Arco II: Chunin!
Romaria,
Capítulo 5
* * *
Sakura estava ansiosa.
Fazia anos que ela não sentia algo do tipo. O nervosismo de uma primeira missão, é claro. Ela havia se acostumado ao padrão de trabalho e os momentos de palpitação fora do comum se tornaram designados apenas ao combate. Ela também repetia a si mesma que isso nada mais era do que cair no costume, apesar dos ninjas nunca verdadeiramente o poderem fazer.
Agora, contudo, era diferente. A sensação estava sendo extremamente parecida com sua primeira missão com o time Sete, e às vezes ela se perdia entre a nostalgia e a verdadeira ansiedade de finalmente pôr os pés fora da vila depois de sete anos inteiros.
"É uma missão curta," disse Minato-sensei dias atrás. "O tempo estimado é de uma semana."
"Uma semana é bastante tempo pra mim." Obito resmungou baixinho e ela foi rápida em lhe dar uma cotovelada antes que o sensei continuasse.
"Uma família de ferreiros de Konoha mantém parentesco com a Vila do Carvão, o pedido foi classificado como rank C."
"Pensei que pedidos rank C não demandassem tanto tempo, sensei."
"E você está certa, Sakura, mas a vila em questão pertence ao País do Relâmpago, que fica a, no mínimo, três dias de viagem, além de uma passagem de barco. O tempo de deslocamento torna a viagem longa e é justamente este o ponto que quero discutir com vocês."
Pelo canto dos olhos, Sakura pôde ver Obito ajeitar a coluna. Tudo o que passava pela cabeça dela a partir de então não tinha a ver consigo, mas com ele.
"Normalmente as primeiras missões dadas a equipes novatas não são tão longas quanto uma semana, e com certeza não tão afastadas da capital do Fogo." Ele cruzou os braços e então continuou. "Mas apenas para contextualizá-los, a grande massa de pedidos de missão que a sede atualmente vêm recebendo é focada em escoltas. A Segunda Guerra já chegou ao fim há meses, mas os cidadãos ainda vivem na expectativa de futuros ataques."
Sakura pensou por um momento. Era estranhamente diferente ouvir da boca de outra pessoa algo a que ela chegou a conclusão por reflexões próprias. A guerra de fato havia acabado, mas a sombra do medo ainda pairava por todas as terras.
"Isso quer dizer" comentou Kakashi. "que nossa missão não é uma escolta?"
"Ela se parece, mas não é. A família de ferreiros que comentei antes pede que nós levemos um pergaminho importante aos parentes do País do Relâmpago, mas o primogênito irá conosco e por lá ficará." Minato puxou um envelope pardo de dentro da mochila e estendeu-o aos três. Sakura imediatamente reconheceu-o como o fichário da missão, no topo a foto do tal herdeiro presa a um grampo. "A missão é levar e entregar o pergaminho em segurança. O garoto nos acompanhará, mas isso não quer dizer que não o devamos proteger."
Sakura releu as linhas uma vez mais, Peditório Oficial para Séquito, e não deixou de pensar se seria realmente certo participar desta missão.
Ela olhou para si mesma, para Kakashi e para Obito. Ela não se preocupava consigo e sabia que deveria fazer o mesmo com Kakashi, mas o problema estava em Obito. Sakura ainda mantinha o flash de tempos atrás na cabeça, onde o garoto estava tão paralisado de medo que sequer conseguia balbuciar alguma coisa. Anos haviam passado, mas ainda continuava a pensar que ele era novo demais, imaturo demais, que não estava pronto para ser ninja. Não por ser uma criança, muito menos por sua incapacidade, mas por Obito ser especial a ela, e tudo o que poderia querer de alguém assim era segurança.
Seu rosto discretamente preocupado não combinava com o brilho presente naqueles olhos escuros. Obito estava ansioso e inquestionavelmente animado, e ela só conseguia imaginar os piores cenários que um ninja não tão exemplar quanto ele poderia enfrentar.
"Nós somos um time," Minato concluiu. "então devemos tomar essa decisão juntos. Alguém em desacordo com a missão?"
A mão de Sakura tremeu ao lado da coxa. Ela queria tanto levantá-la, tanto dizer que ainda não estavam prontos. Só queria protegê-los e deixá-los seguros, mas a inconsistência do emocional humano deveria ser reservada aos civis, não aos ninjas. Ninjas não deveriam escutar a emoção invés da razão, os anos extras da Academia fizeram questão de a marcar disso, e apesar de Sakura ser muito boa em entender sentimentos, não era aqui o lugar de deixá-los esvair.
