A porta da minha sala de consultas se abriu devagar, e Ymir entrou, com aquele andar casual, mas ao mesmo tempo tão seguro, como se o mundo ao redor dela simplesmente não importasse. Era o tipo de confiança que sempre a destacou, e ao mesmo tempo, o tipo de atitude que me deixava nervosa. Na primeira sessão, Ymir parecia mais defensiva, distante. Mas algo naquela mulher fazia com que fosse impossível ignorá-la, mesmo que eu tentasse.
Ela se sentou na poltrona de frente para mim, inclinando-se para trás e cruzando os braços de forma despreocupada. Eu sabia que por dentro ela estava travando uma batalha, mas por fora, continuava impassível. Eu me acomodei na minha cadeira, tentando manter minha postura de profissional, embora, por dentro, a presença dela me trouxesse um turbilhão de emoções.
— E então, Ymir? — Perguntei, gentilmente, tentando abrir a sessão de uma maneira leve. — Como você está hoje?
Ela deu um leve sorriso, um daqueles que sempre carregava um pouco de sarcasmo, antes de me responder.
— Já estive melhor, para ser honesta. — Ela admitiu, sua voz rouca, mas firme. — Mas é isso que você quer ouvir, certo? Sobre o que está acontecendo comigo.
Assenti, tentando não me deixar afetar pela maneira como ela jogava as palavras no ar, como se tudo aquilo fosse só um jogo.
— Quero ouvir o que você tem a dizer, sim. Mas também estou aqui para ajudar, se você quiser. — Respondi calmamente.
Ela riu de leve, balançando a cabeça.
— Claro. Vamos falar sobre o que realmente importa então. — Ela suspirou, sua expressão mudando, se tornando um pouco mais séria. — Sobre o Oriente Médio, certo? É isso que você quer saber?
Permaneci em silêncio, apenas esperando que ela começasse. E, pela primeira vez, senti que Ymir estava prestes a se abrir, de verdade.
— Foi lá que tudo mudou, de verdade. — Ela começou, olhando para suas mãos, como se buscasse as palavras certas. — Quando fui transferida, sabia que não seria fácil. Mas eu sempre gostei de um desafio, você sabe. O problema foi que... aquilo não era só um desafio. Era um inferno.
Ela parou por um momento, os olhos fixos em um ponto distante, talvez revivendo os horrores de que estava falando.
— Eu perdi meu batalhão. — Ela disse, a voz um pouco mais baixa, mas carregada de peso. — Todas as pessoas sob meu comando... Mortas. Ninguém sobreviveu. E o pior de tudo? Foi por minha culpa. Eu tomei as decisões erradas, e agora... Agora tenho que viver com isso.
Fiquei em silêncio, absorvendo cada palavra. A dor na voz dela era palpável, mesmo que ela tentasse escondê-la sob uma camada de indiferença. E eu sabia que não havia palavras que pudessem aliviar essa culpa que ela carregava.
— Você fez o melhor que podia, Ymir. — Eu disse, finalmente. — Às vezes, as coisas fogem do nosso controle, por mais que tentemos.
Ela me olhou, e por um breve momento, vi algo nos olhos dela. Vulnerabilidade. Talvez fosse a primeira vez que Ymir realmente mostrasse essa parte dela para mim.
— Eu sei disso, racionalmente. — Ela respondeu, dando de ombros. — Mas quando você está lá, no campo, vendo as coisas desmoronarem ao seu redor... Você se pergunta se poderia ter feito diferente. Se poderia ter salvado mais alguém.
O silêncio que seguiu foi pesado, mas necessário. Aos poucos, Ymir estava deixando que as paredes que ela havia construído ao longo dos anos se desfizessem, mesmo que fosse apenas um pouco. E eu sabia que, para ela, aquilo era uma vitória.
♡
Depois da sessão, saí da clínica sentindo um peso diferente no peito. Sabia que ver Ymir tão vulnerável teria um efeito em mim, mas não esperava que fosse tão forte. No entanto, não tinha muito tempo para refletir sobre isso. Meu feriado estava chegando, e eu já tinha me organizado para voltar para Shiganshina, passar uns dias com minha família.
