Hoseok acordou com uma enorme vontade de beber. Sua garganta implorava por qualquer coisa que a queimasse, seu corpo pedia algo para aliviar o seu estresse – nem que fosse por esquecendo de tudo. Ele acordou antes dos outros, e passou algum tempo sentado no colchão os observando. Eram como dois anjos, ambos imperfeitamente perfeitos. Eles tinha os pés entrelaçados e com as costas juntas, como se suas asas estivessem apenas esperando para nascer.
Com um suspiro, levantou-se e fez seu caminho até o banheiro. Deixou a porta encostada e retirou a calça, entrando no box para sentir a água morna cair sobre seu corpo. Ficou um tempo encarando os azulejos brancos, em silêncio, ouvindo o barulho do chuveiro até ouvir a porta se abrir novamente, sem se importar com quem estava entrando. Namjoon entrou no box, com uma expressão séria em seu rosto bronzeado.
– Bom dia. – Disse, dando-lhe um beijo na testa.
– Oi.
– Nós temos que levá-lo hoje, não é?
– Sim. – Pausou. – Eu não quero, Randa.
Namjoon parecia preocupado. Ele estava um pouco afastado, silencioso demais e Hoseok havia percebido isso nos poucos minutos que estavam dentro do banheiro. Eles terminaram de se lavar, logo após disso o maior ajudou-lhe a secar os cabelos e escolher uma roupa para usar. Yoongi ainda permanecia dormindo tranquilamente, a respiração pesada se intercalava com seu ronronar de sono profundo. As unhas de seus pés estavam grandes, assim como as de suas mãos. Estranhamente, seu cabelo estava grande o suficiente para ser preso num curto rabo de cavalo; assim como dizia na carta.
O relógio indicava 09h20min AM. Eles pretendiam, na melhor das hipóteses, chegar lá antes do almoço e esperar por Yoongi. Quando ele saísse, iriam almoçar juntos num lugar novo e voltar para casa; todos felizes. Na pior das hipóteses, Hoseok e Yoongi voltariam sozinhos e nunca mais o veriam novamente. Não queriam levá-lo para lá, não queriam ter de sentir toda a ansiedade que estavam sentindo no momento e não queriam sentir vontade de chorar ao simplesmente pensar nele sumindo. Mas tinham de fazer tudo isso por ele.
Os três pegaram o metrô. Eles teriam de pegar um táxi logo após, por o local ser um tanto escondido entre os prédios. Yoongi batia os pés lentamente no chão do veículo, os sapatos pretos fazendo um barulho abafado junto às vozes dos outros. Ele estava entre os dois outros rapazes, perdidos em seus próprios pensamentos. Namjoon lia um livro curto de capa branca, ou ao menos fingia que estava lendo. Hoseok não conseguia disfarçar sua agonia, ele tinha a cabeça apoiada nas mãos, cotovelos apoiados nos joelhos e encarava o chão prateado com olhos entreabertos. Estava destruído. Não conseguia ao menos aproveitar seus possíveis últimos momentos com ele.
Saíram juntos, Namjoon guiando o menor com suas mãos em seus ombros. Hoseok era o mapa deles agora, e mesmo dentro do táxi ele tinha de guiar o motorista. Eles não saíram da área movimentada da cidade, mas ainda se sentiam completamente perdidos. Era uma casa no meio de prédios e comércios, com as paredes pintadas de vermelho vinho e janelas fechadas. De fato, a casa parecia vazia. Eles tiveram de sair do táxi, agora os três parados em frente à construção com sentimentos mistos em seus interiores. Namjoon virou-se para puxar os dois em um abraço forte, seus braços grandes quase conseguindo envolver ambos. Foi retribuído e sentiu as unhas do híbrido em sua pele novamente.
– Ei, vai ficar tudo certo. – Disse, tentando manter-se otimista. – Ok? Isso vale para vocês dois.
– Eu sei que vai. – Yoongi respondeu-o, sorrindo e passando as mãos pela franja que caía nos olhos. – Só estou com medo.
– Não vai acontecer nada com você. Nós não vamos deixar.
Hoseok pôs uma de suas mãos no ombro do menor, sorrindo largo. O híbrido se sentiu confiante, acenando para seus namorados com um sorriso largo nos lábios finos. Iniciou uma caminhada vagarosa até a entrada da casa, encarando a porta com olhos curiosos. Com um suspiro breve, ergueu o braço para bater gentilmente na madeira e esperou alguns segundos tentando escutar algum barulho vindo de dentro, qualquer coisa que indicasse que alguém vivia ali.