Ela era uma ninja agora. Uma kunoichi de verdade; e como tal deveria agir.
Ninguém levantou a mão.
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"Minha avó surtou." Obito soltou o peso do corpo nos passos rápidos. Ainda era cedo e todos queriam aproveitar o sol mais ameno da manhã. "Ela praticamente colocou metade da casa na minha mochila."
"A outra metade não era comestível, eu suponho."
Ele a olhou de lado, mas não conseguiu esconder a risadinha. "Tipo isso. Como seu pai reagiu?"
Sakura não estava totalmente avessa à ideia de chamar Hidetaka de pai, mas se permitia confessar de que nada ligado a isso soasse tão ruim quanto um dia julgou pensar. Hidetaka não era sangue do seu sangue, mas inquestionavelmente se mantinha como o melhor dos guardiões.
"Ele ficou preocupado, é claro. É nossa primeira missão, não tiro a razão de estar assim." Os passos ligeiros continuaram, não deixando seu lado desde que os portões vermelhos ficaram para trás. Minato se erguia altivo à frente de todos, e pelas costas do grupo Kakashi mantinha a retaguarda. Entre os quatro estava Yogan, o cliente e guardião do pergaminho.
"Ele também quase chorou quando você saiu de manhã?"
Sakura revirou os olhos. A avó de Obito era um doce, mas uma verdadeira amante de dramas desnecessários. Hidetaka havia ficado feliz e empolgado, e ela percebeu a tentativa de esconder o nervosismo e aflição por trás de leve um casaco extra, não se esqueça do cantil e volte para casa com cuidado, mas nunca em vida ele teria posturas tão questionavelmente dramáticas quanto a senhora Uchiha.
"Ele não é tão exagerado assim."
"Sorte a sua." Ele riu e olhou para a frente, exatamente para as costas de Yogan.
Diferente de Minato-seisei, Yogan se estendia tortuoso e célere. Ele tinha as costas curvadas e postura cansada, e Sakura nunca poderia imaginar que este jovem adulto era aprendiz de ferreiro se não soubesse pela missão. Nada no porte físico lembrava a feição dura e os músculos rijos que os trabalhadores geralmente referiam, todos os movimentos que ele fizera até então lembravam nada exceto um garoto nervosamente frustrado.
Como se tivesse o poder de ler o que quer que ela estivesse pensando, Obito sussurrou. "Ele é meio estranho, não é?"
"E isso é motivo para olhá-lo torto?" Ele a encarou e torceu uma das sobrancelhas negras. A tradução de você sabe que não é isso que estou dizendo foi muito clara no meio do silêncio, mas ela riu mesmo assim. "Todos nós somos estranhos."
Obito conseguiu segurar um bufo antes que Minato-sensei estancasse no chão de barro alguns metros a frente. Nenhum deles soltou a voz enquanto a cabeça loira se movia pela orla da floresta e estrada adiante. Sakura meramente acompanhou o olhar dele enquanto tentava pensar no que estava acontecendo.
Ele se virou, mas qualquer preocupação existente não estava evidente em seu rosto calmo. "Yogan-san, a partir daqui abriremos caminho pela mata. As estradas são longas e não nos protegem do calor do sol, então a melhor opção para evitar insolações é seguir o curso pelos atalhos da floresta."
Yogan molhou os lábios em nervosismo palpável. "Eu não entendo, Minato-san. Por que não seguir este caminho conhecido?"
Sakura não era perita em linguagem corporal, muito menos sabia ler com afinco as posturas externas de outrem. Tudo o que ela poderia levar como experiência eram os anos de tutela com a Godaime, nos quais Tsunade fez questão de ensiná-la como a leitura da imagem era importante para o meio político.
E tudo o que Sakura poderia dizer sobre Yogan neste momento, mesmo estando metros à sua frente e de costas à ela, era que ele era um completo covarde.
"Estou apenas preocupado com sua segurança e vontade. Imaginei que o senhor quisesse chegar à vila o quanto antes."
"Quero chegar à minha vila com segurança, mas tendo ciência de onde estou indo."
Houve mais um minuto onde o sensei sustentou seu olhar com dureza. Ela sabia que nada mais poderia ser dito; o cliente era o dono da decisão em situações que não envolviam combate, ninguém ali poderia dizer o contrário. Quem pagava pelo serviço tinha o direito das escolhas.
Yogan sabia disso, por mais socialmente desengonçado parecesse ser.
E Minato também. "Façamos como o senhor deseja, então."
