Ainda era muito cedo, mas Bane já estava acordado. Quando seu senhor despertava, três pisos acima, ele imediatamente despertava também. Ainda sentia o olho levemente inchado, mas não se importava. Poderia ter se curado com magia, mas preferia que o processo acontecesse naturalmente por uma única razão: o olho machucado o lembrava constantemente do nariz quebrado que proporcionou a Gideon.
Ainda não sabia como tinha feito isso, porque agora, depois de tudo, só de pensar em machucar seu senhor de alguma forma, sentia arrepios. Mas tinha feito. Uma parte de si resistia à servidão, ao cativeiro. E ele queria lembrar a si mesmo todos os dias, que sua vida não dependia exclusivamente de Alexander Gideon Lightwood.
Preguiçosamente esticou os dedos em direção ao archote, e um fogo se acendeu lá, iluminando o pequeno espaço do porão. Nesses meses, Bane tinha feito muitos progressos ali. Limpou o ambiente, para impedir a proliferação de ratos e baratas. Conseguiu que a cozinheira lhe arranjasse um grande pedaço de tecido velho, quase puído, o qual ele costurou à sua cama improvisada, após lavar nas áreas de serviço da Casa.
Sua mesinha agora contava com as quatro pernas, e não balançava precariamente mais. Além disso, tinha, por meio de magia, pregado alguns tocos de madeira pela parede, alternadamente, nos quais pendurava suas roupas. Quando, um mês atrás, Maxwell decidiu que queria de presente uma nova tina para tomar banho, Bane tinha furtado (e não se envergonhava disto) a que ele dispensou, e agora tinha em seu quarto um lugar para se lavar.
Apesar de saber que nunca se sentiria bem nesta Casa, esse porão era o lugar onde mais se sentia confortável. A madrugada estava fria e ele se concentrou na água gelada dentro da tina, murmurando um encantamento (Calidae aqua). Enfiou uma mão dentro do líquido e ficou satisfeito. Estava ficando bom nisso de esquentar água para tomar banho. Na primeira vez que tentou, tinha ficado escaldante.
Passou a camiseta puída pelos ombros e braços, estremecendo com o contato do ar frio em sua pele.. Rapidamente se despiu dos calções e pulou dentro da tina, espalhando água pelo chão. O tamanho dela era adequado para Maxwell, mas ficava um pouco apertado para ele. Mas não podia reclamar. Não se pode ter tudo nesta vida.
Quase tudo que tinha ali fora roubado e ele não sentia nenhum remorso. Pegou a barra de sabão de lavanda, que ele deixava sobre um tronco de árvore relativamente plano que encontrara. Ele ardia na pele, mas deixava um cheiro bom depois. Esfregou o corpo com a bucha vegetal (roubada, sim senhor) e quando se sentiu limpo, deixou o sabão de lado e tentou afundar na água, para se enxaguar. O tamanho da tina não permitia, mas bom, era o melhor que tinha. Ainda dentro da água, esticou a mão para a cabaça de casca de abóbora seca, onde guardava alecrim queimado e folhas de hortelã. Mascou-as e gargarejou com um pouco de água. Depois passou um palito afiado entre os dentes.
Era assim que cuidava da higiene bucal. Já tinha visto pessoas sofrendo com dores de dente. Podia se livrar disso com magia, mas preferia não chegar a esse ponto. Gideon, por outro lado, tinha uma escova para os dentes, feita com pelos de porco, trazida da China, e usava uma pasta à base de ervas aromáticas, encomendada em Londres. Quem tem dinheiro tem tudo, Bane pensou.
Saiu relutante da água morna e se enxugou com as roupas que tinha tirado. Vestiu uma calça de algodão grosseiro, amarrando-a com uma embira de tecido, calçou o único par de sapatos que tinha (alpercatas de couro já batido, que tinham pertencido a Gideon na adolescência), e pôs a túnica, também de algodão. Passou os dedos pelo cabelo rebelde (estava muito grande agora, tocando os ombros) e saiu pela pesada porta de ferro. Precisava estar a postos quando Gideon descesse as escadas.
