Dois anos depois.
Kagome meteu uma mecha errante de seus cabelos negros para dentro do grande chapéu de palha. Amarrando as fitas embaixo do queixo, lançou um olhar furtivo por sob a aba larga para confirmar que não estava sendo observada. Embora quem a conhecesse não tivesse ficado surpreso com suas inocentes travessuras, não tinha o menor desejo de ser censurada. As desinteressadas ovelhas que salpicavam uma das colinas compunham seu único público, portanto não havia o que recear. Desatando os cadarços, livrou-se das botas pesadas e removeu suas meias. Livre de tais desconfortos, afundou seus pés na grama fresca e soltou risinhos contentes.
— O que diria se pudesse me ver agora, Kaede! — exclamou, divertida.
Tinha consciência de que seu comportamento estava sendo impróprio para uma criada. Deveria estar ocupada na copa, diante da pilha interminável de pratos sujos, mas, oh, como detestava o tempo gasto no cubículo escuro, abafadiço e impregnado pelo odor acre do sabão. Certamente, devia ser a função mais desagradável em toda a casa, mas a sra.Kaede declarara ser sua intenção que os serviços dela começassem de baixo, para promovê-la pelos cargos existentes, conforme o talento fosse se revelando. E embora Mattie O'Donnell, que dirigia a cozinha, tivesse argumentado que ela era uma garotinha frágil, fora na copa que havia sido colocada. Erguendo o rosto para o sol, Kagome absorveu o glorioso calor e fez de conta que não estava escapulindo de sua tarefa maçante. Imaginou que fosse uma princesa com a tarde inteira livre para fazer o que quisesse. Levantando os braços, deixou-se cair de costas na grama. Era macia como um colchão de penas de ganso e tinha a fragrância revigorante da primavera. Espreguiçou-se, arqueando as costas, sem se importar com o chapéu de palha amassando sob sua cabeça. Era bobagem usá-lo, de qualquer modo! Tantas regras e a maioria sem o menor sentido; ou, ao menos, assim parecia para uma menina criada num bairro miserável de Londres. Mas a sra.Kaede fazia imensa questão de impor regras e cuidar para que fossem seguidas. Bem, não queria pensar nisso no momento. Levantou-se e, com um olhar atento ao redor, pôs-se a correr e a saltar por entre a relva alta salpicada de flores da primavera, até que estava fora do raio de visão do castelo e sem fôlego. Parando, abriu os braços e começou a rodopiar. Livre! Uma tarde inteira livre! Não era que não houvesse várias tardes livres para passear pelas colinas, pois Mattie nunca a confinava à cozinha, a menos que fosse necessário. E o que Kaede não sabia não preocupava Kagome. Os últimos dois anos haviam diminuído bastante qualquer terror que tivesse da implacável governanta.
Caminhando com um passo firme, braços balançando no ar e aspecto saudável, kagome continuou saltitando pelas colinas. Os anos de comida farta e amor incondicional da maternal gente irlandesa haviam feito com que a órfã raquítica e quase faminta desabrochasse numa linda e encantadora jovem. Os braços eram delicados e de contornos suaves, ocultando a verdadeira força que continham. Tinhas as pernas longas e bem-torneadas, firmes de tanto andar pelas colinas da Irlanda, já que todo seu tempo disponível era passado ao ar livre.
Contornando a extremidade de um muro alto de pedra, deteve-se a observar o vale verdejante que havia abaixo. Com um riso feliz por ser jovem, saudável e livre numa tarde maravilhosa como essa, ergueu as saias acima dos joelhos e pôs-se a descer a colina ao longo do muro. Deixou que o corpo ganhasse velocidade até que estivesse avançando em disparada.
— Cuidado!
Como que surgindo do nada, um cavalo saltou o muro, relinchando instintivamente quando seus caminhos estavam prestes a se cruzar. Apanhada em meio a sua corrida desenfreada colina abaixo, Kagome não teve outra escolha a não ser virar-se de lado e atirar-se no chão para fugir dos cascos perigosos, enquanto colidiam perigosamente no chão, perto de sua cabeça.