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Aquele foi um dia insuportavelmente quente. Um dos mais quentes de Konoha que ela poderia lembrar. O sol estava alto acima deles, fervendo a terra e queimando a sola dos pés. Todos resmungavam no arrastar de volta para casa, quando a água já morna dos cantis não completava a tarefa de refrescar.
Naruto praticamente implorou com os olhos quando todos ouviram o córrego do rio, sequer este estando à vista. Kakashi não achou uma ideia tão ruim quanto ela julgou que faria.
Era tão quente; tão absurdamente quente. Os verões de Konoha eram conhecidos por trazer brisas acaloradas no decorrer da estação, mas nenhum ar girava, nenhuma nuvem corria e a mata não tinha o som costumeiro de galho batendo contra a folha, então levou menos de um minuto para os genins largarem as mochilas e desceram o barranco. A margem estava repleta de pedras ovaladas, geladas ao toque quente das solas dos pés.
Naruto tagarelava e ria sobre qualquer coisa. Ele atirou água quando Sakura ainda estava tentando se acostumar com a temperatura e ela não pensou duas vezes antes de correr para tentar afogá-lo. Sasuke não demonstrou, mas todos ali perceberam o alívio em seu rosto duro. Estava tão quente.
As risadas do loiro barulhento a levaram mais para dentro do rio, longe da margem onde Kakashi aproveitava a sombra e Sasuke atirava pedrinhas. Os pés de Sakura endureceram de repente, como se o frio da água onde a luz do sol não alcançava subisse por suas canelas, arrepiando, tremendo.
Naruto a chamou, tão longe da margem agora. Ela correu até ele. Para ele.
E então afundou.
Estava frio aqui. Tão frio que o calor do sol não poderia superar a sensação de congelamento. Os cabelos compridos dela flutuavam sem gravidade, tirando-a da visão, cegando qualquer coisa que pudesse enxergar na água turva.
Ela ouviu seu nome, bem acima de sua cabeça. De novo. De novo e de novo, desesperadamente, até que finalmente suas pernas bateram e a levaram para cima, para a luz.
Mas não havia luz; havia gelo. Gelo que bloqueava a saída, a luz, o calor. Que bloqueava a voz de Naruto e Sasuke chamando seu nome, que as deixava abafadas como uma lembrança antiga.
Sakura bateu no gelo, socou, empurrou e estapeou, mas estava duro como metal, impossível de rachar. Ela continuou ouvindo seu nome, cada vez mais nitidamente, cada vez mais assustadoramente perto.
Estava congelando até os ossos agora. Todos os poros e cortes e cicatrizes e orifícios ardiam em brasa gelada, mas ela continuou batendo, desesperada para voltar a eles, a Naruto e a Sasuke. E a Kakashi, seus pais, sua casa. Ela queria ir para casa. Vir até aqui foi uma péssima ideia. Kakashi-sensei estava errado!
A voz continuou, esperançosamente perto de seus ouvidos, mas Sakura estava cansada. Com frio. Sozinha na água turva e sem forças. Sem ar, sem vida.
A chamaram de novo. Não de cima.
De baixo.
Ela olhou até lá, até o fundo do rio. Rios não deveriam ser tão fundos, mas este era. Escuro e apavorante, ele a chamou.
Venha. Venha, Sakura-chan. Junte-se a nós.
Sakura voltou a bater no gelo instantaneamente quando sentiu o movimento da água ondular lá embaixo. Naruto e Sasuke não estavam mais lá em cima. Não havia mais ninguém lá, apenas a luz. Mas até a solidão da luz era mais convidativa do que o escuro barulhento.
Ela continuou batendo, batendo e batendo; eles continuaram a chamando. Venha até nós.
Sakura não segurou o impulso de mover os olhos para lá outra vez. Ela sabia que era um erro, sentia isso, mas fez mesmo assim, e todo o ar restante saiu de seus pulmões apertados quando seu amigo morto, muito mais velho e vestindo farrapos, subiu entre braçadas tortas.
Os cabelos loiros de Naruto agora eram uma pasta cinzenta e chamuscada, havia um rombo no que deveria um dia ter sido seu estômago. Ele era a própria personificação da morte, mas quem agarrou seu tornozelo para a escuridão sem fim foi Sasuke; seu crânio aberto em rasgos terríveis que mostravam o vermelho da carne em meio ao negro do cabelo, sem um dos braços e órbitas vazias marcando o rosto ossudo. A escuridão abaixo não se equiparava em nada com o fundo oco de seus globos oculares.
Sakura gritou loucamente enquanto a puxavam, se debatendo, lutando, resistindo; mas a única coisa que subiu à superfície foi a mazela de oxigênio em seus pulmões.
E junto dela o que a restava de vida.