O aeroporto estava movimentado quando cheguei, e eu caminhei pelo saguão, conferindo meu bilhete. As filas para o embarque estavam longas, e tudo o que eu queria era chegar logo ao meu destino e deixar para trás o caos da cidade grande, pelo menos por alguns dias.
No entanto, assim que entrei no avião e encontrei meu assento, meu coração parou. E não foi por causa da viagem. Foi porque Ymir Flitz estava sentada ao meu lado, já acomodada em sua poltrona, com um pequeno sorriso de canto, como se já soubesse que estaríamos ali, juntas.
— Você deve estar brincando. — Murmurei, mais para mim mesma do que para ela.
Ymir olhou para mim, com aquele brilho provocador nos olhos.
— Coincidência? Ou o destino, talvez? — Ela disse, com aquele tom casual que tanto me irritava e fascinava ao mesmo tempo.
Respirei fundo, tentando manter a compostura.
— Três horas. Três longas horas. — Murmurei, me acomodando no assento, sentindo meu corpo se enrijecer pela proximidade. A verdade era que, por mais que quisesse manter uma distância segura, algo em mim vibrava apenas por estar ao lado dela de novo.
As próximas horas foram estranhas. Havia um silêncio entre nós, mas ao mesmo tempo, a presença de Ymir era pesada, como se cada pequeno movimento dela fizesse questão de me lembrar que estava ali. Em algum momento, ela fez um comentário sobre o tempo, sobre como estava ansiosa para chegar a Shiganshina, e percebi que ela estava indo para a mesma cidade que eu.
— Está indo visitar sua família? — Perguntei, tentando parecer indiferente.
— Sim. — Ela respondeu, sem olhar para mim. — Faz tempo que não os vejo. Acho que vai ser bom voltar para casa.
Eu não sabia o que dizer. Era surreal. Depois de oito anos, lá estávamos nós, indo para a mesma cidade onde tudo começou, sentadas lado a lado, compartilhando o mesmo ar. O tempo tinha passado, mas, de certa forma, parecia que nada tinha mudado. Meu coração ainda batia descompassado perto dela.
Quando chegamos a Shiganshina, já era tarde da noite, e o aeroporto estava quase vazio. Do lado de fora, o frio da noite nos envolveu, e, para piorar minha sorte, descobri que só havia um táxi disponível. Claro, porque não?
— Quer dividir? — Ymir perguntou, arqueando uma sobrancelha, como se soubesse que eu não teria outra opção.
— Parece que não tenho escolha. — Respondi, entrando no carro com ela.
Durante o trajeto, o motorista passou pelas ruas familiares, e minha mente foi inundada por memórias. Eu e Ymir andando de moto por aquelas mesmas ruas, rindo, sem nos preocuparmos com o futuro. Aquelas lembranças estavam tão vivas quanto o presente, e a presença dela ao meu lado não ajudava a afastá-las.
Quando finalmente chegamos ao nosso destino, percebi que nossas casas ainda eram vizinhas, como sempre foram. Ao sair do táxi, ouvi as vozes de meus pais ao longe, vindo para me receber, e, no mesmo instante, vi os pais de Ymir se aproximando também, claramente surpresos.
— Historia? — Minha mãe chamou, os olhos se arregalando ao ver Ymir ao meu lado. — O que... Vocês duas?
Os pais de Ymir estavam igualmente confusos, mas antes que qualquer explicação fosse dada, Ymir soltou um sorriso.
— Coincidência, só isso. — Ela disse casualmente.
Mas, ao olhar para ela, sabia que não era só isso. Não poderia ser apenas uma coincidência. O universo estava brincando conosco de novo, nos juntando de formas que eu não podia entender.
As portas das nossas casas se abriram, e cada uma de nós foi recebida de volta à vida que havia deixado para trás. Mas, no fundo, eu sabia que as próximas semanas seriam tudo menos tranquilas.
Meu pai apareceu, um sorriso largo iluminando seu rosto. Ele sempre foi do tipo que não conseguia esconder a felicidade. E hoje não era diferente.