— Céus! — gritou, aflita, enquanto rolava pelo restante da colina, só indo parar numa poça lamacenta abaixo. Caindo de bruços na lama, esforçou-se para recobrar o fôlego e aguardou que a tontura passasse.
— Está ferida? — Uma incrível voz possante soou acima dela, parecendo bastante aborrecida. — Você aí! Responda! Está ferida? Oh, maldição! Segure as rédeas, Mike. E melhor eu dar uma olhada. — Entregando as rédeas a seu cavalariço, o homem jovem desmontou e aproximou-se. Exasperado por ter sua cavalgada interrompida tão depressa e perguntando-se de onde surgira a garota, que em vez de se levantar continuava estendida na lama, não ocultou o tom de contrariedade da voz.
— Posso ajudá-la a levantar-se?
Sacudindo a cabeça para clareá-la, Kagome ajustou seu chapéu e levantou os olhos. Deparou com pernas musculosas, delineadas por calças de montaria e reluzentes botas pretas. Continuou a percorrer o estranho com o olhar, até notar-lhe o par de ombros largos. Quando, enfim, viu-lhe o rosto, sua cabeça já pendia ao máximo para trás, e não pode evitar de ficar boquiaberta ante a magnífica visão diante de si. Ele era mais do que atraente. Extraordinariamente bonito foi a descrição que lhe veio à mente. Mas para mascarar sua beleza máscula, os traços bem-feitos estavam contraídos em pura raiva, desde o furo no queixo tenso até o cenho que franzia. Sobrancelhas negras e espessas encimavam intensos olhos caramelos, que no momento faiscavam.
Mas Kagome estava longe de se sentir intimidada. Na verdade, chegou a soltar um suspiro. Olhou para a mão que lhe estivera estendendo e, enfim, deu-lhe a sua, como que hipnotizada, só notando que estava toda enlameada no momento em que foi puxada com força da poça. Tirando um lenço alvo do bolso, ele tentou remover-lhe a lama do rosto. Mas, como tal façanha parecesse impossível, afastou o lenço e tentou limpar a própria mão enlameada em aversão.
— Que tolice a sua, garota! Assustar o cavalo de um homem daquele jeito, vindo de um salto às cegas. Poderia ter quebrado uma pata. Sem mencionar o meu pescoço!
Kagome pousou as mãos nos quadris e o encarou com firmeza. O jovem lorde podia ser bonito, mas não estava demonstrando um pingo de boas maneiras!
— E quanto ao meu próprio pescoço? — retrucou, zangada e, em sua raiva, desatou a falar no carregado sotaque irlandês que aprendera com Mattie. — Se quer saber, acho que não deveria ser tão descuidado para ficar saltando com esse seu cavalo em qualquer lugar que lhe aprouver! E não ouvi o menor indício de pedido de desculpas da sua parte!
Surpreso, o homem olhou para a postura agressiva dela com as sobrancelhas arqueadas. Impossível dizer muito sobre a garota já que estava praticamente coberta de lama de alto a baixo, mas mostrava ter uma personalidade forte e possuía belos olhos castanhos, notou. Uma jovem que valeria a pena conhecer se tivesse tempo disponível, algo que infelizmente não tinha no momento.
— Oh! Quer dizer que está me acusando de tê-la colocado em perigo? Muito bem, considere-me o seu vilão, se desejar — concedeu ele, curvando-se numa galante mesura. — E posso saber o nome da donzela que coloquei em perigo com meu descuido?
Atônita com a repentina mudança de raiva para divertimento naqueles enigmáticos olhos Caramelos, Kagome ficou sem ação por alguns momentos, limitando-se a encará-lo. Em seguida, baixou um olhar desconfortável para o vestido coberto de lama.
— M-Meu nome é Kagome... — balbuciou. Como sempre acontecia quando lhe perguntavam como se chamava, esperou que o desconhecido não quisesse saber mais, pois a vergonha de não ter um sobrenome nunca se dissipara.
