Me recordo de olhar seu rosto, de passar a ponta dos dedos pelo seus contornos e perguntar aos deuses como alguém tão perfeito pode, mesmo que por um único segundo, olhar para mim. Ele sem dúvida foi um presente divino, um presente celestial. Lembro-me do perfume leve de chocolate que seus cabelos soltavam sempre que eu emaranhava meus dedos neles. Eu amo o cheiro daquele shampoo barato que ele sempre usou. O modo com que o sol timidamente adentrava entre as cortinas do meu quarto, beijando a pele dele, quase como se tivesse ciúmes de todos os beijos que eu dava em seu peito e quisesse competir pela atenção dele. Sua pele brilhava com a luz natural.
O nosso café da manhã era sempre o mesmo, ovos mexidos que ele fazia e a vitamina de morango que eu fazia e que ele tanto amava. Segundo o mesmo, minha vitamina tinha o sabor doce como o yogurt que ele costumava tomar quando pequeno. Eu nunca o questionei sobre se isso era algo positivo ou não, por dedução achava que aquele sentimento nostálgico provocado nele era algo bom. A cozinha ficava quase que a manhã toda perfumada com o cheiro da minha vitamina, se misturando com um aroma leve do defumado do bacon que ele colocava em pequenos cubos no meio dos ovos. Era o meu momento favorito dentre todos que passamos juntos. Estar ali com ele fazia parecer que o mundo havia parado para observar a gente, para ver o nosso amor e nossas caricias sutis na mão um do outro enquanto comíamos.
Um dia, durante o nosso café, perguntei a ele qual era sua comida favorita. Ele sorriu com seus dentes aparecendo em uma fina linha entre seus lábios e respondeu que não tinha uma comida favorita pois todas as comidas que já havia provado eram maravilhosas, então ele não conseguia escolher uma favorita. Eu ri, falando que era impossível ele ter gostado de todas as coisas que já havia provado. Ele não rebateu minha afirmação, apenas me fez a mesma pergunta. Demorei alguns segundos para achar a resposta em minha mente. Manju Doce. Ele estranhou minha resposta, acho que não esperava que fosse algo tão simples. Expliquei que costumava comer muito manju doce quando era pequeno pois tive uma vizinha japonesa que sempre me dava um manju sempre que saía para ir a escola. Era uma senhorinha viúva e sem netos. Me lembro dele sorrir e comentar que eu deveria ter sido uma criança muito fofa. Não respondi.
Por que essa conversa ficou tão marcada em minha memória? Porque foi ali a primeira vez que percebi como ele tinha dificuldades em fazer escolhas. Aquele foi o primeiro sinal, dos vários que viriam a seguir, de uma incapacidade de fazer simples escolhas. Talvez aquele dia tenha sido o começo da ruína de nosso relacionamento. O fim não foi totalmente por minha culpa ou por culpa dele. Pergunto-me se essa insegurança não existisse, se nós estaríamos juntos ainda. Se essa dificuldade dele em tomar decisões era mesmo um dos motivos da nossa separação. Eu nunca cheguei a uma resposta definitiva para nenhuma das milhares de perguntas que eu me faço diariamente.
A ruína começou a ficar mais clara no natal passado, mais especificamente na noite da véspera de natal. Havíamos combinado de passar o natal juntos, já que nenhum de nós dois tínhamos família na cidade e muito menos vontade de passar o natal ouvindo familiares questionando a nossa sexualidade a cada segundo da noite. Iriamos nos encontrar perto da meia noite em meu apartamento, ele precisava resolver alguns assuntos do trabalho naquela manhã então precisou passar o dia em seu escritório. Eu havia preparado um lindíssimo peru, que havia perfumado o apartamento todo com aquele cheiro maravilhoso, e algumas outras comidas. A mesa estava perfeitamente montada e organizada. Estava animado, aquele seria o nosso primeiro natal junto.