Antes que pudesse virar para os rapazes, ouviu o abrir da porta. Não havia nenhuma mão, nem silhueta, nem pessoa atrás dela. Apenas conseguia ver um pouco do interior da casa, o chão de madeira e a falta de móveis no canto direito que se estendeu para toda a sala quando ele deu seus primeiros passos para dentro. Não havia nada ali. Ele mesmo fechou a porta atrás de si – não estava com medo. A casa era completamente limpa, desabitada. Deu alguns passos para o centro do cômodo, sendo recebido por alguns gatos que saíram de trás das paredes da cozinha.
– Oh. Olá. – Ele disse, como se eles o pudessem responder. Abaixou-se para acarinhar um deles. – O que vocês estão fazendo aqui, huh?
Ele conseguia ouvir apenas a sua própria voz arranhada ecoar pelas paredes brancas da casa. A falta de luz deixava o ambiente cheio de sombras, o barulho de seus sapatos transitava pela casa como se houvessem outras pessoas além dele ali. Um dos gatos se dirigiu até a escada, sendo seguido por todos os outros que estavam na sala. Yoongi também foi atrás deles, quase sem pensar.
Era muito escuro para qualquer pessoa normal enxergar. Seus pés se moviam cautelosos pela escada que rangia a cada degrau subido, cada vez mais perto de algo que ele não sabia exatamente o que. Em certo ponto, os gatos sumiram. Ele estava sozinho, subindo uma escada que parecia ter uma quantidade infinita de degraus; eles não paravam de aparecer. O corrimão havia ficado mais frio, assim como o ar, que em alguns momentos parecia rarefeito. Apesar de tantos degraus, o pequeno não se sentia nem um pouco cansado. Pelo contrário, estava ansioso; seu coração pulava dentro de seu peito.
A luz foi, aos poucos, tomando conta de onde Yoongi estava. A escada estava em seus últimos degraus, os quais ele subiu rapidamente, antecipando. Engolia seco, sentindo um gosto amargo em sua boca. Um caminho adornado por vários, vários cristais lhe saudou ao finalmente chegar ao seu destino. Era como se ele não estivesse mais dentro da casa; mas ao olhar para trás, ainda podia ver a escada lhe esperando, uma névoa fina cobrindo a sua estrutura. Ele tinha a opção de sair, se quisesse.
O reflexo dos cristais no chão, tão escuro que parecia andar em um completo vazio; brilhava contra o seu rosto, o iluminando em tons de rosa e dourado; anil e carmim. Ele sorriu tímido, ao perceber que alguns dos gatos ainda estavam ali, apenas mais à frente. Seus pelos tinham um brilho diferente, como se algum tipo de aura rodeasse os seus corpos felinos. Yoongi não havia reparado, mas a essência percorria o seu corpo humano. Aquilo não parecia real – parecia uma extensão da realidade, algo que ele poderia apenas sonhar com.
Seus pés se arrastavam contra o chão, em completo silêncio. O caminho cristalino lhe guiava pela casa. Yoongi havia começado a achar que aquilo não lhe levaria a lugar nenhum, até que uma porta de aparência comum deu fim àquela trilha. E novamente, ele bateu algumas vezes na madeira. Dessa vez, não conseguiu ao menos ouvir seus próprios gestos. Conseguia, contudo, ouvir o seu pequeno coração batendo e estremecendo o seu interior.
A porta foi aberta e ele pode entrar num quarto completamente escuro nos primeiros segundos. As paredes o saudaram primeiro, depois o chão. Finalmente ele pode ver a si mesmo; seus braços e pernas ainda continuavam ali. Algumas velas descansavam no chão, todas vermelhas com chamas vívidas. Elas iam desde o início do cômodo até um lugar que Yoongi não conseguia distinguir.
O fundo do quarto ainda era um mistério para o pequeno: estava escuro como o céu noturno, sem estrelas. Dava a impressão de que aquele cômodo se estendia até o infinito, e ele chegaria às galáxias por aquele caminho, ainda se encontrando dentro do quarto.
– Yoongi, você veio.
A voz parecia vir de todos os lados do quarto, assustando o pequeno. Ele virou seu corpo para trás, vendo nada além da porta fechada. Em sua frente, ao retornar suas atenções, havia uma mulher. Ela não era como ele: não tinha orelhas pontudas, nem mesmo qualquer traço que poderia ser identificado como felino. Ela usava um vestido longo, de tecido fino e quase transparente; uma estampa com grandes flores alaranjadas e folhas que pareciam furtar todas as cores do universo.
