Quando pequena, Hani costumava ser muito otimista com os acontecimentos ao seu redor. Não que ela acreditasse que não existisse maus momentos, mas ela gostava de ser aquele tipo de pessoa que sempre via o copo meio cheio. As coisas não deram certo? Tudo bem, elas vão melhorar! Crianças têm dessas coisas. Porém, quando a gente cresce, a gente descobre que nada está tão ruim que não possa piorar. Acreditem, a jovem coreana sentiu isso na própria pele.
Heeyeon é uma fashionista. Filha única de grandes empresários sul-coreanos, a garota cresceu rodeada das luzes da cidade do glamour da grande Seul. Cursou moda e cresceu na carreira, fundando a E.X.I.D Clothing. Com apenas vinte e quatro anos, a garota já estava entre o top 5 de maiores influencers de toda a Ásia, sendo convidada, inclusive, para prestigiar e apresentar suas coleções em grandes eventos internacionais. E é a partir deste ponto que a nossa história começa.
— Não se preocupe, Luiza. Só estamos enfrentando uma chuva leve, em breve estarei aí. — Acalmou a amiga do outro lado da linha, com seu português quase perfeito. Tinha estudado muito para fazer bonito com seus amigos brasileiros na São Paulo Fashion Week, o maior evento de moda do Brasil. Famosos do país inteiro e até mesmo do exterior eram convidados a prestigiar a semana de moda, e com toda sua influência no seu país de origem, a jovem Ahn não poderia ficar fora dessa. Tudo estava indo bem, até o momento que seu jatinho particular teve de fazer um pouso forçado há quilômetros de distância de São Paulo. O motor, apesar de ser um dos mais potentes da fábrica, acabou apresentando graves problemas que poderiam pôr a vida de todos em risco se levantasse voo. E por ser uma peça não encontrada tão fácil no país onde estavam, a coreana não viu outra opção sem ser alugar um carro para dirigir até a grande cidade.
— É só uma chuvinha de leve… — Sussurrou, assustada com os relâmpagos e trovões. As gotas de chuva batiam com violência no vidro do carro, impossibilitando a visão da garota coreana que seguia as instruções do GPS. — Nada vai acontecer, você está indo bem, você… Ah! — Gritou ao ouvir um estouro vindo da parte da frente do carro. Com medo de causar um acidente de trânsito, a ruiva o jogou para o acostamento, no momento imediato que o veículo parou de funcionar sozinho. — Não, não, não, não pode ser real! — Exclamou, girando a chave. Nenhum sinal de vida do carro. — Mas que saco! — Socou o volante. Ao pegar seu celular, percebeu que estava definitivamente perdida. Sequer sinal de telefone tinha. Foi quando ela começou a chorar. O que tinha feito para merecer aquilo?
Secou suas lágrimas rapidamente ao ouvir batidas na janela do carro. Quem poderia estar no meio daquela chuva pedindo que ela abrisse o vidro? Com medo, puxou o primeiro objeto pontiagudo que encontrou em sua bolsa: Um alicate para cutículas. Não era uma arma de auto defesa muito eficaz, mas pelo menos poderia machucar a pessoa e sair correndo. Apontando o pequeno objeto, a menina abaixou a janela até a altura dos olhos, se deparando com um rapaz segurando um guarda-chuva. Ficou o encarando por alguns segundos, até que o mesmo abriu sua boca para falar.
— Hum… ‘Cê tá bem, moça? Eu vi de longe seu carro soltando fumaça e ‘ocê parou o carro aqui. Também ouvi seu choro. É meio perigoso parar aqui, tá bem perto da porteira. Sai muito trator. Não quer tocar seu carro um pouco pra frente? — Perguntou. Hani não tinha respostas. O rapaz tinha um sotaque engraçado e parecia constrangido após a asiática ficar por tanto tempo o encarando inexpressiva. — Intão… ‘Cê fala português, pelo menos?
— Falo. Mais ou menos, na verdade. Sou coreana. Desculpe, é que você falou muito rápido e eu não entendi muito bem.
— Ah, tendeu! — Ele sorriu. Pelas roupas sujas de barro, Hani deduziu que o rapaz estava trabalhando na terra antes de começar a chover. — Meu nome é Francisco, mas minha parentada me chama de Chico. — Estendeu a mão, sorridente, num cumprimento. — Eu nunca vi uma estrangeira por essas bandas!