Um salto foi o que a trouxe de volta. Seu corpo subiu, procurando pelo ar inesgotado dentro do pesadelo. Sonhos como este eram frequentes e duradouros, tão vívidos quanto a realidade, porque se baseavam em suas próprias memórias. Ela continuou a respirar, fundo e sem parar, barulhenta no meio da madrugada. Era quente aqui, tanto quanto poderia se lembrar dos dias anteriores, mas mesmo assim seus braços eriçaram em arrepio. O céu estava arroxeado à essa altura da noite, as cigarras se retiraram para descansar. A única coisa ainda audível senão suas arfadas era o piar longínquo de alguma coruja perdida.
Não havia fogueira, apenas a brasa restante da noite anterior e o fio de fumaça subindo e subindo. Já com as retinas se acostumando, ela pôde captar no escuro Obito ainda dormindo. Kakashi estava por perto, mas fora de vista, e Yogan provavelmente dentro da barraca.
Acima dos quatro, Minato apoiava as costas no tronco da Sequoia onde antes Sakura estava encolhida contra. Um galho grosso e alto era seu poleiro noturno e quando ela conseguiu distinguir a forma curvada no meio da escuridão, também notou que o brilho anil de seus olhos estava em sua direção.
Ele levou uma das mãos aos lábios num movimento que Sakura sabia significar silêncio.
Os barulhos da noite continuaram ininterruptos, como se a presença forasteira não pudesse equiparar força com a natureza selvagem. Sakura deitou as costas no saco e imediatamente soube que não seria agora que conseguiria dormir. Geralmente era assim: seus pesadelos a acordavam quase no alvorecer e era muito mais convidativo calçar tênis para corrida do que se revirar na cama.
Então ela levantou e subiu até o sensei, sabendo que ele provavelmente a diria para descer e dormir. Ela sussurraria que tudo bem e se acomodaria no galho de baixo, e por lá ficaria até todos acordarem.
Exceto que ele não disse nada. Ele só ficou lá, parado, olhando para a imensidão escura à espreita.
À meia luz da madrugada, Minato parecia muito mais velho do que realmente era. Sua franja caía branca ao redor das bochechas e as sombras dos cílios causavam a impressão de olheiras logo nos bolsões dos olhos, o que a deixou profundamente confusa. Ele deveria estar cansado; passar a noite em claro era um desafio, somado isso a toda a caminhada do dia anterior se tornava uma tarefa difícil aos melhores shinobi, mas aqui estava o sensei, sereno como se vinte horas ativas fossem o menor dos esforços.
Ela apoiou a cabeça na madeira e fechou os olhos, como se seus impulsos médicos não estivessem à flor da pele naquele momento. "Pensei que não teríamos rondas hoje."
"Não é preciso," houve o sussurro e mais alguns pios perdidos. "estou apenas sendo cuidadoso." Sakura o encarou de baixo. Ela acreditava nele. Depois de horas assíduas de caminhada, com paradas regulares apenas para encher os cantis e pausas para refeição, eles ainda se mantinham no território do Fogo. Não havia tropas inimigas por onde as demarcações vermelhas se estendiam, e caso houvessem, se não certamente desesperadas pela saída, estavam ocupadas levantando disfarces e falsas fortificações. Os Senhores do Fogo e Damyos renomados, verdadeiros financiadores de todas as extensões cotidianas, faziam questão de fortalecer a ideia de que seu país possuía o título de Inderrubável por um motivo. Quem deveria entrar, entrava, e quem o fazia sem a percepção das renomadas infantarias vermelhas era digno de respeito e diligência.
Levou um tempo até sentir a queimação azulada novamente. Ela não precisou sustentar o olhar do sensei para saber que se tratava de preocupação, pura e sincera e tremendamente questionável. Sakura engoliu em seco, querendo que ele dissesse qualquer coisa, menos o que tinha certeza do que viria. Não a surpreendeu ele não obedecer suas súplicas internas. "Quer falar sobre isso?"
Foi um pesadelo, apenas um pesadelo.
Todos são terríveis. Não há o que dizer.
Sua cabeça balançou em uma negativa totalmente certa. Ela definitivamente não queria falar sobre isso, já bastava vê-los quase todas as noites, comentar sobre não seria apenas remoer o pavor, mas também afirmar que deveria lidar com algo de que não queria lidar. E Minato realmente não precisava saber que sua aluna sonhava com um filho que ele ainda nem sabia da existência.
Invés disso, a antiga dúvida voltou. "Por que não fizemos ronda?"