Ele havia ficado de trazer uma sobremesa para nós, segundo ele, a sua torta de maçã era deliciosa e fazia qualquer um se apaixonar. Eu não duvidava disso, qualquer coisa que ele fizesse era apaixonante. Passava da meia noite, eu já havia ligado cinco vezes para seu celular e em nenhuma das vezes ele me atendeu. Pensei que pudesse ter acontecido alguma emergência com relação ao seu trabalho ou então ele apenas havia se atrasado um pouco fazendo a torta. Duas horas da madrugada eu já estava sentado no meu sofá, com uma taça de vinho, bebendo enquanto observava a neve cair mais intensamente lá fora. A comida estava fria, se quer cortei o peru, não comi uma migalha se quer daquela ave que passei a tarde toda preparando.
Desisti de ligar para ele na vigésima tentativa, então fiquei tomando o vinho até cair no sono, ali no sofá mesmo, manchando meu tapete com o vinho ao deixar a taça cair quando o sono chegou. Fique ali até o sol aparecer e iluminar toda a minha sala. A primeira coisa que fiz foi olhar meu celular, nenhuma única mensagem ou chamada perdida. Me levantei e guardei toda a comida na geladeira. Aquela manhã parecia mais fria que a noite anterior, tanto que me recordo de ter sentido um calafrio subir minha espinha ao pisar no chão gelado do apartamento. E realmente a manhã estava mais fria que a noite de véspera, naquele dia havia-se batido o recorde de temperatura, foi a manhã mais gelada dos últimos cinco anos.
No horário do almoço, enquanto comia um pedaço generoso do peru da noite anterior, a campainha tocou. Deixei o prato na mesa de centro e rastejei os pés até a porta. Olhando pelo olho mágico pude vê-lo do outro lado da porta, em pé, enrolado em um cachecol rosa. Respirei fundo antes de abrir a porta. Não sorri para ele, assim como ele não sorriu para mim. Ele tentou se justificar ali, mas eu não deixei, o puxei para dentro pois a corrente de ar que vinha do corredor estava me deixando com frio. Ele tirou os sapatos molhados da neve e tirou o seu casaco mais pesado e seu cachecol. Eu me encostei na porta, enquanto o olhava sério. Não disse uma palavra, não mudei minha expressão fechada um segundo se quer. Estava extremamente magoado e ele sabia disso. A justificativa dele foi de que havia dormido enquanto trabalhava e seu celular estava no silencioso, por isso não ouviu nenhuma de minhas ligações. Ele nunca deixava o celular no silencioso, recordo-me de pensar naquele dia. Ele me mostrou uma foto da sua torta, ainda crua, dentro do forno, para provar de que havia realmente se preparado para vir, mas como dormiu, se esqueceu até de colocar a torta para assar.
Eu acreditei nele, afinal ele poderia realmente ter dormido, andava cansado por causa do trabalho nos dias anteriores ao natal. E bem, ele tinha uma “prova” daquilo. Então no final, acabamos comendo a ceia no almoço e passamos o resto daquele dia assistindo os filmes antigos de natal que passava na televisão. Mas eu fiquei a tarde toda pensando na justificativa dele. Eu acho que já sentia naquele momento de que algo estava errado.
Depois daquele natal ainda passamos o ano novo juntos, porém mais incidentes como aquele da véspera. Tudo pareceu tranquilo até alguns dias antes do meu aniversário, em abril, ele disse que teria de ir em uma viagem a trabalho para o Canadá, disse que passaria apenas três dias e voltaria no dia anterior ao meu aniversário para podermos jantar juntos em um dos restaurantes que mais gosto na cidade, um que serve uma comida chinesa maravilhosa que me faz lembrar muito de casa. Ele disse que talvez não atendesse muito o celular pois ficaria o dia todo em reunião, então era difícil ele conseguir sair para me atender. Eu disse a ele que ligaria apenas no final da tarde e durante o almoço.