— Prazer, sou Heeyeon, mas costumam me chamar de Hani. — Sorriu, mas franziu o cenho. — Bandas? Aqui é um tipo de escola de música?
Chico gargalhou.
— Desculpa, é jeito de falar. É que a gente não vê muita gente internacional pra esse lado do interior de São Paulo. Geralmente eles vão pra cidade grande mesmo.
— Sim, a cidade grande, São Paulo! — Exclamou, puxando o moço pelos ombros, o aproximando dramaticamente da janela e o chacoalhando. — Eu queria ir pra lá! Me diga, estou longe dela? Preciso chegar dentro de uma hora, no máximo. Tenho um compromisso muito importante.
Chico estava assustado com o surto repentino da garota estrangeira, mas tentou acalmá-la. Coçou levemente o couro cabeludo, pensando numa forma de contar pra ela a má notícia sem a abalar ainda mais. Ela já parecia estar bem chateada, a maquiagem estava toda derretida por causa do choro.
— Óia, moça.. Não querendo ser chato não, mas do jeito que as coisas ‘tá, ‘cê vai demorar no mínimo umas seis horas pra chegar onde ‘cê quer. Isso se você der jeito no seu carro, sabe o que aconteceu com ele?
— Ai meu Deus… Eu estou ferrada — Pronunciou em coreano, fazendo o moço franzir o cenho. — Desculpe, eu não sei expressar minha tristeza em português. Não faço ideia do motivo dele ter parado. Era para eu estar de jatinho, mas precisamos fazer um pouso forçado, então aluguei esse veículo para dirigir até São Paulo. Eu não fazia ideia de que estava longe, tudo parece tão perto pelo GPS. — Continuou, inconsolável. — Você se importaria em checar a frente do meu carro para eu saber o que houve? Eu ficaria imensamente grata.
— Mas é claro! Só que precisamos sair daqui, tá meio que chovendo, sabe.. — Riu sem graça, fazendo Hani corar. Ela era tão estúpida, sequer tinha se lembrado de que o pobre moço estava há minutos conversando com ela no meio daquela tempestade.
— Ai, me desculpe. Eu me esqueci completamente desse detalhe.
— Di boa, moça. Seu carro não tá ligando, né? — Indagou, vendo-a negar com a cabeça. — Então eu vou chamar meus irmãos pra empurrar até lá dentro. Você pode sair do carro pra isso? Pode pegar meu guarda-chuva. Ele é velhinho mas protege desse toró. — Riu.
— Sim, é claro, muito obrigada. — Abriu a porta do veículo e pôs seus pés para fora, apenas não percebendo algo: Ela estava de salto alto e, consequentemente, seus sapatos acabaram se afundando no barro. — Meu deus, é muito azar.
— Ixi, pera aí, já volto. — O jovem Chico se afastou um pouco do carro, ficando perto do portão. — Ô Mariazinha, vem aqui fora e traz uma galocha sua pra moça. Vê se não faz feiura, ela é de outro país, hein? — Ele gritou, assustando Hani.
— Uia, uma gringa? Que legal! — A voz fina feminina respondeu, desaparecendo por um momento e logo se aproximando novamente. Uma adolescente trajando uma capa de chuva amarela — que provavelmente era a tal Mariazinha — surgiu na frente da asiática, lhe estendendo um par de galochas azuis. Hani agradeceu com um gesto na cabeça e retirou seus sapatos caros e calçou as botas, pegando o guarda chuva que Chico lhe oferecia e acompanhando a pequena garota para dentro, enquanto outros dois homens mais velhos ajudavam o seu salvador a empurrar o carro até um barracão próximo.
— Mãe, o Chico mandou eu trazer a moça aqui pra dentro de casa. — A jovem Maria gritou. Hani riu sozinha ao perceber que aquela família tinha o hábito de se comunicar aos berros. Era divertido. Ao longe, a ruiva escutou uma outra voz feminina lhe responder, mas não conseguiu entender ao certo o que ela disse.