— Historia! — Minha mãe exclamou, me puxando para um abraço apertado antes que eu pudesse dizer qualquer coisa. — Que bom que você chegou bem!
O abraço de minha mãe era quente, familiar. Havia algo reconfortante em estar de volta, mesmo que a chegada tenha sido... inesperada. Assim que soltei minha mãe, vi o rosto familiar de Frida, minha irmã mais velha, ao lado do meu pai, com um pequeno garoto de cabelos loiros ao seu lado. Meu coração acelerou. Era incrível ver o quanto meu sobrinho tinha crescido. Ele mal parecia o mesmo menino que eu havia visto pela última vez.
— Tia Historia! — Ele correu em minha direção, seus bracinhos se estendendo para me alcançar. Eu o peguei no colo, girando com ele enquanto ele ria.
— Olha só como você cresceu, garotão! — Falei, enquanto ele me encarava com aqueles grandes olhos curiosos. Ele era a cópia exata de Frida quando criança. Porém, loiro como o pai.
Frida se aproximou com um sorriso terno, os braços cruzados.
— Não fale isso perto dele, senão vai ficar se achando. — Ela brincou, mas havia um orgulho evidente em seu tom. — Ele não para de perguntar quando você viria de novo.
— Fico feliz que cheguei antes que ele perdesse a paciência. — Respondi, beijando a testa do pequeno.
Enquanto todos trocavam cumprimentos e comentários sobre como eu estava, e o quanto sentiam minha falta, não pude deixar de notar algo diferente no ar. Uma leve tensão, algo que minha mãe foi rápida em trazer à tona.
— E pensar que Ymir também está aqui... — Ela comentou, casualmente, enquanto se dirigia à cozinha para pegar mais uma xícara de chá. Eu a segui com os olhos, tentando não parecer muito interessada, mas meu coração disparou de novo.
— Ela não vinha para Shiganshina há oito anos. — Meu pai continuou, franzindo o cenho como se tentasse lembrar do tempo exato. — Desde que se juntou ao exército, não é?
Franzi as sobrancelhas, surpresa.
— Oito anos? — Perguntei, mais para mim mesma do que para eles.
— Sim, é a primeira vez que ela volta para casa desde então. — Minha mãe completou, colocando a xícara na mesa. — O pai dela estava ansioso para revê-la. Acho que ninguém esperava que ela voltasse tão de repente.
A informação me atingiu de uma forma que eu não esperava. Ymir não havia voltado para casa em todos esses anos. Por algum motivo, isso me abalou. O que ela estava evitando? O que a havia mantido longe?
Senti uma mão no meu ombro e me virei para ver Frida me olhando com aquele olhar que só ela tinha. Um olhar que dizia que sabia exatamente o que eu estava pensando, mesmo que eu não dissesse uma palavra.
— Vamos dar uma volta? — Ela sugeriu. — Precisamos colocar a conversa em dia.
♡
Frida e eu nos acomodamos no quintal, onde o ar fresco da noite nos envolvia. Meu sobrinho estava brincando por perto, sua risada enchendo o ambiente com uma leveza que, por um momento, afastou os pensamentos turbulentos sobre Ymir.
— E então? — Frida começou, apoiando os cotovelos nos joelhos enquanto olhava para mim com um sorriso suave. — Como você está se sentindo, Historia?
— O que quer dizer? — Perguntei, tentando evitar o tópico que eu sabia que ela queria trazer à tona.
Ela deu de ombros, fingindo desinteresse, mas seus olhos estavam cravados nos meus.
— Sabe, sobre Ymir. Deve ter sido um choque, não?
Suspirei, sabendo que não havia como escapar da conversa. Frida sempre soube quando algo me incomodava, e desde criança, ela era a única pessoa com quem eu realmente podia ser honesta.
— Sim, foi. — Admiti, cruzando os braços. — Não esperava vê-la de novo, muito menos aqui, na nossa cidade, depois de tanto tempo.