Uma parte de mim sentiu que algo iria dar errado, uma pequena parte de mim sabia dessa possibilidade, mas eu ignorei na época. Eu não queria acreditar na época. Ele não atendeu minhas ligações, nenhuma delas, ele também não voltou em dois dias. Ele ficou uma semana lá. Uma semana e se quer me mandou uma mensagem avisando o porquê ou para me tranquilizar. Fiquei todos aqueles dias sem conseguir dormir direito, pensando no pior, imaginando que ele havia sofrido algum acidente. Cheguei a pesquisar em sites de notícias se havia acontecido algum acidente de avião, trem, carro, qualquer coisa. Nada.
E assim como na véspera de natal, uma hora ele tocou minha campainha, entrou e eu não falei nada. Ele deu uma justificativa que não fez o menor sentido, mas aquilo não foi o que mais me machucou, o que mais me doeu foi ver nos olhos dele que ele estava mentindo. E ele percebeu que eu sabia, mesmo assim insistiu na desculpa esfarrapada. Eu dei um tapa na cara dele. E sem dizer uma palavra, o empurrei por a fora, batendo a mesma com tanta força que o quadro pendurado na parede ao lado caiu no chão. Ele não chamou meu nome, não bateu na porta, não fez nada além de ir embora sem insistir.
Naquela época ficamos duas semanas sem nos falar, eu não liguei ou mandei mensagem, ele também não. E novamente, pela terceira vez, ele simplesmente apareceu em meu apartamento, tocando a campainha. Mas dessa vez ele tinha uma caixa em suas mãos. Quando abri a porta e o olhei, ele sorriu fraco, apenas mostrando um pouco de seus dentes. Maldito sorriso. Deixei que ele entrasse. Nós conversamos, ele pediu desculpas e eu, como um idiota que sou, aceitei. Mas depois daquilo, eu já não confiava mais nele.
Passamos três meses sem mais conflitos, mas já não era a mesma coisa. Eu continuava o amando? Sim, eu o amo até hoje. Mas ele não me amava e eu sabia disso, porém era mais confortável na época ficar naquele relacionamento falido. Os conflitos seguintes eram basicamente a mesma coisa, ele sumiu, não atendia minhas ligações, aparecia na minha porta, dava uma desculpa esfarrapada e eu o aceitava de volta. Esse foi meu erro, ter aceitado ele de volta, aquilo só contribuiu para tudo terminar da forma que terminou. Se eu tivesse aberto mão dele, tudo teria terminado de forma menos dolorosa.
Uma noite, já perto do meio do ano, eu finalmente descobri tudo que estava acontecendo com ele. Havíamos marcado de jantarmos juntos, eu já sabia que ele não iria aparecer, então decidi ir até seu apartamento e tentar obter alguma resposta sincera dele, sem mais mentiras furadas. Entrei no prédio digitando a senha que um dia ele me contou qual era, entrei no elevador já sentindo meu estomago se revirando, eu sabia que algo iria acontecer e temia isso. Quando o elevador parou no quinto andar eu sai, caminhando em passos muito lentos até a porta de seu apartamento. Busco em meus bolsos a chave da porta. Ele havia me dado uma cópia quando fizemos seis meses de relacionamento, muito antes do natal passado. Coloquei a chave na fechadura, destrancando devagar a porta.
Quando nosso relacionamento ficou sério eu e ele decidimos que manteríamos nossos apartamentos individuais para caso algo acontecesse, então assim poderíamos manter certa privacidade e nos precaver de futuros conflitos em uma possível separação. Mas nós quase nunca ficamos em seu apartamento, tanto que eu, naquela época, havia visitado sua casa pouco mais de cinco vezes, enquanto eu não poderia se quer contar quantas vezes ele foi até minha casa.