Ele sentiu que precisava retirar o seu gorro. O fez, puxando timidamente o acessório de seu cabelo e revelando suas orelhas abaixadas e cabelo bagunçado. Ele fez uma breve reverência, mesmo sem saber quem aquela mulher poderia ser. Ela sorriu com suas linhas de expressão adornando delicadamente o redor de seus olhos e testa. Seus lábios tinham um tom avermelhado, aquecendo o corpo do híbrido tão distante dela. Ergueu brevemente um dos braços, gesticulando para que ele se aproximasse.
– Não tenha vergonha.
Obedeceu-a. De pernas trêmulas, caminhou até ela, parando a alguns passos de distância. Mantinha seus braços próximos ao corpo, segurando as próprias mãos como alguém que fez algo errado. O sorriso da mulher agora era fechado, seus olhos eram gentis e tranqüilos para o menor.
– Fico feliz que você tenha vindo me encontrar.
Ele teve coragem de encará-la, finalmente. Viu os seus olhos escuros, quase desaparecendo com a falta de existência atrás deles. Pareciam como dois buracos negros.
– Eu... Eu também. – A respondeu, a voz falha pela garganta seca.
A mulher riu. Seu riso pareceu estremecer as paredes do cômodo, assim como fez com o corpo de Yoongi. Ele sorriu em retribuição.
– Entenda... – Ela iniciou. – Eu passei muito, muito tempo esperando você. Assim como esperei muito por Taehyung, Jeongguk, Jimin e... Donghyuk.
Voltou os seus olhares para o chão novamente ao ouvir os nomes de seus irmãos. Um deles nunca poderia estar ali, na presença tão relaxante daquela mulher. Era como se Yoongi estivesse coberto por um manto muito fofo e morno, que cobria o cômodo inteiro e o pedacinho do universo em que eles dois estavam. Não havia como ninguém experimentar aquilo se não se fizesse presente.
– Eu sinto muito. – Continuou, dando alguns passos para encontrá-lo mais próximo. – Eu sei, mais que ninguém, que você gostaria de conhecê-lo. Ele era uma boa pessoa, Yoongi. Você não precisa ter dúvidas disso.
– Obrigado. – O híbrido lhe respondeu, baixo. – Eu também sinto muito. A senhora... Era algo dele?
O silêncio feito parecia como o barulho mais alto que Yoongi havia escutado em vida. Ela apenas assentiu com a cabeça. Em seu rosto, havia a expressão mais angustiada que o pequeno poderia ver. O seu toque era o mais quente, as sensações sentidas ali dentro nunca poderiam ser superadas.
Yoongi estendeu ambos os braços para abraçá-la, sem pensar. Fora retribuído, as mãos finas da mulher rodearam seu corpo o envolvendo. Era como se o próprio Deus estivesse ali, transmitindo todo o seu amor para todos os centímetros que cobriam o corpo pequeno de Suga. Era demais para que ele acomodasse tudo dentro de si.
– Sente-se comigo. Eu preciso lhe dizer algumas coisas.
Ambos se sentaram em um canto do quarto, próximos da escuridão. Yoongi esticava o seu braço para vê-lo sumir no meio ao cruzar a barreira de luz, maravilhado como ele ainda estava inteiro ao voltar para perto. A moça lhe sorria divertidamente, aproveitando cada segundo junto a ele.
– Yoongi. – O chamou, tomando a atenção dele para si. – Você tem alguma pergunta para me fazer?
O pequeno assentiu com a cabeça, cruzando as pernas no processo. Seu gorro permanecia em seu colo.
– Então, faça-as agora.
– De... De onde eu vim? – Ele iniciou. – Por que eu virei um humano? E por que eu tive de vir para cá hoje? Por que eu sou assim?
A mulher sorriu com todas aquelas perguntas. As mesmas que os seus irmãos haviam feito, horas antes dele chegar. Suspirou profundamente, inalando o aroma indecifrável que havia se instalado no quarto.
– Você e os seus irmãos são pessoas especiais. – Sorriu fino vendo o olhar curioso do pequeno. – São híbridos, o resultado de um relacionamento entre um felino e um humano. Porém, Yoongi, nem todos os gatos que você encontra são híbridos. É por isso que vocês são especiais.
Yoongi mantinha-se em silêncio. Seus lábios pareciam secos o suficiente para racharem em um movimento brusco. Um sentimento frio tomou conta do seu interior. Aquilo que ela lhe dizia não era nada novo – ele já sabia que era um híbrido. Mas a maneira como ela mantinha a voz, sempre ameaçando continuar e lhe contar algo terrível lhe fazia tremer.
– Eu só teria total liberdade de te mostrar, de levá-lo até onde você nasceu apenas se você... – Ela pausou, séria. Suspirou novamente. – Yoongi, você e os seus irmãos não são mundanos. Você é nativo de um plano diferente. Consegue me entender?