Se ele percebeu a tentativa descarada de fugir do assunto, não ousou expressar. "Vocês precisam descansar, caminharam por um dia inteiro."
"Você também fez isso, sensei." Murmurou ela um tom mais baixo do que o dele. Estava escuro ainda, não o bastante para não conseguir vê-lo, mas com certeza o suficiente para os que estavam abaixo sumirem de vista. A flora do Fogo tornava as folhagens comumente densas e grandiosas, mas no escuro tudo se tornava uma massa negra e confusa. Os poucos pontos livres que transmitiam a visão do céu mostravam à Sakura que a luz do sol estava a poucas horas de despontar. Se ela quisesse fazer Minato descansar, deveria ser agora. "Desça, sensei. Eu vigio esse turno."
Nenhum músculo dele se moveu. Não levou muito para descobrir de onde vinha a teimosia de Naruto.
"Estou falando sério, Minato-sensei." Continuou. "Você, como um jounin de elite, deveria ensinar a seus alunos o correto. Ninjas precisam de descanso para estarem aptos a um serviço de qualidade." Um segundo depois, Minato moveu o rosto minimamente em sua direção. Seu cabelo ainda estava branco e a luz tremendamente ruim, mas isso não impediu a percepção de uma diversão em seu rosto. "Você mesmo disse que não era necessário, sensei." Suplicou uma última vez. "Vá descansar, juro que não farei nada idiota."
Um grande alívio deixou o corpo de Sakura quando ele torceu os ombros e forçou o abdômen para frente. Enfim descansaria, e ela poderia ter o restante da madrugada para se manter em paz. Minato desceu e a concedeu o lugar mais elevado, menos íngreme e com certeza com melhor visão de espaço, mas só quando ele finalmente ajeitou o saco de dormir e não se mexeu mais, ela se deu o luxo de distensionar os músculos e engatilhar uma meditação superficial, nada que prejudicasse a atenção pelo ambiente nem qualquer percepção de assinatura externa.
Ela fechou os olhos e fez de tudo para não pensar nas imagens de minutos atrás. Seus companheiros estavam mortos há mais de sete anos, mas ainda muito vivos em suas memórias. Não só vivos, mas a perseguindo imparavelmente, puxando-a sempre que surgia a oportunidade, para baixo, para o fundo do rio, para o poço escuro e profundo.
Mas ela não daria isso a eles. Não eram seus amigos, não era sua família; era a culpa, tão forte e impiedosa e totalmente capaz de criar alucinações das maneiras que melhor lhe atingissem. Sakura não cederia à culpa.
Eventualmente, o tempo passou, e quando seus olhos abriram, o violeta já marcava os pontos descobertos do mar de folhas acima de todos. Forte e ainda cegante, a escuridão estava ali, mas poderia chutar cinco da manhã.
Sem se mexer, deixou que os olhos vagassem por cada um deles. Obito estava na mesma posição, um ronco baixo saía da barraca ao seu lado. Minato dormia meio deitado, meio sentado, mas evidentemente muito pronto para qualquer movimento alheio. Ela deixou que seus olhos caíssem por mais tempo sobre Kakashi quando enfim o encontrou contra uma pedra alta, no outro extremo de Obito. Sua posição formava a terceira ponta da minúscula clareira encontrada no meio da mata e ele estava parcialmente encolhido sob os próprios braços cruzados.
Quando a primeira luz marcou o céu, ela se surpreendeu ao encontrar sua testa lisa e sobrancelhas não franzidas. Ele era diferente assim, quando não parecia estar à ponto de explodir em qualquer um deles. Desse ângulo, até parecia um garoto normal. Sakura com certeza não o acharia tão chato se ele andasse com esse rosto por aí; até mesmo cogitaria ser mais amigável. Mas ainda parecia extremamente errado o ver desse jeito. Kakashi era chato e arrogante e estupidamente convencido, e os lampejos da personalidade intensa combinavam muito mais com o diário ar esquentado do que com esta versão anormal adormecida.
Ela decidiu que era hora da alvorada quando o pensamento de que a carranca habitual era muito mais atraente do que essa versão serena cruzou sua cabeça.
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As desilusões de Obito eram absolutamente irrefreáveis. Não foi este o projeto pessoal de primeira missão que ele havia arquitetado durante anos em sua infância, e mesmo que dissesse a si mesmo repetidas vezes que aquilo era mais do que a simples realidade se desenrolando no fio do presente, o lado infantil e irracional de sua cabeça continuava a murmurar todo tipo de baixaria.
