre Hongbin a fazer tamanha crueldade consigo mesmo. Suas costas não estavam apenas machucadas, estavam quase dilaceradas. Parecia que sua pele caíria e se fundiria àquele montante de sangue que banhava os seus pés.
- Padre?? O que estava fazendo?? - Quando entrei no quarto, eu não sabia exatamente se o meu tom de alarme era fruto da preocupação com Hongbin ou pelo cheiro inebriante de seu sangue estar me entupindo os sentidos e me colocando para arder em chamas de desejo.
- Expurgando o pecado. - A voz de Hongbin estava repleta de dor e sua face, riscada por lágrimas. Olhei o estado de suas costas.
- O caçador chegou. - Ele tentou levantar ao ouvir, mas não conseguiu. Segurei-o antes que caísse no chão. - Mas o senhor não irá.
- Eu preciso. Sou o clérigo da vila, o representante da igreja. - Agora, eu o segurava firmemente ajoelhado.
- Não consegue nem andar desse jeito. Eu irei no seu lugar. Você ficará aqui, descansando até se recuperar o suficiente. Chamarei alguém para cuidar do senhor. - Ele esboçou um protesto, mas concordou.
Coloquei-o na cama com cuidado, chamei uma noviça da igreja. Em princípio, ela se assustou com o estado do padre e do quarto ensanguentado, porém se acalmou quando o padre lhe assegurou que tudo estava bem agora. Eu saí do quarto quando ela começou a limpar o sangue.
- Taekwoon? - A voz de Sanghyuk chamou-me de volta para a realidade. Pisquei e percebi que havíamos chegado à clareira onde os corpos das meninas haviam sido encontrados. Vi que Hakyeon estava olhando para mim.
- Sanghyuk disse que foi informado que foi você que encontrou os corpos. Como eles estavam?
Respondi a pergunta de Hakyeon com um aceno afirmativo de cabeça, então engoli. Aproximei-me da mancha de sangue na grama.
- Aqui. As três, lado a lado. A mais velha estava torcida na grama, então acho que ela tentou lutar contra o animal para proteger as irmãs...
- É claro que ela faria isso. Yangmi jamais deixaria as outras se machucarem... - Sanghyuk estava parado na beirada da clareira, olhando a mancha de sangue.
Seus olhos estavam tristes. Enquanto eu o olhava, via um homem muito forte porque, enquanto qualquer outra pessoa teria ficado destruída ao saber que suas filhas haviam morrido, ele havia se erguido. Era possível ver, em meio ao luto e pesar, a chama da luta em seu olhar. Ele não havia desistido.
- E o que mais? - Hakyeon parecia impaciente, então parei de observar Sanghyuk e voltei a descrever o que havia visto ao encontrar as meninas.
- Bem... As outras duas meninas... A menor estava caída sob o corpo da outra. Novamente, parecia que elas haviam tentado se proteger da fera. - Sanghyuk ficou em silêncio, mas o vi engolir as lágrimas.
Hakyeon assentiu em silêncio e andou ao redor da mancha, analisando-a. Passou perto de mim e meu corpo ardeu em chamas ao sentir seu cheiro. Era um cheiro que eu jamais havia sentido. Era ardente e instigante, as chamas que tomavam o meu corpo não eram apenas a sede, era algo mais, algo que eu não sentia há anos. Desejo. Então, como se Hakyeon soubesse do que se passava em minha mente, ele se virou para mim e sorriu.
- Há uma taverna por aqui? Eu penso melhor com bebida. - Falou.
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