– Eu... Não sei se entendi. – Sussurrou.
– Você é do plano Etéreo. – Ela sorriu. – Lá é bem parecido com a Terra, mas não existem prédios ou outras construções como estas. Algumas criaturas habitam o plano Etéreo, e criaturas como você também se incluem lá.
Os lábios finos do híbrido se entreabriram.
– E você está aqui hoje, Yoongi... – Continuou. – Por que você tem a oportunidade de voltar para lá, se quiser. Você teve a oportunidade de experimentar este plano, se relacionar, amar. Existem infinitas possibilidades do que você pode fazer lá e do que você ainda pode fazer aqui. As suas unhas e cabelo estão crescendo, não é? Você está conseguindo ver melhor no escuro, assim como ouvir melhor. Tudo isto é porque você precisava vir até aqui. Ver-me. Vê-lo. Saber disso tudo, saber de tudo que ele lhe dirá para decidir.
– Quem?
Ambos ouviram um barulho agudo, vindo do lado de fora do quarto. A mulher encarou Yoongi com olhos tristes, segurando ambas de suas mãos.
– Eu gostaria que este momento durasse para sempre, querido. – O disse. – Ele chegou mais rápido que o esperado.
– Quem? – Yoongi começava a se preocupar, sua voz saía fina da garganta embargada. – Do que você está falando?!
Ele queria chorar. Não conseguia. As suas lágrimas pareciam estar presas dentro dos seus olhos; tudo que ele podia enxergar era um borrão que voltava a permanecer nítido a cada respiração profunda sua. Suas mãos apertavam as da mulher com a mesma intensidade – ele não sabia por que aquilo lhe doía tanto.
O barulho aumentava de intensidade, ficando cada vez mais perto e mais alto. Até cessar de vez, fazendo com que o mesmo silêncio incrivelmente alto se instalasse ali. A mulher se levantou, levando o pequeno junto com ela.
– Eu preciso ir agora, Yoongi.
O coração apertado do híbrido parecia quebrar-se em milhares de pequenos pedaços. Em certo ponto, como se o tempo tivesse parado ali; somente os dois em um espaço reservado apenas para eles, Yoongi a abraçou novamente. Sentia-se frio, muito frio. Queria mantê-la perto, levá-la para fora e apresentá-la aos seus namorados mesmo sem saber quem ela era. Não sabia o seu nome, nem exatamente de onde ela veio, mas sabia que a amava. Muito. E que este amor lhe era retribuído na mesma proporção, senão mais. A mulher afagou os seus cabelos, passando suas mãos por suas orelhas e lhe dando um beijo de despedida na testa. Assim como Yoongi, ela não conseguia chorar. E, portanto, não conseguia lhe enxergar claramente.
– Não vá, por favor. – Ele repetia estas palavras como orações, o medo crescia rapidamente dentro do seu corpo. – Eu não sei quem está atrás da porta...
– Vai ficar tudo bem, querido. Não tenha medo. Eu cuidarei de você. – Pausou. – Lembre-se de que, não importa o que você escolher no final... No fundo, você ainda será um belo felino.
Apertou suas mãos uma última vez para se afastar finalmente, caminhando em silêncio até o final do quarto para parar no limite de luz. Yoongi deu um passo para frente, impulsivo.
– Eu ainda tenho uma pergunta! – Ela permaneceu em silêncio, como se ele estivesse livre para continuar. – Quem é você?
Ela lhe deu um sorriso largo, adornado por seus longos cabelos cor de noite; olhos finos e lábios avermelhados com a pele clara.
– Eu sou a sua mãe, Yoongi.
Seus lábios estavam entreabertos novamente. A mulher pôs a mão sobre o tórax, sentindo o próprio batimento cardíaco e o seu filho a imitou. Yoongi simplesmente sentia que havia algo diferente quando entrou na sala; quando a viu, e agora tinha plena certeza. O híbrido sentia seu coração intenso e irradiando uma temperatura extremamente álgida e ao mesmo tempo abrasadora, o choque térmico fazendo tremer as pontas de seus dedos finos.
Eles se entreolharam por alguns segundos, conectados pelo batimento cardíaco. Yoongi entendia tudo. Entendeu que todas as boas sensações que havia sentido enquanto vivia; toda a confiança que tinha em simplesmente viver; existir, todo o medo que fora retirado de si no primeiro abrir de olhos, no primeiro reflexo entendido no espelho... Era ela, cuidando dele. O protegendo. Por todos os momentos de sua vida, sua mãe lhe deixou sofrer apenas o suficiente para que ele entendesse o que é ser humano.