Francisco e sua família moravam num pequeno sítio às beiras de uma estrada que ligava duas cidades pequenas do interior. A casa era antiga — as paredes tinham manchas de infiltrações e a pintura estava se descascando, mostrando inclusive alguns riscos por causa das rachaduras. Na área, que era coberta por telhas velhas, algumas plantas e cadeiras de plástico branco eram usadas como decoração, além de uma pequena mesa com cartas de baralho e garrafas de cerveja brasileira sobre elas — provavelmente eles estavam tendo um momento de lazer enquanto a chuva molhava a terra. Dois cachorros molhados e sujos de terra vieram correndo receber a garotinha, pulando em Hani também no meio da animação. As marcas das patinhas de um deles ficaram marcadas na sua calça, mas a asiática apenas sorriu e acariciou a cabeça do animal.
— Disculpa pela sua calça. O Pitoco gosta de fazer farra com estranho. — Maria disse, arrancando sua capa de chuva. Os cabelos da garota estavam presos num rabo de cavalo, e a mesma usava um vestido floral bastante leve e delicado.
— Sem problemas. Sou muito grata por você e seus irmãos estarem me ajudando. — Sorriu, sendo retribuída.
— A gente gosta de ajudar os outros. O pai diz que faz bem pro coração.
— Com certeza faz.
Maria abriu a porta e um delicioso cheiro de bolo recém assado invadiu a narina de ambas as garotas. Foi convidada a entrar e se impressionou — apesar de morarem num sítio, onde é tudo cercado de terra, a residência era impecavelmente limpa, com um cheiro gostoso de desinfetante e comida de mãe. A sala era pequena, continha apenas um sofá, uma poltrona, e uma televisão de tubo, onde uma criança de aproximadamente dois anos assistia um desenho infantil enquanto tomava leite com achocolatado em sua mamadeira. A pequena garotinha ficou encarando Hani, que era uma completa desconhecida. Removeu o copinho da boca e virou para a irmã mais velha. — Quem é, Malia?
— Mimi, eu falei pro’cê não pôr o pé no sofá na frente de visita! — Pôs as mãos na cintura — Essa moça é lá dos países de fora, o nome dela é… Qual é o seu nome?
— Pode me chamar de Hani. — Sorriu. Adorava crianças.
— Hani — A pequena Mimi repetiu baixinho, antes de voltar a tomar seu leite e prestar atenção no desenho. Logo a anfitriã da casa surgiu, com um guardanapo em mãos e um avental em seu corpo. A mulher, que aparentava ter quarenta e cinco anos no máximo, se surpreendeu com a presença na sala. Hani era completamente diferente do que já tinha visto em sua casa: tinha a aparência de modelo. Só suas roupas deviam custar muito mais do que a sua casa valia.
— Nossa, não sabia que você era tão chique, menina! — Sorriu. — Sou a Rosa e fiz bolo, você quer?
— O bolo da mamãe são os melhores, você vai gostar muito.
Apesar do cheiro ser tentador e de todos naquela casa serem muito gentis consigo, Heeyeon estava preocupada. Vinte minutos já tinham se passado e nenhum sinal dos rapazes para lhe darem boas notícias. Precisava partir ou toda sua experiência no maior evento de moda da América Latina iria por água abaixo — literalmente. — Eu adoraria, mas estou apenas de passagem, preciso ir embora…
— Olha moça, precisar você pode precisar… Mas acho que não vai conseguir não. — Francisco ressurgiu, sujo de graxa e a roupa molhada por causa da chuva. Com ele, em suas mãos, as grandes malas que Heeyeon tinha trazido consigo. — Uma peça do seu carro quebrou e o Carlinhos vai ter que ir até a cidade pra buscar. Numa hora dessas já fechou tudo, intão só amanhã de tarde que ele vai conseguir pegar a caminhonete pra ir comprar e arrumar seu carro.
— Amanhã de tarde?! — Hani hiperventilou, precisando se sentar bruscamente no sofá. Deus, aquilo só podia ser um pesadelo. Tudo estava dando errado e ela nem conseguiria avisar seus amigos, porque seu celular não pegava naquela região. Assustando todos daquela sala, Hani começou a soluçar, debulhando-se em lágrimas grossas que derretiam ainda mais seu rímel. — Eu precisava estar em São Paulo hoje… Eu estou tendo uma oportunidade incrível na minha vida e estou perdendo tudo por causa do meu azar. — Lamentou — Que inferno! — A garota praguejou em sua língua nativa, arrancando olhares das três pessoas ali.