Inferno, ele estava fedido. Suado, cansado e faminto. Também de mau humor, mas mais por conta de todas as atribuições anteriores. Estavam apenas no segundo dia e ele já sentia querer girar os calcanhares e voltar para casa. Confessar isso a si mesmo foi um desafio; aos outros seria loucura. E também completamente desnecessário, dado que uma olhada rápida poderia mostrar que todos estavam como ele.
Todos exceto Minato-sensei. O vento quente e o sol de verão pareciam não afetar a postura leve e descontraída dele, e mesmo que às vezes seu rosto endurecesse por qualquer motivo desconhecido, ele não tardava em voltar ao padrão de serenidade constante.
Kakashi estava como Obito, mas morreria antes de admitir. Até Sakura parecia cansada. Quando sentia não aguentar mais os próprios joelhos, ela surgia ao seu lado, quase como se sentisse o que ele estava sentindo, como se pudesse presumir tudo o que passava por sua cabeça como uma sombra imprevista, dizendo-o para continuar, dizendo que logo chegariam.
A pele do rosto dela estava avermelhada, mas era para Yogan que Sakura estendia o protetor solar. O ferreiro era desengonçado na maioria do tempo, mas não perdia a postura respeitável quando igualmente lhe dava uma mesura.
Obito viu pelo canto do olho ela tentar o mesmo com Kakashi. Todas as investidas amigáveis que Sakura lhe jogava tinham o mesmo resultado: ele dando a ela as costas. Foi engraçado nas primeiras vezes, mas meio deprimente agora. Sakura estava tentando juntar o time, mesmo que ela própria às vezes fosse impetuosa e desbocada. Ela estava tentando à sua maneira, mas Kakashi não abria margem a ninguém ali exceto a si mesmo.
"O garoto," Yogan sussurrou para ela quando começaram a montar acampamento, o sol já escondido atrás dos montes. Ainda não estava totalmente escuro, mas perto o suficiente com o céu pesado acima das copas, carregado de violeta e índigo. "Por que ele age assim?"
Obito continuou a revirar sua bolsa, fingindo não entender como abrir o saco de dormir. Ela olhou por cima de seu ombro, parecendo totalmente ciente de que o único por ali que os escutaria seria ele. "Ele é uma boa pessoa, não o entenda mal. Kakashi só é distante."
"Não é bem essa a perspectiva que eu teria de um time."
"Talvez," ela murmurou, ajudando-o a abrir sua própria barraca. "Mas todos nós temos uma história fora daqui. Ele tem seus motivos para agir assim."
Yogan não respondeu. Obito não a olhou mais.
Kakashi era uma pessoa difícil. Sua arrogância e presunção naturalmente tornavam a personalidade contida em algo turbulento e irritante. Obito até ousava chamá-lo de mesquinho, frente a tantos momentos que ele próprio ouviu suas habilidades serem rebaixadas.
Mas Sakura era esperta e geralmente tinha razão no que dizia. Se ela estava certa disso, ele algum dia poderia acreditar nela também?
Ou, porém, o que fez Sakura perceber e chegar nessa conclusão?
O que ela via em Kakashi que Obito não conseguia?
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Nada que realmente valesse a pena ser contado era guardado nas memórias de Kakashi. Minato-sensei era um shinobi formidável, Yogan era um civil molenga e um ferreiro de provável igual descrição, e os dois idiotas continuavam a manter o papel. Esta, sobretudo, era uma missão confusa.
Quando o sensei anunciou a escolta, ou o que não era uma escolta mas se parecia muito com uma, ele imaginava eventos diferentes. Corridas sem fim, pernas tremendo e barras de alimentos repartidas. Nada que excedesse um limite fisicamente saudável, porém nada abaixo de ingestão diária de adrenalina que apenas a vida ninja poderia fornecer. Ele percebeu, logo na primeira hora da manhã, que todas as suposições criadas só não viriam à realidade pela presença do dono do pedido. Yogan tinha um temperamento teimoso, mas suas ações não acompanhavam a personalidade ruidosa. Ele era lento e se cansava com facilidade e as paradas para retomar o fôlego e encher os cantis se tornaram cada vez mais numerosas. Kakashi não precisou trocar palavras para descobrir que ele era tão chato quanto silenciosamente julgara, e foi quase um alívio pessoal ver que os dois palermas se ligaram a ele quase instantaneamente quando necessário.
