Lydia abriu os seus olhos vagarosamente. A escuridão noturna emanava solidão, mas a sua audição insistia em dizer-lhe outra coisa, tentado alertá-la sobre algo que a sua mente recém-desperta não compreendia. Espere, que som é esse?, pensou enquanto tentava atrair certa lucidez para si. Estaria ficando louca? Não. Aquilo não podia ser loucura. Não era loucura. Alguém realmente estava tocando o seu o piano no andar inferior. Moonlight Sonata, que era uma das composições mais famosas de Ludwig van Beethoven, ecoava por toda sua mansão, preenchendo os cômodos solitários com as suas notas graciosas. O som era agradável aos ouvidos de Lydia, que ainda sentia o seu corpo inebriado devido ao sono.
Após levantar-se da sua cama de maneira trôpega, a ruiva calçou o seu par de pantufas felpudas, o que criou um ótimo contraste com o seu pijama azul repleto de bolinhas brancas. Enquanto caminhava em direção à porta de seu quarto, Lydia pensou que aquele era um ótimo traje para enfrentar um assaltante enquanto utilizava os seus golpes de Jiu-Jitsu. Mas por ironia do destino, ela percebeu que não precisaria mais enfrentar ninguém já que assim que alcançou a maçaneta da porta o som do piano cessou, fazendo com que o silêncio pairasse pelo ar da mesma forma que pairava durante todas as noites. Mas esse silêncio não durou muito. Assim que retraiu a sua mão da maçaneta, Lydia foi surpreendida pelo toque de seu celular que estava depositado sobre o criado mudo do espaçoso quarto. Um pouco hesitante, a ruiva trancou a porta e caminhou até o móvel, pegando o seu iPhone assim que o alcançou. A palavra UNKNOWN se destacava na tela do aparelho.
— Alô? — disse assim que atendeu a ligação e se sentou na cama macia.
— Olá, Lydia — uma voz extremamente irritante e aguda atingiu a audição da ruiva, mas por baixo de todos aqueles ruídos, Lydia pôde reconhecer um pequeno resquício de uma voz que conhecia muito bem. — Está tendo uma boa noite?
— Por que a sua voz está estranha? — a ruiva perguntou enquanto acomodava um travesseiro em seu colo, ignorando a pergunta que havia recebido.
— Deve ser uma conexão ruim — concluiu rapidamente. — Melhorou um pouco?
— Ainda está ruim, mas eu tenho outras coisas com o que me preocupar — murmurou Lydia. — Acho que alguém invadiu a minha casa. Preciso ligar para a polícia.
— Não, espere — sussurrou de forma manhosa, fazendo com que os ruídos que alteravam a sua voz se intensificassem ainda mais. — Eu não consigo parar de pensar em você. Você não saiu de meus pensamentos a noite toda.
— Já que é assim, deve estar passando por uma noite entediante — observou Lydia.
— Por que você faz isso? — perguntou em meio a um ruído. — Se preocupa tanto com os problemas de pessoas como Newton Sangster que acaba se esquecendo de si mesma e se colocando para baixo.
Lydia suspirou.
— Amor, eu preciso desligar — desconversou rapidamente. — Tenho que ligar para a polícia. Tem alguém na minha casa.
— E se eu te disser que esse alguém sou eu? — perguntou vagarosamente, dando uma ênfase desnecessária para cada palavra proferida.
Lydia sentiu uma onda de raiva percorrer pelo seu corpo. Por que ela havia feito aquilo?
— Brenda, isso não é engraçado! — bradou Lydia. — Por que invadiu a minha casa a essa hora da noite? São duas da manhã!
— Eu queria te ver — sussurrou em resposta. — E ainda estou aqui te esperando.
— Okay, se isso for uma brincadeira tem que ser significativamente menos assustadora — sugeriu a ruiva. — Não pode pegar as chaves que eu te dei para invadir a minha casa durante a noite e depois começar a tocar o meu piano!
— Por que não? — perguntou. — Estava com saudades. Queria fazer uma surpresa para você.
— E essa surpresa envolve me ligar de um número desconhecido? — Lydia indagou com desdém.
-— Um amigo me emprestou esse celular — justificou. — O meu está sem bateria.
— Certo, e onde você está agora? — a ruiva perguntou curiosa.
— Eu estou em todos os lugares que você puder imaginar — sussurrou em meio a um ruído, o que fez com que Lydia se arrepiasse involuntariamente.
— Brenda, você está me assustando — murmurou a jovem.
— Só estou brincando — disse enquanto ria. — Venha até aqui em baixo. É lindo observar a noite pela janela do seu consultório.
— Okay, eu vou descer até aí — disse Lydia. — Só vou encerrar a liga...