Quando chegou ao pé da escada, contou até cinco e seu senhor apareceu no alto, elegantemente vestido, como sempre. Tinha descoberto esse jogo algumas semanas atrás. Gideon sempre chegava cinco segundo após ele. Ele vestia uma túnica de linho, preta e sapatos de couro. A calça de algodão, ao contrário da folgada que Bane usava, estava perfeitamente assentada, mostrando um pouco das coxas bem torneadas. Bane levantou os olhos das curvas de seu senhor e o encarou, sustentando o olhar o máximo que pôde. Notou, com certa surpresa, o choque de Gideon ao ver seu olho ainda inchado e depois, ele desviou o olhar, constrangido.
- Magnus Bane.
- Meu senhor…
- Meus pais precisam ir embora hoje, e uma viagem pelo Portal seria mais confortável para eles. E Max.
Ele caminhou para a cozinha e Magnus o seguiu.
- Como quiser, senhor.
Gideon assentiu, ainda sem olhar para o rosto de Magnus. Ao entrarem no grande espaço da cozinha, ele se dirigiu para o lugar onde costumava tomar o café da manhã (que já estava posto, para dois), e Magnus, lembrando-se da ordem de seu senhor, tocou levemente o braço da servente.
- Bom dia Aline. A partir de hoje eu volto a fazer as refeições com a criadagem - anunciou.
Gideon estacou, parecendo surpreso, mas depois sacudiu cabeça e continuou para sua mesa.
- Magnus - a mulher pequena o encarou, penalizada - Você perdeu algumas regalias hum? Como está esse olho rapaz?
-Nem me fale - ele revirou os olhos, mas parou no ato. Doía - Está doendo. Mas acontece. É um preço até razoável a se pagar para ter o prazer de quebrar o nariz de nosso senhorio. Aposto que muitas pessoas dariam muito mais que isso por esse pequeno prazer...
Aline pareceu chocada por um instante, mas depois caiu na risada. Magnus sorriu junto com ela. Ainda não era totalmente aceito ali, mas simpatizava com várias pessoas, e elas simpatizavam com ele. Aliviava muito a dor da servidão ter com quem sorrir. Podia sentir os olhos de Gideon sobre si, enquanto andava atrás de Aline e as pessoas o cumprimentavam.
Tinha sido proibido de conversar com a criadagem, mas não tinha sido proibido de responder quando eles iniciassem a conversa. Aparentemente, o jogo tinha virado, porque a única pessoa solitária naquele espaço era Gideon. Não ia comer tão bem quanto nos dias anteriores, refletiu enquanto pegava um pedaço de pão seco e café puro, mas pelo menos não precisaria lidar com os olhares inquisidores de Gideon sobre ele.
Cerca de duas semanas antes tinha notado que os olhares que este lhe dirigia. Como se estivesse estudando-o, ou tentando descobrir algum segredo. Magnus resistia ao impulso de perguntar se estava com o rosto sujo ou algo do tipo. Sentia um misto de emoções que o deixavam zonzo. A Ligação o fazia sentir o sangue ferver e o cérebro derreter com toda aquela atenção. Não podia impedir o coração de bater forte e o rosto de ficar vermelho. A atenção, cuidado e aprovação de Gideon era tudo que 99% de seu corpo queria.
Mas, uma parte muito pequena de si, sentia-se incomodada e coagida sob aquele olhar. Era um escravo, não tinha nenhum valor... Porque razões seu senhor estava lhe dando suas próprias roupas? Por que o convidada para comer de suas próprias refeições? Por que o olhava como se ele fosse interessante e digno de atenção? Havia algo que não compreendia ali. Gideon era muito contraditório. Seus olhos nadando em azul, demonstravam existir algo de humano dentro daquela casca de dureza e rigor, mas com outras ações, fazia Magnus se sentir um lixo.
Não o tocava se pudesse evitar, mas isso Magnus compreendia. O contato pele a pele entre eles era cheio de pequenos choques. Exceto durante a luta, onde ficou totalmente tomado pela raiva, tocar a pele de Gideon era um risco que Magnus também não queria correr. Ficaria viciado e então, seria totalmente destruído e subjugado. Terminou de comer e se despediu dos criados com um aceno de cabeça, indo postar-se à porta, para esperar Gideon terminar o café da manhã. Em segundos ele se levantou e Bane não pôde deixar de observar que sua comida parecia intocada.
O cheiro de Gideon se aproximando dele, era algo que definitivamente teria que superar algum dia.