Era experimentar a dor, solidão perante o vasto universo acima e ao redor. A raiva e agonia de não poder salvar alguém, o desespero de encontrar pessoas ruins ainda sendo tão ingênuo. As dúvidas e gosto amargo na garganta quando não conseguia entender o porquê de estar ali; vivo. Quando ninguém conseguia entender o porquê. Os tremores que pareciam retirar-lhe do seu corpo ao experimentar a perda de alguém.
E ao mesmo tempo, era deixar-se banhar em alegrias. Sozinho, distrair-se com a beleza do mundo que lhe fora proporcionado. Ter a oportunidade de tocar o rosto de quem ama; de viver com eles todos os dias. De sentir o prazer de poder gritar, sorrir, gargalhar; gemer e até mesmo gozar. Yoongi havia descoberto o porquê ele estava ali na Terra e não no plano Etéreo. Ele simplesmente sabia, mesmo não conseguindo colocar em palavras. Ele amava aquilo mais que conseguia explicar.
Viu-a ir embora, seu corpo alto e esguio sumindo na escuridão. Não sentia que devia ir atrás dela, não mais.
Assim que ela sumiu, a porta do lado oposto do quarto se abriu. Yoongi já não tinha lágrimas em seus olhos, e o medo ainda persistia dentro de si. O barulho ecoava em sua mente – era algo indescritível. O som da madeira rangendo enquanto uma mão pálida, com dedos longos demais para sua estrutura segurava a maçaneta e abria a porta com lentidão deixava Yoongi nervoso; uma agonia que inundava o seu corpo inteiro.
– Q-quem está aí? – Ele gaguejou, numa tentativa de parecer bravo.
Não obteve resposta alguma. Apenas encarava a porta, atônito. Os olhos haviam perdido todo o brilho e suas mãos estavam trêmulas novamente; assim como suas pernas. Buscou pela barra de sua camisa e a agarrou com força, amassando o tecido fino. A figura alta e até então completamente escura se fez presente em frente à porta. Um homem de pele quase transparente, cabelos negros cortados desigualmente; unhas longas e amareladas; trajando um terno social. Ele mantinha-se com uma das mãos atrás do corpo, e ao encarar o pequeno, curvou-se para reverenciá-lo. As orelhas no topo de sua cabeça permaneciam afiadas, negras o suficiente para confundi-lo. Suas pontas, porém, eram cortadas, diminuindo seu tamanho pela metade. Aquilo fez o coração de Yoongi doer, sentindo a dor dos cortes em si.
– Olá, Yoongi. – O homem lhe sorriu um sorriso afiado. – Você foi o mais corajoso até agora, sabia disto?
Ele apenas acenou negativamente com a cabeça.
– Não se preocupe. Não lhe farei mal algum – Disse. –, porém, eu estou aqui para lhe dizer e mostrar algumas coisas.
– O-O que?
O mais alto se aproximou, fazendo Yoongi involuntariamente dar um passo para trás. Ele riu com a reação do outro, parando instantaneamente ao vê-lo assustado. O homem parou no centro do cômodo, metade de seu corpo parecia sumir com as sombras ali dentro. Yoongi permanecia encostado na parede, suas mãos espalmadas na parede fria atrás de si.
O braço coberto pelo terno que estava escondido atrás do corpo esguio se revelou, estendendo para Suga um pequeno pote retangular contendo um líquido de densidades diferentes – a parte de cima lhe parecia um tom de azul intimidador; a inferior, num vermelho vívido. Ele sacudiu o pote em sua mão, fazendo-os se misturarem por alguns segundos e ele conseguiu ver os pedaços não diluídos do azul nadando no vermelho. Yoongi encarou aquilo confuso, sem saber o que significava.
– Para ser sincero, Yoongi... – Iniciou. – O meu trabalho aqui é fazer você duvidar se quer realmente permanecer na Terra. Então, você terá de beber isto aqui – Gesticulou para o pequeno recipiente. – para tomar sua decisão final.
– Eu... Eu não quero.
O homem estalou sua língua contra os dentes.
– Você já teve sua chance de ir embora, se lembra? Ao chegar, a escada estava ali, intacta, para que você pudesse descê-la.
– Mas eu voltaria a ser um gato se não viesse aqui.
– Então, isso quer dizer que você fez a escolha certa, não é? – O seu sorriso afiado se mostrou novamente. – Agora, tome.