— Não. Não desligue — pediu com a voz rouca. — Eu gosto de ficar ouvindo a sua respiração.
— Isso é assustadoramente estranho — observou a ruiva.
— O que posso dizer? Você me deixa louca — murmurou. — Agora desça. Quero ver você.
Lydia não a contrariou. Segurando o seu celular com a mão esquerda, a ruiva se levantou e foi até a porta, destrancando-a rapidamente. Um pouco hesitante, Lydia saiu do quarto. Enquanto caminhava por uma longa extensão de corredores escuros, a jovem sentiu um calafrio percorrer por todo o seu corpo. Mas por que estava com medo? Estava indo se encontrar com a sua namorada. A única pessoa que a compreendia de verdade.
— Eu queria tanto contar para a minha família sobre você, Brenda — Lydia sussurrou enquanto descia os degraus de madeira da escada de sua casa. — Mas ela é formada por uma infestação de putas católicas. Pelo menos você não precisa se preocupar com isso.
— Acredite em mim quando digo que existe uma infestação de putas na minha vida também — sussurrou.
Lydia se calou. Não sabia mais o que dizer. Quando terminou de descer a escada, a ruiva sentiu algo novo tomar conta de si. Era uma sensação estranha, como se todos os móveis de sua casa ganhassem vida durante a noite e ela só houvesse descobrido isso agora.
— Onde você está, Bren? — perguntou com a respiração falha.
— No seu consultório — sussurrou em resposta. — Venha até mim.
Por um instante, Lydia desejou correr e se trancar em seu quarto, tentando se manter em segurança de algo que não conseguia compreender muito bem o que era. Por que estava se sentindo assim? Era Brenda. Apenas Brenda e ninguém mais. Afinal, quem poderia ser? Ninguém sabia do relacionamento das duas. Pelo menos era nisso que acreditava. Caminhando vagarosamente, a ruiva foi até ao seu consultório. Quando chegou ao local, uma onda de confusão a atingiu. O cômodo estava vazio.
— Brenda, você não está aqui — observou. — Está querendo me assustar?
— Estou aqui sim — disse de maneira rápida; a voz mantendo-se como um ruído irritante. — E eu não quero assustar você. Só quero te pedir um favor.
— Que favor? — indagou Lydia.
— Toque piano para mim — pediu.
— Por que quer que eu toque? — perguntou a ruiva, arqueando as suas sobrancelhas.
— Gosto de ouvir você tocando — esclareceu. — Agora chega de perguntas. Apenas toque.
— Certo, mas o que quer que eu toque? — indagou com curiosidade.
— Marche Funèbre de Frédéric Chopin — sibilou a outra após alguns instantes.
— Essa música é assustadora — murmurou Lydia.
— Eu gosto de coisas assustadoras — sussurrou.
— Okay, Wes Craven versão lésbica — brincou a ruiva. — Vou desligar. Preciso das minhas mãos livres para tocar.
— Vá em frente — disse em meio a ruídos. — Vejo você daqui a pouco.
Sorrindo, Lydia encerrou a ligação e guardou o celular no bolso da calça de seu pijama de bolinhas. Caminhando a passos largos, a ruiva chegou até o seu piano e se sentou diante dele. Fazia muito tempo desde a última vez que tocara Marche Funèbre, mas ainda se lembrava muito bem de como tocar. Depois que aprendia algo, ela nunca mais esquecia. Enquanto estalava os seus dedos, Lydia concluiu que o pedido feito por Brenda realmente havia sido um pouco estranho. A ruiva só não a havia contrariado porque fazia muito tempo que Brenda não a ouvia tocar. Queria presentear a namorada de alguma forma.
Suspirando fundo, Lydia desceu as suas mãos até as teclas do piano e se pôs a pressioná-las, uma por uma. As notas fluíam em sua mente, fazendo com que a ruiva se perdesse em meio a música. Após fechar os seus olhos, Lydia sorriu ao se lembrar do dia em que ela começara a ensinar Brenda a tocar piano. A morena havia aprendido rapidamente, o que era praticamente uma dádiva. Desviando-se um pouco de seus devaneios e colocando toda a sua concentração no movimento de seus dedos, a ruiva se perguntou onde Brenda estava. Será que ela realmente estava ali?
Um segundo. Esse foi o tempo necessário para Lydia receber a sua resposta e sentir o seu pescoço arrebentar. Ansiando por oxigênio, a ruiva levou as suas mãos até a sua garganta, o que definitivamente não foi uma boa escolha. Os seus dedos se cortaram no exato instante em que tocaram na protuberância afiada que escapulia por sua garganta. Lydia sentiu o seu corpo esmorecer, o que fez com que ela caísse no chão gélido. Guiando a sua mão por toda a região de seu pescoço, a ruiva percebeu que havia uma faca atravessada ali. Sendo presenteada por uma onda crescente de desespero, a jovem sentiu os seus batimentos cardíacos desacelerarem enquanto um suor frio escapava por seu corpo.