Eventualmente, mais tarde naquela mesma noite, foi a vez de Kakashi manter a vigília. Por mais que tivesse a certeza de que Minato-sensei estava muito bem acordado e alerta logo abaixo dele, ele se permitiu manter a guarda elevada e olhar acima de todos por ali, principalmente de quem muitas vezes havia sido alvo de suas críticas mais chulas. Não fazia sentindo um homem atrapalhado como Yogan ter recebido a tarefa honrada de levar conhecimentos tão importantes a outro país, mas não seria ele o primeiro a questionar a autoridade do Hokage. Quem fizera a escolha fora a própria família, e isso fazia Kakashi pensar que todos nela tinham a mesma visão que a dele sobre o herdeiro dos ferreiros – talvez eles só quisessem ver o filho amadurecer e a estrada era um bom caminho para começar a evolução.
Dentro da barraca, ele se escondia do escuro; ao seu lado, Obito enrolava-se a manta como um morcego. Fazia frio nestas terras distantes, o mar já estava próximo o suficiente para o cheiro de sal pairar pelas correntes de vento.
Ele puxou o próprio casaco e cobriu a cabeça com o capuz. A noite ainda era cheia de nuvens, mas, diferente da paisagem do dia anterior, a flora do País do Relâmpago era delicadamente mais fina e esparsa, o que Kakashi sinceramente gostava. As árvores ainda eram muito altas, mas era bom acordar e não estar no completo escuro.
Dali, ele conseguia ver Sakura. Ela estava mais afastada do que todos os outros, mas tão coberta quanto o Uchiha. Ele teve um minuto ou dois para notar que o peito dela subia e descia muito mais rápido do que o sono poderia proporcionar, então soube que aquilo era uma respiração desregulada. Talvez ela tivesse asma ou algo assim, quem sabe bronquite, mas ele duvidava, e qualquer incerteza se desfez quando no segundo seguinte ela mexeu a cabeça agressivamente.
Era à noite que todos dormiam juntos. Não exatamente juntos, mas na presença um do outro. Nunca antes ele a vira em algum momento tão vulnerável e foi com certa surpresa que Kakashi percebeu Sakura presa em um pesadelo. Ela moveu a cabeça mais uma vez, os fios róseos se tornando cinzentos na meia luz da noite, e então os braços, até que um som estranho escapasse de sua garganta. Ele também não estava exatamente perto dela, mas teve quase certeza de que normalmente aquilo soaria como um grito tapado.
Então ela abriu a boca e levantou o tronco, mas ao invés de gritar como ele imaginava que faria, Sakura inspirou o ar gelado fortemente. Uma, duas, três vezes; até que a calmaria voltasse.
Os olhos de Kakashi desceram até Minato e voltaram para ela logo depois de ver que o sensei mantinha o rosto levemente em sua direção, com certeza ciente do que estava acontecendo.
Ela levantou uma mão até a própria garganta e tocou a pele exposta, respirando, ruindo, chorando, e então seus olhos claros de repente subiram até os seus, como se nada ao redor estivesse na igual imensidão da noite, como se Kakashi não estivesse envolto e oculto na negritude da floresta, como se ela pudesse vê-lo ali com a clareza de um dia sem nuvens. Isso o deixou nervoso, mas ele não piscou os olhos nem por um segundo.
Um minuto discorreu entre o contato visual antes que ela fizesse o mesmo ao sensei, para então, e finalmente, rolar o corpo e deitar outra vez. O turno dela seria o terceiro e último.
Novamente, nada que realmente valesse a pena ser contado era guardado nas memórias de Kakashi. Isso, é claro, não foi o suficiente para ele deixar de se questionar se Minato-sensei sabia o que estava acontecendo.
Além disso, qualquer esforço senão manter a vigília foi levado por minutos a imaginar o que aquela garota estranha poderia estar sonhando.
Ele desistiu quando nada lhe veio à cabeça, e ele também pouco se importava. Sakura não era verdadeiramente importante ao ponto de tirar seu sono, foi com esse pensamento que ele deitou a cabeça assim que Obito rolou para fora do saco de dormir.
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A brisa marinha fazia cócegas no rosto de Sakura e o cheiro de sal começara a irritar as narinas antes mesmo de todos embarcarem no longo veleiro. Ainda era manhã, o vento do mar levantava os cabelos e vestes de todos por ali.
Ela já havia visto a praia antes, mas a imensidão de areia e ondas não deixava de ser exuberante. Obito estava debruçado sobre a borda do barco, totalmente centrado na procura de qualquer peixe que pulasse pela água; Kakashi se erguia na proa, de frente para o mar sem fim. Por outro lado, Sakura preferiu a segurança do mastro. O chão mexia e a fazia sentir um futuro enjoo, e o ponto central da embarcação seria o porto seguro àqueles de estômago fraco, disse o capitão. Sakura engoliu o que pareceu muito um pequeno insulto e apoiou as costas no alto mastro, grata em partes por pelo menos o vento ajudá-la na calmaria da ânsia.