O pequeno caminhou até ele no centro do quarto, incerto. Estendeu a mão para que ele o entregasse o pote de vidro; sentindo seus dedos gelados contra sua própria pele. Antes de retirar a rolha que preservava o líquido, misturou-o como o rapaz havia feito anteriormente e assim, o bebeu. Sentiu o gosto amargo percorrer todos os cantos de sua boca, fazendo-lhe contorcer o corpo num arrepio completo. Seus olhos se fecharam involuntariamente; e Yoongi caiu no chão amadeirado, seu corpo permanecendo estirado e reto, as mãos fechadas em punhos.
Inspirando forte, Yoongi acordou. Agarrava o ar ao seu redor, não conseguindo encontrar nem o rapaz que lhe havia dado a bebida ou o quarto. Não havia mais nada que ele reconhecesse ali. Ele estava sobre um gramado vívido, flores o rodeavam e ao olhar para cima, conseguia ver a galáxia da manhã sobre seu corpo. Via planetas que não reconhecia, estrelas tão próximas que com certeza aqueceriam aquele lugar à noite. Ele percebeu que algo o incomodava por estar deitado, sem saber dizer exatamente o quê, e então se levantou com dificuldade.
Sentiu algo se estender de seu corpo. Olhou para trás; vendo uma cauda fazer sua camisa se levantar minimamente. Esta se movia exatamente como um membro. Os comandos subconscientes que Yoongi fazia a mexiam, assim como os braços e pernas.
– Mas... O que está acontecendo...? – Ele sussurrou para si mesmo.
Em seu redor, havia uma floresta densa; com uma trilha de pedras brancas que lhe levariam a algum lugar. A floresta se fechava atrás dele, como se indicasse para onde ele deveria ir. E Yoongi seguiu-a, da mesa maneira que havia feito com a trilha de cristais dentro da casa.
Afastava as grandes folhas de seu rosto ao passar, pulava por troncos que haviam caído pelas ordens da natureza. Encontrou com criaturas que nunca havia sabido existir, aves das mais diversas combinações de cores; criaturas minúsculas que se prendiam às suas roupas, e Yoongi só conseguia notá-las pelos barulhos quase imperceptíveis que elas faziam. As retirava e recolocava-as num tronco de árvore qualquer ou em uma das folhas baixas.
Ouvia sussurros atrás de si, vozes femininas as quase ele não conseguia identificar de onde vinham. Quando permaneceu parado, conseguiu ver um par de pequenos seres humanos com asas; com longos cabelos loiros e peles que brilhavam como diamantes. Ele as encarou perplexo. Recebeu acenos de mão que retribuiu com grado, sendo deixado com risos tímidos.
Quando finalmente chegou ao final da floresta, viu-se em um campo vasto, que não terminava no horizonte. Ele conseguia ver todas as criaturas que apenas conhecia por histórias e filmes se juntarem ali mesmo, andando pacificamente. Sentia-se estranhamente confortável, como se sempre estivesse vivido ali – como se pertencesse, verdadeiramente, àquele plano. O céu brilhava fortemente contra o chão, deixando tudo tão nítido quanto ele poderia perceber.
Ele pode aproveitar de tudo. Yoongi foi recebido pelas melhores pessoas, sendo-lhe oferecidas as melhores comidas e melhores bebidas. Elas lhe disseram que ele poderia ter tudo aquilo regularmente se apenas permanecesse com eles; se apenas escolhesse viver ali para sempre. Ele permanecia incerto. Seu corpo estava ali, mas sentia que seu coração e suas escolhas permaneciam em outro plano. Foi-lhe oferecido um abrigo com uma cama quente, com um banquete festivo ao final da noite e um desjejum coletivo pela manhã. Fez amigos. Conheceu outros híbridos. Manteve contato diário com criaturas distintas.
O tempo parecia correr rapidamente ali – quando Yoongi pode perceber, um mês havia se passado. Ele havia se esquecido completamente do que era viver na Terra, de quem havia se relacionado com ele no plano humano. Era como se ele houvesse nascido e crescido no plano Etéreo. E ele era feliz daquela maneira. Não se perguntava o que havia além, e não queria saber.
Certo dia sentiu-se diferente. Uma angústia muito grande havia caído sobre seu coração, deixando-lhe desconfortável durante todo o dia. Seus amigos tentaram lhe ajudar, indo até a sua casa para lhe oferecer comidas e festividades, mas nada funcionava. À noite, sozinho, percebeu que o seu braço estava formigando. As pontas de seus dedos começaram a sumir, pedaços de sua pele se soltavam e viravam minúsculas partículas douradas; e isso tomou conta de todo o seu braço, até passar para o outro, para uma das pernas, e outra, e assim se sucedeu...
Ele não estava com medo. Sentia uma dor em seus órgãos internos, sim, algo esmagador. Havia se lembrado do que ele havia lhe dito dentro do quarto, tanto tempo atrás. O trabalho dele era o de fazer com que Yoongi duvidasse de seu lugar no mundo – ele deveria escolher ficar no plano Etéreo para que ele conseguisse terminar o seu trabalho.