Mergulhada em uma poça formada pelo seu próprio sangue, Lydia percebeu alguém se aproximar ao seu lado, movendo-se com passos graciosos. A pessoa se ajoelhou, dando uma visão privilegiada de sua aparência para a ruiva. Era ele. Era Vince Maddox. Pelo menos era a máscara dele. Lydia queria gritar, mas não podia. Não conseguia nem ao menos respirar. Em questão de poucos segundos, tudo ao seu redor desmoronou, de forma lenta e torturante. As coisas pareciam mergulhar na poça de seu próprio sangue, transformando-se gradativamente em uma imensidão negra.
***
Inspira. Expira. Inspira. Expira...
Mentalmente, Newt repetia essas palavras de forma sequencial, fazendo com que elas se tornassem reais em atos involuntários. Suspirando fundo, o loiro abriu os seus olhos. Olhando ao seu redor, Newt percebeu que tudo aparentava estar mórbido e sem vida. O seu celular encontrava-se repousado ao seu lado, mas o loiro não queria nem mais olhar para ele. Não queria mais olhar para as notícias sensacionalistas que anunciavam o brutal assassinato de Lydia Martin e muito menos para aquele vídeo.
Horas mais cedo, após ter lido a matéria que relatava a morte de Lydia, Sonya o havia ligado e pedido para que ele entrasse no Twitter da ruiva. Se pudesse voltar no tempo, Newt não teria cometido esse erro. Quem quer que fosse o assassino, havia utilizado o perfil de Lydia para postar outro vídeo, que se tornou viral em questão de segundos. Algumas cenas das quais assistira ainda invadiam a mente de Newt hora ou outra. Eram cenas como Lydia e Brenda se beijando em meio a risos, carícias trocadas pelas duas enquanto tocavam piano, e o pior de tudo: o assassino presenteando o pescoço de Lydia com uma faca pontiaguda e mortal. Perdido em seus próprios pensamentos, Newt concluiu que o vídeo já devia ter sido removido. Mas isso não mudava os fatos.
O corpo da ruiva havia sido encontrado na manhã daquele sábado pela velha Maryse, a sua empregada. Mais uma vez não havia nenhum sinal de arrombamento e muito menos uma câmera escondida no cômodo onde o vídeo de Brenda e Lydia havia sido gravado. Estava acontecendo novamente. Era mesma coisa que ocorrera na casa de Trina: alguém havia gravado e divulgado o que aparentemente era o segredo de uma pessoa depois de mata-la de uma maneira brutal. Newt pensou se era realmente Zart quem estava por trás de tudo aquilo. O loiro se sentiu confuso ao pensar naquela possibilidade. Por que Zart estaria fazendo essas coisas?
Sentindo a sua cabeça latejar, Newt se levantou rapidamente e se vestiu com uma roupa qualquer que encontrou em seu armário. Precisava visitar uma pessoa. Após concluir que estava vestido de uma maneira socialmente aceitável, o loiro pegou a chave de seu carro e saiu do quarto, pondo-se a percorrer o caminho já decorado por seu cérebro depois de tantos anos morando ali. Enquanto descia as escadas, Newt escutou algo que o deixou um pouco surpreso. Estavam com uma visita e nem havia sido informado sobre aquilo.
— Você ainda não entendeu, Sangster? — a voz irritada do prefeito Evan ecoava pela casa, vinda da cozinha. — Temos um serial killer em nossas mãos! Você tem que resolver isso logo. E se não fizer o que eu estou mandando, garanto que eu mesmo irei cortar a sua cabeça e usá-la na decoração do Halloween em minha casa!
— Essa proposta me parece ser irrecusável — brincou Janson, sem elevar o tom de voz.
Fez-se um instante de silêncio.
— Eu sei que estou parecendo um pouco rude, velho amigo — murmurou o prefeito, parecendo estar um pouco mais calmo para Newt, que escutava toda a conversa parado no último degrau. — Mas não podemos permitir que sangue inocente manche a história dessa cidade mais uma vez. Não podemos ficar conhecidos como os moradores da Assassilândia. Nós temos uma ciclovia, caralho!