Uma olhada para cima e ela via as velas baterem contra as correntes de ar. Os extensos panos brancos ruidosamente rugiam no decoro do vento e o azul do céu era realmente bonito daquele ponto. Imediatamente Konoha surgiu em sua mente e foi impossível não se perguntar se o céu estava da mesma cor por lá. Se ainda estava insuportavelmente quente, ou se Hidetaka já estava de guarda. A despedida havia sido rápida – ele precisava trabalhar e ela também –, mas ela sentia que ali mesmo ele já estava repleto de preocupação.
E com preocupação foi impossível não se lembrar da noite que Shisui pulou sua janela. Ainda não tinha entendido, mesmo depois de três dias, pelo que ele havia passado para estar lá, mas as palavras continuavam a arder na memória.
As coisas estão assustadoras lá fora.
Ela ignorou a sensação latente de aflição naquela noite e fez o possível para deixá-lo confortável, mas agora era diferente. Era ela quem estava nervosa, e ninguém por ali poderia sequer saber ou mesmo dizer o contrário simplesmente porque a questão toda ainda era confusa.
O que era assustador fora de Konoha? O que rastejava por aí que fosse capaz de assustar Shisui?
Sakura não sabia, e em parte não queria saber, mas a preocupação continuava a alfinetar a ponta de seus dedos desde que calçou as sandálias.
Ela repetiu a si mesma o mantra dos ninja de elite. Esta era uma missão e missões deveriam ser concluídas com eficácia. Temer prováveis casos apenas atrapalharia o foco dela, e um dos integrantes desconcentrado certamente afetaria o grupo como um todo.
Qualquer que fosse o medo de Shisui, Sakura jogou para longe e deixou que o vento o levasse. Ela fez o mesmo com a própria preocupação latente.
A chance de entendê-lo seria dada quando os dois se vissem novamente cercados pelos muros, a salvo do desconhecido.
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Foi uma surpresa para Shisui não conseguir entrar pela janela de Sakura; não porque ela não estava no quarto, mas pela janela em si estar trancada. Também foi uma surpresa ver que quem atendeu a porta foi Hidetaka, não ela, quem normalmente fazia isso.
"Ela saiu em missão três dias atrás," Abriu passagem e depois seguiu para a cozinha. "Achei que você soubesse, mas faz tempo que você não passa por aqui, afinal."
Ele fez uma nota mental de agradecê-la mais tarde por manter em segredo o encontro noturno. Não que Hidetaka fosse surtar quando soubesse do caso, mas quem sabe a reação beirasse à isso.
"Eu não soube."
"Bom," Começou ele novamente, estendendo-lhe um kobati negro recém enchido. Dentro, o líquido verde fumegava, o cheiro de chá rodava pela cozinha de forma inocente. Shisui gostava de tomar chá ali, mas era muito mais divertido quando Sakura estava por perto. "Eles saíram logo depois do nascer do sol de anteontem, mas a previsão de chegada é daqui quatro dias."
"Quatro?" Shisui contou mentalmente, ligando os dias da semana. "Uma missão de uma semana? Isso não é muito tempo para genins?"
Se Hidetaka se importava, não pareceu. Ele levantou a xícara e encostou os lábios, mas não bebeu. "Uma missão é uma missão," murmurou. "A escolha de aceitá-la cabe ao time. Sakura é uma ninja daqui pra frente, como você e como eu, Shisui."
Shisui olhou para as próprias mãos e também para a xícara quente entre elas. Ele queria dizer a Hidetaka as coisas que não pôde dizer à Sakura. Explodir ao cantar que tudo lá fora era perigoso e amedrontador e que nenhum genin deveria lá estar, muito menos Sakura. Ela deveria ficar aqui, com Hidetaka e com quem a pudesse proteger. Com ele.
Mas Sakura não era uma criança. Ela nunca foi uma criança comum, mas as coisas estavam mais diferentes desde os meses passados. Ele sabia que se dissesse estas mesmas coisas a ela, com certeza um soco seria sua resposta. Sakura nunca foi nem uma criança e nem uma menina comum, e aquilo que mais odiava receber além de preocupação era proteção.
A saída de Shisui foi rápida depois disso. Ele precisava encher a cabeça e se afastar de Hidetaka antes que fosse tarde demais para esbanjar as próprias preocupações. Se ele, que era apenas um amigo, estava na aflição, imagine então Hidetaka.
Tudo o que poderia fazer era torcer para ela estar bem e que seu time fosse tão unido quanto ele esperava que fosse.
A segurança deles dependia disso.
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