E então ele se encontrou num grande vazio. Não havia mais nada. Parecia não haver ar, nem chão; nem céu ou nuvens ou qualquer barulho. Não havia o corpo de Min Yoongi, apenas a sua consciência que vagava sem forma.
Ele sabia que viver no plano Etéreo não lhe cabia. Tudo que havia sentido de bom lá fora manipulado por ele, transformado para que ele adorasse tudo existente. E não é assim que as coisas são. Pelo menos, não era o que ele havia aprendido na Terra. Os seus sentimentos verdadeiros, a verdadeira essência dele ser quem é... Tudo estava no plano terrestre. E ele precisava daquilo. Ele precisava ser humano. Existir.
“Eu preciso voltar”, seus pensamentos ecoavam na imensidão escura.
“Hoseok e Namjoon... eles... eles estão me esperando há meses...”
“Eu não pertenço aqui...”
“Existem coisas boas e ruins, não é? Nós precisamos aceitar isso. Eu vou aceitar.”
“Todos os meus sentimentos e laços; tudo que me faz ser quem eu sou... Tudo isso está lá. Eu não posso ficar aqui.”
Inspirando forte, Yoongi acordou. Agarrou o ar ao seu redor com sua mão que não estava agarrada ao potinho, forte o suficiente para quebrá-lo se pressionasse um pouco mais. Viu o ambiente escuro do quarto, as velas quase terminando com a cera espalhada pelos arredores. O homem ainda estava ali dentro, sentado ao seu lado envolvendo os joelhos com os braços. Ao vê-lo, Yoongi não deixou de se assustar; sentando-se imediatamente e sentindo uma dor percorrer seu corpo pequeno. Ele balbuciava confuso demais para entender o que havia se sucedido. Suas mãos foram até a cabeça, levantando os cabelos que caíam na testa e ele respirava forte, pesadamente.
– O que... – Teve de parar e pigarrear. – O que aconteceu?! O que foi isso?
– Yoongi, você acabou de vivenciar um mês de sua vida no plano Etéreo.
– E o que diabos isso significa?!
O rapaz sorriu. Seus olhos se pareciam com o de Yoongi, formando duas luas crescentes ao fazê-lo.
– Agora que você viveu em ambos... Tem de escolher um. Lembre-se que se escolher o plano Etéreo, perderá tudo que construiu aqui, mas viverá como um príncipe. Terá tudo que desejar e viverá em eterna felicidade. Aqui, na Terra, você sofrerá como todos os humanos, tendo apenas as coisas e relações que você construiu. E tudo isso é efêmero no plano terrestre, Yoongi. Não no plano Etéreo.
Permaneceram em silêncio.
– Então, pequeno... O que escolherá?
Yoongi se viu livre para sair do quarto momentos depois. Ele se sentia completamente fora da linha do tempo, visto quanto tempo havia passado. Perguntava-se se Namjoon e Hoseok ainda o esperariam depois de tantos dias. Tinha um medo dentro de si – eles poderiam ter assumido que ele nunca mais apareceria e continuaram com suas vidas. Como ele disse, tudo é efêmero. Eles podem ter conhecido outro alguém.
A casa parecia normal. Ainda não havia móveis, mas não havia mais alguma trilha de cristais ou uma névoa nas escadas, e os degraus eram simplórios. Ele conseguiu descer rapidamente, finalmente conseguindo se sentir assustado o suficiente para sentir as lágrimas novamente tomando conta de seus olhos e sentir o nó em sua garganta. Parecia ter algum tipo de sombra atrás dele, o expulsando da casa em uma maneira bruta. Apesar de o seu “adeus” não ter sido triste ou angustiante, agora ele se sentia ameaçado por continuar ali. Percorreu a sala em passos rápidos e largos, correndo até a porta o mais rápido que conseguiu. Ainda não conseguia chorar.
Girou a maçaneta bruscamente, ouvindo o ranger da porta e ela se fecharem atrás dele, praticamente o empurrando para fora com uma rajada de vento. Assim que pôs os seus pés na calçada, não conseguiu manter-se de pé. Caiu no chão, encostando suas costas na porta e abraçando os próprios joelhos; deixando que todas as lágrimas e soluços saíssem. Ele murmurava as frases ouvidas, tentando reafirmar para si mesmo que tudo aquilo havia realmente acontecido – ele não era louco. Lembrava-se claramente do rosto de sua mãe, lembrava-se de sentir seus batimentos como um só, estremecendo-o por completo. Lembrava-se do homem tão alto que lhe intimidou por tanto tempo, mas mostrou ser gentil ao abraçá-lo como despedida e lhe deixar manter o pequeno recipiente de vidro que guardara no bolso.