— O que que ela disse? Foi xingamento? — A senhora Rosa sussurrou para a filha mais nova, que deu de ombros — Bom, acho que então ‘ocê vai aceitar um pedaço do meu bolo de fubá. E vou pegar uma aguinha com açúcar também.
— E eu uns lencinhos. — Assim como sua mãe, Maria saiu para outro lado da casa com Mimi a seguindo, deixando Francisco e Hani juntos naquela pequena sala. O rapaz se sentou do lado da garota, que enxugava suas lágrimas com as costas da mão silenciosamente.
— Ó… Eu sei que aqui num é nenhuma mansão… Mas a gente vai fazer de tudo pra você passar a noite bem, viu? — A consolou, com uma de suas mãos no ombro da asiática. — Foi mal perguntar, mas o que que cê ia fazer lá em São Paulo?
— Tudo bem. — Sorriu triste, passando as mãos na própria calça. — Eu sou estilista, e fui convidada a prestigiar o maior evento de moda do país. É uma semana inteira, mas eu só vou conseguir ficar dois dias aqui por causa do meu trabalho na Coreia. Ou melhor, eu ia, não é? Não vai mais dar tempo de presenciar nada do evento. Eu perdi a chance da minha vida de aprender vendo os designs maravilhosos que a gente encontra lá. Duvido que vão me chamar novamente.
O moreno arqueou as duas sobrancelhas, pensativo. Não era muito bom com conselhos, mas se tinha uma coisa que aprendeu com seu velho pai, era que ele nunca deveria deixar alguém triste perto de si. — Tendeu. — Comentou. — Ó, eu num entendo muito bem dessas coisas porque sou da roça. Pra mim esse negócio de Fêshio Wik era algum tipo de música — Continuou, arrancando risadas da jovem coreana. Hani era extremamente bonita, como se tivesse saído direto de uma novela da Globo ou capa de revista, e Chico não conseguia parar de encará-la por isso. — Mas si tem uma coisa que eu sei, é que você deve ser uma baita estilista! E se esse ano num deu certo do ‘cê ir, é porque num era pra acontecer. Podi ter certeza que ano que vem 'ocê vai estar na lista vip do evento. Anota minhas palavras aí! — Sorriu, por fim. Hani não estava mais tão confiante quanto a isso, mas ainda assim retribuiu o sorriso. Chico era um rapaz de coração enorme.
— Obrigada, Chico. De verdade. — Beijou sua bochecha, fazendo o rapaz querer se esconder entre as almofadas do sofá. — Acho que vou tomar um banho. Pode me dizer onde posso colocar minhas malas?
O rapaz saiu do transe imediatamente ao ouvir a coreana falar consigo, levantando rapidamente do sofá e pegando as malas pesadas da mulher, num ato de cavalheirismo. — Sim, claro! Ocê vai dormir no quarto com a Mariazinha, que é onde eu durmo… — Revelou, entrando na primeira porta do corredor. Assim como a casa em si, o quarto era pequeno. Continha apenas duas camas de solteiro em cada canto e uma cômoda, onde tinha alguns perfumes e outras bugigangas em cima da superfície. Hani pensou em protestar quando Francisco cedeu a sua própria cama pra ela, mas ele a impediu. — Num se preocupa comigo, a gente tem colchão no quarto da bagunça da casa porque nossos primos vêm dormir aqui às vezes. Vou puxar um e dormir na sala. O bom é que eu posso ficar assistindo filme até tarde. — Riu. Colocou a mala de mão sobre a cama e a de rodinhas no chão, num espaço disponível. — O banheiro é a próxima porta, tem shampoo e sabonete no armarinho. Vou pegar uma toalha limpa..
— Não precisa, Chico, eu trouxe tudo comigo. — Sorriu, mostrando a pequena malinha que estava dentro da mala maior. Todos seus objetos de higiene pessoal estavam lá, Hani sempre foi muito precavida quando o assunto era sua limpeza. — Obrigada pela gentileza.