Frida assentiu, olhando para o horizonte, como se estivesse refletindo sobre o que eu havia dito. O silêncio entre nós durou alguns momentos antes que ela falasse novamente.
— Você ainda sente algo, não é? — Ela perguntou diretamente, pegando-me de surpresa. Meus olhos se arregalaram e minha respiração parou por um segundo. Como ela sabia?
— Como você...? — Comecei, mas Frida apenas sorriu, um sorriso compreensivo e triste.
— Eu não sou cega, Historia. Sempre percebi que havia algo entre vocês.
Fiquei em silêncio, ponderando como explicar o que havia acontecido e o que sentia. Meu coração estava pesado com a lembrança, mas a verdade era que... eu precisava falar sobre isso. Especialmente com Frida.
— Ela partiu. — Falei finalmente, a voz saindo mais fraca do que eu esperava. — Sem explicações, sem despedidas. Simplesmente... terminou comigo e foi embora.
Frida me observou com um olhar de compreensão, sua mão pousando suavemente sobre a minha.
— Isso ainda te machuca, não é? — Ela perguntou suavemente.
Assenti, sentindo as lágrimas ameaçando cair, mas eu as contive.
— Ela é minha paciente agora. — Confessei, finalmente.
Os olhos de Frida se arregalaram em surpresa, mas ela logo voltou a me olhar com seriedade.
— E como você está lidando com isso?
— Não sei. — Admiti, minha voz soando derrotada. — É difícil. Ao mesmo tempo que quero ajudá-la, também me sinto... ressentida. Como se ela tivesse me usado todos aqueles anos atrás.
— É complicado. — Frida murmurou, me encarando com empatia. — Mas você é forte, Historia. Vai descobrir como lidar com isso, do seu jeito.
Agradeci com um aceno de cabeça, me sentindo um pouco mais leve depois de conversar com Frida. Mas, mesmo assim, a presença de Ymir em Shiganshina continuava pairando sobre mim.
♡
Mais tarde naquela noite, enquanto me preparava para dormir, algo me chamou a atenção pela janela do meu quarto. Lá fora, sob a luz fraca da lua, vi Ymir sentada na calçada, sozinha. Ela parecia tão... distante, como se o peso do mundo estivesse sobre seus ombros.
Sem pensar muito, me vesti rapidamente e saí de casa. A curiosidade e a preocupação tomaram conta de mim, e antes que percebesse, estava caminhando em direção a ela.
— Ymir? — Chamei, a voz um pouco hesitante.
Ela levantou a cabeça, me olhando de relance, como se não estivesse surpresa por me ver.
— O que você está fazendo aqui fora? — Perguntei, me sentando ao lado dela, sentindo o frio da calçada sob mim.
— Só pensando. — Ela respondeu, dando de ombros. — Muita coisa mudou desde a última vez que estive aqui.
Ficamos em silêncio por alguns momentos, olhando para as casas ao redor, o ar da noite nos envolvendo. O tempo parecia ter parado, como se estivéssemos de volta ao passado, naquela mesma cidade onde tudo começou.
— Lembra de quando costumávamos nos encontrar aqui? — Perguntei suavemente, minhas palavras saindo antes que eu pudesse controlá-las.
Ymir sorriu de canto, como se estivesse lembrando também.
— Lembro. Você sempre dizia que odiava esta cidade, mas eu sabia que no fundo você gostava de estar aqui. — Ela respondeu, sua voz carregada de nostalgia.
Eu ri, balançando a cabeça.
— Talvez. — Admiti. — Mas eu gostava mais porque você estava aqui comigo.
Ela não respondeu, mas seu olhar ficou distante, como se estivesse revivendo os momentos que compartilhamos. Não precisei dizer mais nada. As memórias estavam lá, flutuando entre nós, silenciosas, mas presentes.
Naquela noite, sentadas na calçada da cidade que uma vez foi nosso refúgio, eu percebi que, por mais que o tempo tivesse passado, algumas coisas nunca mudariam. O que compartilhamos estava lá, enterrado sob os anos e a distância, mas ainda vivo. E, de certa forma, isso me confortava.
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