Como se realmente tivesse vivido ali – e talvez, Yoongi realmente vivera –, ele se lembrava do plano Etéreo. Do cheiro, das sensações, das criaturas. Do gosto diferente de todas as comidas, das cores brilhantes do mundo e da galáxia que sobrevoava todo aquele mundo. Suas lágrimas pareciam ser infinitas, molhando o tecido de sua calça ao caírem e seus soluços pareciam muito mais altos.
– Yoongi! – Ouviu seu nome ser chamado, virando abruptamente o seu rosto avermelhado. – Por que está chorando? O que aconteceu?
As duas pessoas mais importantes em seu mundo ainda estavam ali. O dia ainda estava claro, o céu não tinha nuvens. Os dois rapazes se abaixaram junto a ele, o envolvendo em um abraço forte. Ambos tinham expressões preocupadas nos rostos, como se estivessem antecipando aquele momento por algum tempo.
– Eu... Eu... – O pequeno gaguejava, sem saber o que dizer. – Por quanto tempo vocês ficaram aqui? Eu passei meses lá... E o plano Etéreo, e...
Hoseok e Namjoon se entreolharam, com olhares confusos.
– Yoonie, você passou no máximo, uma hora lá dentro... – Namjoon lhe contou, vendo os seus olhos se arregalarem instantaneamente.
Ele não conseguiu deixar de rir, seu sorriso pequeno e branquinho iluminando o rosto dos outros dois. Suga os envolveu com um abraço desajeitado, beijando o rosto de ambos em êxtase.
– Isso... – Hoseok iniciou. – Isso quer dizer que você não vai embora?
– Eu vou ficar com vocês para sempre! – Yoongi os disse, o seu tom de voz ainda embargado contrastando com o seu sorriso largo. Ele suspirou profundamente. – Ah... Eu tenho tanta coisa para contar.
Os maiores riram baixinho, levantando-o e consertando suas roupas. Yoongi ainda tinha seu gorro em mãos, e lembrou-se que estava na rua e não podia ficar sem ele. Levantou os braços para colocá-lo sobre o cabelo, mas foi parado por Namjoon, que encarava o topo de sua cabeça perplexo.
– Eu acho que você não precisa mais usar os gorros, Yoonie.
– Do que você está falando? – Ele tocou o topo de sua cabeça, procurando por suas orelhas, sem sucesso.
Suga se assustou. Levou sua mão até a lateral da cabeça, sentindo suas orelhas humanas ali. Ele riu, dando alguns pulos involuntários pela felicidade que sentia. Iria sentir falta de suas orelhas características, mas sabia que ele, Min Yoongi, era muito mais que isso.
– Isso quer dizer que você é um humano completo agora? – Hoseok perguntou, levando uma cotovelada de provocação do maior. – Eu preciso perguntar!
– Eu ainda sou um felino. – O respondeu, lembrando-se das palavras de sua mãe. – Sempre serei.
Os rapazes concluíram o plano deles. Foram almoçar num lugar novo, aproveitando cada segundo como nunca antes. Yoongi nunca havia apreciado tanto o mundo onde vivia; cada toque e sensação; cada voz escutada e respiração que fazia o seu coração bater mais forte e compassadamente.
Apreciava a companhia dos amores de sua vida ali, Hoseok e Namjoon; duas pessoas que também o amavam incondicionalmente. Ele faria tudo por eles, até mesmo abandonar a garantia de felicidade eterna – e assim o fez –, somente para ter momentos efêmeros em procura dessa felicidade junto a eles.
Eles viveriam juntos para sempre, nas condições permitidas. Yoongi não se sentia mal por saber que tudo aquilo acabaria um dia. Pelo contrário, ele abraçava aquilo e entendia que fazia parte de simplesmente ser humano. E ele iria aproveitar cada dia, cada minuto, cada segundo junto a eles. Sendo a pessoa mais feliz do mundo, e dando tudo de si para que eles fossem igualmente felizes em qualquer lugar. Que fosse em uma viagem, honrando o título de jovens aventureiros ou até mesmo dentro de casa, entrelaçados ao dividir um sofá.
Toda a vida se passaria por um caminho de flores. E estas flores poderiam ser cortadas; terem suas pétalas arrancadas. As flores poderiam morrer.
Mas Yoongi daria o seu melhor para regá-las sempre que necessário, e se precisasse, ele mesmo plantaria novas delas com toda paciência...
até que este caminho seja florido novamente.
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