- Feiticeiro - ele ainda evitava olhar seu rosto e Bane estava orgulhoso disso - Meus pais sairão após seu café da manhã, que será servido às nove horas da manhã. Você deve preparar o Portal até esse horário.
-Sim senhor - eles estavam agora caminhando pelo corredor que levava à biblioteca.
-Ontem eu lhe pedi a lista de coisas que você vai precisar para fazer seu trabalho.
Bane desviou os olhos das veias saltadas no antebraço do outro.
-Oh, claro - não estava esperando ter que entregar hoje, mas estava mesmo pronta em seu quarto - Um instante.
Se concentrou no pergaminho enrolado sobre sua mesinha e o evocou. O papel apareceu na mão de Gideon, que arqueou uma sobrancelha…
-Ah, eu sempre quis fazer isso - Magnus sorriu impulsivamente e Gideon o encarou, indefinido. Magnus pigarreou, constrangido - Sabe, a sobrancelha… erguer só uma…
O senhor sacudiu a cabeça e Magnus se calou. Céus, devia aprender a ficar mais quieto. Eles entraram na biblioteca e o nephilim se sentou confortavelmente atrás da imensa mesa de mogno, enquanto o feiticeiro esperava em pé. Enquanto o outro lia a lista, ele deu uma olhada pelo ambiente.
Já tinha entrado ali antes, mas sempre se surpreendia com a decoração de bom gosto, os livros antigos e preciosos nos quais ele nunca poderia pôr a mão. Magnus amava ler, desde quando era muito pequeno e os Irmãos do Silêncio o deixavam preso na biblioteca da Cidade dos Ossos de Londres. Isso era para que ele não atrapalhasse os serviços dos irmãos e acabou se tornando um bom hábito. Livros eram raros, e há alguns anos ele não punha a mão em nenhum.
-Um telescópio? - a voz de Gideon o tirou de suas divagações - É muito caro, para que você precisa de um telescópio?
-Para muitas coisas… saber com exatidão a posição das estrelas antes de uma batalha, por exemplo. As estrelas podem dizer se o evento vai ser favorável para nós ou não.
Gideon sacudiu a mão.
-Não poderei comprar - avisou - É muito caro, e eu prefiro confiar na minha habilidade do que confiar no que as estrelas dizem.
Magnus reprimiu o impulso de dar de ombros. Tinha escrito do que precisaria para fazer um trabalho de qualidade. Se o patrão ia querer isso ou não, já não era um problema seu.
-Como queira senhor…
-Agora as outras coisas, estarão com você até o final de semana.
-Sim, senhor.
-Você disse que já ergueu proteções ao redor da Casa.
-Sim, mas tem um ponto cego a oeste, onde o terreno faz divisa com a propriedade dos Wayland. Preciso conversar com Catarina, ela provavelmente protegeu a propriedade e eu não consigo penetrar a mágica dela, sem entrarmos em um acordo.
-Um feiticeiro não consegue quebrar a barreira protetiva de outro feiticeiro?
- Facilmente - Magnus suspirou - Mas seria uma imensa falta de respeito com Cat. Acredito que nosso intuito seja fazer acordos e não inimizades…
- Claro - Gideon se levantou e passou a mão pelos cabelos - Sobre isso, faça como achar mais adequado. Converse com ela.
Magnus olhou para o perfil iluminado de Gideon. A luz que começava a clarear o ambiente contornava seu nariz afilado, o corpo forte e alto. Às vezes ele era muito parecido com um anjo. E era a primeira vez que ele permitia que Bane fizesse o que achasse melhor.
- Sim, senhor.
Então, pela primeira vez desde que acordara, Gideon olhou diretamente para ele. Bane sentiu o sangue afluir para seu rosto, o coração batendo descompassado. Não podia negar… era viciado na atenção que seu senhor tão escassamente lhe dirigia.
- Venha até aqui - Gideon ordenou. E Bane foi. Sentia a energia pulsando entre eles, cada passo que dava para perto de Lightwood enviava correntes elétricas pelo seu corpo. Parou a alguns centímetros dele, encarando-o, ansioso.
- Por que não cuidou de seu olho? - a voz de Gideon baixou vários tons, era quase um sussurro. Bane não sabia o que responder. Não conseguia respirar com a intensidade do olhar do nephilim sobre si.