Empurrei a porta devagar, ela não emitiu um som se quer, dei um passo para dentro do apartamento. Imediatamente senti um cheiro forte de lavanda. Ele odiava lavanda, pelo que havia me dito a algum tempo. Dois passos. Escutei uma música tocando, não muito alto, parecia hip-hop. Deixo a chave em cima da mesa que ficava ao lado da porta. Adentro um pouco mais no apartamento. Olho a cozinha, estava vazia. Vejo apenas uma vela acesa em cima da mesa de jantar, era uma vela aromática, lavanda. Caminho pela sala, haviam duas taças na mesa de centro, uma delas cheia até a metade com um vinho tinto. Parei imediatamente ao ouvir um ruído vindo do quarto. Olho para a porta imediatamente. A porta grande, branca e de correr. Me aproximo devagar, estendendo a mão e criando coragem para arrastá-la. Me recordo de pensar, naquele instante, das manhãs em que acordava em nossa cama, com ele ao meu lado, me lembro do seu rosto iluminado pelo sol e de passar o dedo pela linha de seu maxilar até o sei queixo. Foram aquelas as imagens que passaram em minha mente nos segundos antes de abrir aquela porta.
Sua cama estava bagunçada, os lençóis todos no chão e alguns travesseiros também. O cheiro de lavanda também estava presente no seu quarto. Algumas roupas coloridas estavam espalhadas pelo chão, por todo o quarto. A cortina estava aberta, as luzes da cidade eram as únicas que iluminavam o quarto. A cama alta, de tamanho king size, estava se movendo com certo vigor. Deitada nela estava ele, nu e de costas para a porta. Debaixo dele estava uma mulher. Uma mulher que eu jamais tinha visto em toda minha vida. Ela estava com os olhos fechados, sua boca estava tampada por uma das mãos deles, não deixando que seus gemidos saíssem. Eu fiquei ali parado, sem reação alguma. De todas as pessoas que eu imaginei estar naquela cama com ele, jamais imaginei que fosse uma mulher. Ele havia me dito, logo que nos conhecemos, que era gay. Mas isso também não importou tanto assim naquele momento, era ele, com outra pessoa, transando enquanto deveria estar jantando comigo no meu restaurante favorito.
Ouvi o grito da mulher, ela imediatamente se cobriu com um lençol e o empurrou para sair de cima dela. Ele então me viu ali. Assustado também se cobriu. Não falamos nada, ninguém ali emitiu qualquer som por pelo menos três minutos. Me recordo de perceber roupas femininas, roupas demais para uma noite só, amontoadas em cima da cadeira e da porta do guarda-roupa dele. Quando fiz menção à me retirar, ele se levantou, pegando sua cueca no chão e vestindo ela aos tropeços. Olhei uma última vez para o rosto da mulher, ela não disse nada, apenas desviou o olhar do meu. Me viro, saindo dali.
– Zhoumi. Me chamou.
Apressei meu passo até a porta de entrada. Ele segura meu braço, me forçando a virar para ele. Olho em seus olhos.
– Você não tem um favorito, não é? – pergunto o olhando – Não foi capaz de escolher entre mim e ela. Por isso mentiu para mim até hoje.
Ele tentou falar algo, nada saiu de sua boca.
– A quanto tempo? A quanto tempo não me ama mais?
– Eu te amo, Zhoumi.
– Chega de mentiras. Gritei.
Ele se assustou com minha repentina raiva.
Foi ai, nesse momento, que tudo terminou. Uma decisão errada que tomei e ele também acabou com tudo de vez. Foi tudo tão rápido que ainda hoje, anos depois, é difícil para mim entender como tudo aconteceu. Eu o empurrei, empurrei com toda a força que tinha em mim, ele se desequilibrou, tropeçando em seus próprios pés e caindo para trás. Um barulho alto de pancada contra a madeira, vidro se partindo, um gemido de dor e sangue por todos os lados no chão. E lá estava ele, caído semi nu no chão, com vidro por todos os lados e um corte grande na cabeça. Me afasto, quase tropeçando. Busco meu celular em meus bolso, digito o número da emergência com pressa, passo o endereço do apartamento dele. Largo o celular no chão e me aproximo dele, me abaixando, não sabia o que fazer, tinha medo de toca-lo.
– He...Henry.
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