— Certo.. — Sorriu, a admirando por alguns segundos — Então eu vou lá fora com o Carlinhos e o Zezé. Inté. — Despediu-se, se retirando do quarto. Heeyeon sentou-se sobre a cama e sorriu vendo a foto da família em cima daquela cômoda. De repente, ela se sentiu vazia.
Hani cresceu rodeada de babás, porque seus pais sempre estiveram muito ocupados com o trabalho para darem a atenção que ela necessitava. Não tinha diálogo gritado, não tinha cheirinho de bolo e café no meio tarde. Jantares em salas diferentes, comida de microondas; as suas conversas com seus pais se resumiam a questionamentos escolares. Hani nunca teve a sensação gostosa de ter uma família onde poderia se apoiar, que poderia contar nos bons e maus momentos. Era apenas ela e aquela imensidão de sua casa.
Era como se tivesse tudo, mas ainda assim não tinha nada. Ela invejava aquela família.
Na parte da noite, já não existia mais chuva. O céu estava repleto de estrelas, ocasião perfeita para uma celebração noturna. De churrasqueira e fogueira acesa, Hani teve a honra de prestigiar um momento singelo e puro de uma família feliz, que mesmo com tão pouco ainda assim conseguiam aproveitar muito mais do que ela. Heeyeon provou do churrasco brasileiro e ficou maravilhada com a culinária da senhora Rosa, enquanto ouvia Carlos, o irmão mais velho, tocar uma música que eles costumam chamar de “moda de viola”. Hani não sabia o que aquilo significava, mas ficou impressionada com as habilidades do homem ao tocar aquela espécie de violão com mais cordas. Foi quando o pai da família puxou a senhora para dançar, e logo todos estavam se divertindo em volta da fogueira como grandes amigos. Até mesmo a Ahn resolveu se arriscar naquele estilo de dança, acompanhada de Chico, que foi quem teve a coragem de a chamar. Ela nunca tinha se divertido tanto.
Talvez Heeyeon estivesse aprendendo muito mais com aquela família do que num desfile de moda.
— Hoje foi muito divertido, Maria! — A asiática exclamou, sorridente, sentada sobre a cama de Chico. Trajava uma camisola emprestada da garota de dezessete anos, já que achou seu pijama inapropriado para aquela casa. Hani estranhou ao perceber que a adolescente não possuía um sorriso em seu rosto.
— Pena que logo não vai ter mais nada disso. — Suspirou, sentando-se em sua cama. — O pai vai perder o sítio. Deram dez dias pra ele arrumar dinheiro, ou vão tomar as nossas terras. Coisa de dívida, eu não sei muito bem o que é que o pai deve porque eles evitam discutir essas coisas perto de mim e da Mimi, mas eu não sou burra. Eu sei que tem coisa errada aí. — Abraçou as próprias pernas, encolhendo-se sobre o colchão. Pequenas lágrimas brotavam de seus olhos. — Eu sei que aqui num é grande coisa, mas… É tudo que a gente tem.
— Ah, Maria… — Seu coração se despedaçou vendo a jovem garota chorar. Mudou de uma cama para outra apenas para se sentar ao lado da pequena, não evitando de abraçá-la enquanto a mesma deixava as lágrimas caiam. — Eu sinto muito. De verdade. Gostaria de poder ajudá-los de alguma forma.
— Tá tudo bem, ‘cê não tem a obrigação de ajudar a gente, é apenas uma hóspede. — Enxugou as lágrimas, olhando para a mais velha. — Vou sentir saudades de você quando for embora. A gente só se conheceu hoje, mas eu gostei de ter você aqui. Eu só tenho irmãos homens e a Mimi é muito jovem pra me entender. Claro, eu tenho a mãe, mas não é a mesma coisa. — Voltou a abraçar a ruiva, que acariciou seus longos e belos cabelos afro, agora soltos. Maria tinha uma beleza exorbitante, era uma pena que isso não fosse tão valorizado naquele lugar. — Você é estilista mesmo?
— Sou. — Sorriu, tendo uma brilhante ideia. — E você daria uma ótima modelo das minhas roupas, sabia? — A morena a encarou, sem entender.
— Eu? — Riu
— É claro! Você é maravilhosa, Maria. Eu daria tudo para ter um rosto tão harmônico como o seu. E o seu cabelo? É tão bonito e macio. Por que vive com ele sempre preso? Você deveria mostrar mais seus cachos.