-Eu não sei, senhor… eu queria…
-O quê?
- Me lembrar de que resisto…
Sua voz saiu em um fiapo. Gideon ergueu a mão e ele se encolheu. Não queria que o senhor tocasse nele, não podia ficar ainda mais dependente.
- Eu não vou te machucar - Gideon disse, ao vê-lo se encolher - Eu apenas não gosto de olhar para isso.
Então ele tocou o supercílio de Bane com a ponta dos dedos, tão suavemente que parecia o bater de asas de uma borboleta. Bane soltou o ar que prendia, todas as células de seu corpo reagindo furiosamente ao toque. Então o senhor recolheu a mão e voltou a encarar seus olhos.
- Não vou te ordenar a curar isso - disse - Eu sei exatamente o que você quer afirmar ao deixá-lo se curar com o tempo. Você resiste sim, Bane. Mas precisamos entrar em um acordo.
Bane estava tentando não olhar para a forma como a boca dele se mexia enquanto ele falava. Fez um esforço enorme e olhou para os olhos dele. Havia intensidade ali.
- Um acordo ?
-Sim. - Gideon voltou a se encostar na mesa de mogno, cruzando os braços, fazendo os músculos do braço saltarem. Bane adorava a forma como as veias do braço dele eram saltadas. Pareciam caminhos. Para onde, era um mistério - Eu não quero ser cruel com você. Não quero ser injusto. Seria ideal que eu e você trabalhássemos juntos, afinal você é meu parceiro.
-Parceiro? - Bane se odiou por estar repetindo as últimas palavras de todas as frases de Gideon, mas não conseguia pensar em algo para dizer. Por que Gideon estava tão amistoso?
-Sim. Vamos lutar em muitas batalhas juntos ainda. Eu preciso de você.
Bane ficou calado. Seu cérebro estava derretendo. Não esperava isso.
-Eu conversei com Jace ontem - Gideon ia dizendo - E ele me deu algumas opções que achei extremas. Eu preferi conversar com você e chegar a um acordo. Do que você precisa para me ajudar, Bane?
-Como? - o feiticeiro estava aturdido - Você… o senhor quer negociar?
-Não vou poder comprar o telescópio, por exemplo, por que não tenho condições. Mas posso te oferecer um quarto mais confortável, todas as condições viáveis de trabalho… você pode sugerir alguma coisa…
-Uma noite de folga por semana - Bane sentiu as palavras saindo antes de pensar direito. Quis recolhê-las, mas já tinha dito. Gideon o encarava, curioso.
-A Marca não te deixaria ir longe…
-Eu sei… só quero... preciso me sentir livre…
Alguém bateu apressadamente na porta. Gideon o encarou por longos segundos, parecendo considerar o pedido.
-Depois conversamos sobre isso - ele disse por fim, e foi abrir a porta.
Bane sacudiu a cabeça enquanto Gideon se afastava. O que diabos estava acontecendo? Que conversa estranha foi essa? Levou a mão até a sobrancelha, onde Gideon tinha lhe tocado, e a recolheu apressadamente quando Hodge entrou na sala.
-Magnus, eu convidei Hodge para vir aqui e lhe comunicarmos uma coisa importante.
Eles se aproximaram. Bane não gostava de Hodge. Ele parecia dissimulado e sempre lhe olhava com um ar de superioridade e nojo.
-Lembra que eu lhe disse que encontraria uma forma de você se manter mais ocupado?
-Sim - Magnus lembrava, claro.
-A partir de hoje, você será meu criado pessoal, e Hodge passa a ser treinador do Instituto.
Bane sentiu todo o encantamento que sentira por Gideon se esvair de seu corpo. Um criado pessoal? O nephilim ignorou o olhar de raiva que o feiticeiro lhe dirigia.
- Você pode conversar com Hodge aqui nesta sala e ele vai te falar tudo o que você precisa fazer. Depois você vai até Cat, na mansão e resolva sobre a barreira de proteção. Preciso que esteja de volta antes que meus pais terminem o café da manhã, para abrir o Portal. E depois do almoço vamos buscar uma pessoa importante. Você vai comigo para conhecer melhor os limites da vila.
E saiu da sala.
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