Newt se sentiu um pouco culpado pelo sorriso que surgiu em sua face, mas ele não pôde evitar. Em meio a tanto caos, o prefeito estava preocupado com a reputação da “pacata” Riverwood. Esforçando-se para fazer o mínimo de barulho possível, o loiro saiu de sua casa e caminhou em direção ao seu carro. Tentando se livrar da angústia que dominava o seu interior, Newt ligou o rádio assim que entrou no automóvel. Mas isso foi uma tentativa errônea. A voz afiada e perspicaz de Teresa Howard escapulia pelos alto-falantes, lançando para qualquer ouvinte um turbilhão de teorias sobre quem era o temido assassino. Newt desligou sem nem ao menos pensar duas vezes e deu partida em seu carro, guindo-o por entre as ruas praticamente vazias da cidade.
Quando chegou ao seu destino, Newt suspirou fundo. Após estacionar o carro, o loiro saiu do veículo e inspirou o ar gélido daquela tarde de outono, tentando atrair certa calma para si. Tomando novamente uma coragem que pensara não possuir desde a última noite, Newt caminhou em direção à porta da casa de Brenda. Antes mesmo que tocasse a campainha, a estrutura de madeira foi aberta em um movimento brusco, dando passagem para alguém que esbarrou em Newt sem nenhuma delicadeza.
— Hey, vá mais devagar, Thomas! — bufou Newt ao avistar o moreno parado à sua frente. — Você quase me derrubou no chão.
— Desculpe — disse rapidamente. — O que está fazendo aqui?
— Vim visitar a Brenda — respondeu enquanto suspirava.
— Não pode entrar — o moreno disse enquanto fitava o outro garoto. — A Brenda não quer ver ninguém. Ela me botou para fora e quase acertou a minha cabeça com um unicórnio de cristal.
Newt sentiu uma imensa vontade de revirar os olhos, mas não o fez.
— Não pode me impedir de entrar — Newt murmurou irritado enquanto cruzava os seus braços.
— Posso sim — rebateu Thomas, sem elevar o tom de voz. — Não entrar nessa casa é a melhor opção para você.
— Desde quando sabe o que é melhor para mim?! — Newt indagou, exaltando-se repentinamente, o que fez com que se perguntasse sobre a origem daquela irritação desnecessária. Com certeza aquilo era uma consequência dos últimos acontecimentos.
— Desde o dia em que te encontrei no banheiro da escola — esclareceu Thomas, dando de ombros.
— Nós ficamos apenas alguns minutos sozinhos no mesmo lugar e já acha que sabe o que é melhor para mim? — Newt perguntou com desdém. — Você não passa de mais um estranho na minha vida!
— Primeiro, eu não acho nada. Eu tenho certeza — começou Thomas. — E segundo, eu não sou um estranho. Sou apenas estranho.
— Okay, Doctor Stranger — brincou Newt. — Não vai mesmo me deixar entrar?
— Não — sussurrou em resposta. — Brenda está sofrendo. De verdade. Ela não quer nem a companhia dos pais. Mas na verdade, eu acho que ela está com medo deles. Eles não sabiam que a filha era lésbica. Descobriram tudo por meio daquele vídeo viral.
Newt sentiu uma sensação estranha percorrer por seu corpo. Uma sensação que não sentia há muito tempo.
— Uma vez ela me disse que o seu segundo maior medo era contar para os pais sobre a sua verdadeira orientação sexual — Newt murmurou, percebendo que a sua voz soou mais preocupada do que esperava. — Eu preciso vê-la. Me deixe entrar.
— Newt, por favor, não insista — Thomas pediu com a expressão serena. — Esse não é o melhor momento para você tentar se reaproximar de Brenda. Ela ainda sente um pouco de rancor por você. Não complique as coisas ainda mais. Vá com calma.
Newt sentiu os seus olhos marejarem. Escutar que Brenda ainda sentia rancor dele o deixava triste. E isso sem contar que o loiro tinha a estranha sensação de que tudo o que estava acontecendo era por sua culpa.
— Droga, eu faço tudo errado! — exclamou irritado enquanto cerrava os punhos e voltava para o seu carro.
— Newt, espere! — Thomas correu atrás do loiro, segurando o seu braço.
— Me solta, Thomas O’Brien! — Newt sibilou exaltado, puxando o seu braço com uma força desnecessária.
— Para onde você está indo? — o moreno perguntou enquanto franzia o cenho.
— Eu não sei — disse com a voz falha. — Só... Só me deixe sozinho. Preciso pensar.
Apressado, Newt entrou em seu carro e partiu sem nem ao menos olhar para trás. O loiro queria se afastar de tudo e de todos. Queria se sentir um pouco só, livre de todos os problemas e dos últimos acontecimentos. Enquanto acelerava o seu veículo, Newt descobriu exatamente para onde precisava ir. Já estava com saudades daquele lugar.
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