A menina desviou o olhar. — É que… O pessoal da minha escola não gosta muito dele. Eles caçoam de mim. E então eu prendo porque tenho vergonha.
— Você não deveria se importar com o que as pessoas dizem. Você é uma menina linda da forma que é. Linda por dentro e por fora, inclusive. Não deixem que pessoas de mente fechada ditem a forma que você deve se vestir, usar seu cabelo ou o que fazer. Quem faz o seu caminho é apenas você mesma. — Sorriu — E quando eu fizer minha próxima coleção de roupas, você está convidada a ser o rosto da minha campanha. Gostaria de visitar outro país?
— ‘Cê tá falando sério mesmo ou tá brincando comigo? — Indagou, incrédula. A outra assentiu, arrancando um sorriso de orelha à orelha da pequena adolescente. — Meu Deus, eu quero sim! Obrigada, obrigada mesmo.
E Hani sorriu. Sorriu com a alegria contagiante da adolescente, que foi dormir mais segura e confiante com a própria aparência. Sorriu ouvindo as conversas na sala daquela família tão grande, mas com um coração ainda maior a ponto de abrigar uma completa desconhecida abaixo do seu teto. Sorriu se lembrando das danças desengonçadas e dos sorrisos que trocou com o rapaz enquanto todos festejavam. Hani sorria porque, pela primeira vez na vida, conseguiu se sentir verdadeiramente acolhida num lugar onde ela queria poder chamar de casa.
Seu carro ficou pronto um pouco antes do horário de almoço, porém Hani acordou muito antes do esperado para fazer uma surpresa para a família, que ainda dormia enquanto o galo cantava. Foi indo tomar água na cozinha que a garota encontrou o número de uma conta bancária colado na porta da geladeira, tendo a ideia perfeita para retribuir a gentileza que lhe fizeram mais cedo. Depois, saiu para uma corrida na beira da estrada.
Enquanto a garota se exercitava seu celular apitou, indicando a chegada de diversas mensagens. Finalmente tinha descoberto um lugar em que seu celular conseguiria ter sinal — e aquilo era perfeito para o seu plano. Respondeu as mensagens dos seus amigos dizendo que estava bem, mas que não compareceria mais aos desfiles. Em seguida, abriu o aplicativo do banco, transferindo uma boa quantia de dinheiro àquela conta da geladeira, que era do pai da família. Eles tinham lhe ajudado muito, era hora de ajudá-los também. Prestes a ir embora, Hani sentiu vontade de ficar mais um pouco apenas para ver o brilho nos olhos daquela família quando descobrissem do dinheiro.
— Eu não quero que você vá embora. — Maria lamentou, abraçando o corpo da ruiva. Hani sorriu ao perceber que os cabelos dela agora estavam soltos, mostrando toda a beleza natural que carregava. — Promete que vai voltar?
— Eu prometo. Jamais esqueceria da minha modelo. — Sorriu. — Não se esqueça do que eu lhe disse.
Maria assentiu. Não esqueceria. Ninguém daquela casa esqueceria da presença da garota estrangeira naquela casa. Principalmente Chico. Mas era recíproco — Heeyeon também não esqueceria dele.
— Então… ‘Cê já tá indo, né.. — Disse, se aproximando da garota.
— Estou… — Ao longe, ouviram burburinhos e risadas vindas das duas irmãs. Até a caçula estava cochichando deles!
— Dá pra vocês saírem daqui? — O moreno pediu, arrancando risada de sua família, vendo-os sair cada um para um lado. Ao longe, os dois conseguiam escutar a adolescente cantarolando algo como “é o amor..”. — Eles me deixam muito sem graça. — Escondeu o rosto com as mãos, logo voltando a encarar a bela moça à sua frente. — Então, eu quero que ‘ocê saiba que eu gostei muito de te ter aqui na minha casa. Eu sei que é meio longe, você é da Coreia, né? Nossa.. — Riu sem graça — Mas se você quiser voltar um dia pra gente dar uma voltinha de caminhonete e tomar um caldo de cana, pode vir e.. Nossa, eu tô sendo muito brega. — Coçou a nuca, constrangido. — Enfim, eu tô triste porque eu gostei do ‘cê de verdade e agora talvez a gente nunca mais se veja, então quero que você saiba que é a mulher mais bonita que eu já vi na minha vida. Falei demais já, tô sendo um jeca, então tchau. Ô Zezé, liga o trator que eu tô… — Apesar de tentar se livrar daquela situação vergonhosa, Chico não conseguiu sair dali. Não depois da asiática lhe puxar pelo braço e depositar um leve selar nos seus lábios, fazendo seus olhos escuros se arregalarem e provocando gritos de dentro de casa, onde Maria e sua mãe observavam o casal à distância.
— Irra, tá vendo, mãe? Eu disse que tinha pintado um clima com esses dois! Pega a câmera digital, vamo tirar foto disso!
Hani sorriu após se afastar, com as bochechas sutilmente coradas. — Tínhamos torcida e tudo. — Riu, envergonhada. — Bem, eu preciso ir. Meu voo é ainda hoje e não posso me atrasar de novo. — O abraçou, encostando a cabeça no seu peito, já que era um tanto mais baixa que o rapaz. — Obrigada por tudo.
— Eu é que agradeço. Volta, tá bom?
— Pode ter certeza que eu vou.
Afastou-se, acenando para a família ao longe, antes de entrar em seu carro. Sentiu alívio por ele estar ligando novamente, mas sentia-se triste em ter que partir. Encarou o rapaz pela última vez pelo vidro do carro, antes de dar partida no motor. Ao longe, conseguiu enxergar pelo retrovisor o exato momento que Zezé mostrava um extrato do banco para a família, comemorando o dinheiro que havia sido depositado misteriosamente por um doador anônimo. Eles ficariam juntos, no lugar onde era para ficarem.
Dez meses depois, Hani lançou sua quarta coleção de roupas inspiradas na vida simples do campo. Em entrevista, a grande estilista revelou que suas inspirações foram num povo muito especial que acabou conhecendo enquanto estava no Brasil. Foi uma das coleções de roupas que mais venderam, entretanto, nenhum dinheiro do mundo podia preencher aquele espacinho no seu coração que tinha ficado para trás. Era doloroso saber que estavam tão longe de onde deveria estar.
E foi por causa dessa distância que Chico mal conseguiu acreditar quando Mariazinha chegou correndo e gritando, avisando que tinha alguém muito especial querendo o ver. Com o dinheiro depositado misteriosamente na conta do seu pai, a família enfim conseguiu pagar todas as dívidas e ainda puderam investir em melhorias no sítio. Seus olhos não conseguiram acreditar quando viram a coreana, agora de cabelos escuros, bem a sua frente.
— Você voltou mesmo. — Sorriu, correndo para encontrá-la, onde finalmente pode sentir seus lábios no dela mais uma vez.
— Eu sempre cumpro com o que prometo.
E realmente cumpriu. Acompanhada de seu irmão e de sua agora cunhada, Maria se tornou a primeira modelo internacional a posar para uma grife coreana. Ao voltar ao Brasil, a E.X.I.D Clothing não era mais a única marca interessada em ter o rostinho da adolescente — agora com dezoito anos — estampado em seus outdoors e propagandas. Foi convidada a desfilar na São Paulo Fashion Week meses depois, onde Hani e seu novo namorado estavam na primeira fila para prestigiá-la em tão grande evento, o qual Maria arrasou como uma modelo profissional.
Com os negócios em alta, Hani decidiu aumentar ainda mais o campo profissional de sua marca, abrindo filiais no mundo inteiro — inclusive em São Paulo, onde o casal agora morava em escolha da própria coreana, que acabou se apaixonando pelo país a cada visita que fazia. Além disso, expandiu o nome E.X.I.D tornando-o também uma agência de modelos, onde qualquer pessoa com problemas de aceitação teria uma chance de brilhar.
Seus pais não se conformaram com a decisão da filha e cortaram qualquer tipo de contato com a mesma quando esta revelou que estava se mudando para o Brasil, pondo um fim naquela falsa relação de pais e filha que mantinham. Entretanto, Hani não estava preocupada. Foi naquele dia chuvoso que descobriu que sua verdadeira família é onde seu coração está. E da melhor forma possível, Heeyeon tinha encontrado a sua naquele pequeno sítio no interior de São Paulo.
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