— Ah, a lady Kagome é adorável! — exclamou ele. Apanhando-lhe a mão enlameada, levou-a aos lábios. Virando-a como que à procura de um trecho limpo, finalmente beijou-lhe o pulso. Colhendo uma flor silvestre do chão, presenteou-a com um gesto galante.
Kagome corou e aceitou a bela flor. Aquele era o homem mais bonito que já vira. Sem dúvida, o mais imponente também. Era alto como uma fortaleza, bronzeado feito um estrangeiro e tinha os cabelos brancos e lustrosos. Possuía ombros largos e um corpo forte e proporcional, trajado com a elegância de um nobre. Um príncipe de uma terra mágica... Exatamente como sempre soubera que um príncipe seria. Avisada pelo sorriso charmoso dele e uma sobrancelha erguida que o estava encarando demoradamente, recobrou-se e fez uma graciosa mesura.
— Fico-lhe grata, milorde.
— E eu também lhe fico... por isto. — Depressa, ele venceu a pequena distância entre ambos.
— Oh... — De repente, Kagome sentiu os ombros aprisionados por mãos fortes e colidiu com um peito sólido. Ainda pôde ver um sorriso irresistível nos lábios dele um instante antes de se apossarem dos seus. Nunca tendo sido beijada antes, sua primeira reação foi a de tentar se esquivar. Mas o contato durou meros segundos e, então, ele sussurrou-lhe junto aos lábios, o hálito quente fazendo-a arrepiar-se:
— Oh, minha tentadora irlandesa. Se eu tivesse tempo... — Com um suspiro de lamento, o jovem lorde soltou-a e começou a se afastar. Lançou-lhe mais um sorriso devastador para o rosto pasmo e enlameado e marchou de volta para o majestoso cavalo. Apanhando as rédeas do sorridente cavalariço, montou com elegante agilidade na sela.
— Cresça logo, lady Kagome! Seu príncipe encantado ficará à espera. — Com um galante aceno, ele virou o magnífico cavalo e galopou colina acima atrás do cavalariço.
Aturdida, Kagome deteve-se alguns momentos tocando os lábios com as pontas dos dedos. As palavras do estonteante desconhecido ficaram ecoando em sua mente no mesmo ritmo acelerado de seu coração. Cresça logo. Cresça logo... Seu primeiro beijo! E de um nobre inglês! Sua imaginação fértil tomou asas. Seu príncipe encantado! Era ele! E parecia ter se materializado dos seus sonhos.
Tendo sido mergulhada numa banheira de água quente e lavada da cabeça aos pés, Kagome agora estava sentada diante do fogo, escovando seus cabelos molhados. Mattie achava-se diante de uma tina com água, esfregando vigorosamente o vestido azul enlameado.
— Oh, menina! Por que foi tão descuidada? Este é um vestido novo. Além do mais, tendo se afastado daqui por tanto tempo, comecei a temer que os duendes tivessem levado mais uma criança. Ficar perambulando por essas colinas sozinha. Isso é demais, sabia?
— Não há por que se preocupar. Mesmo que os duendes existissem e tentassem me levar embora, meu príncipe encantado viria galopando para me salvar. Venceria a todos e pediria minha mão em casamento como sua merecida recompensa.
— Bah! Lá vem você com essa ladainha outra vez. Sempre falando sobre príncipes encantados. De onde tira essas ideias, afinal? Pois saiba que não passam de bobagens. Siga meu conselho e não se arrisque por aí. Já vi duendes com meus próprios olhos.
Kagome abriu um sorriso. Já ouvira muitas vezes essa lenda, contada por mães cansadas para assustar as criancinhas e mantê-las quietas na cama a noite inteira.
— E onde isso teria sido?
— Em Glencolumbkille. Eu os vi correndo pelos bosques — declarou Mattié, estendendo o vestido lavado diante do fogo. — Aqui está seu vestido. Foi o melhor que pude fazer para tirar toda aquela lama.
Kagome riu, determinada a não deixar a cozinheira se desviar da lenda e voltar às reprimendas.
— Não acredito em duendes. Mas onde fica Glencolumbkille? — perguntou, em parte devido à sua eterna curiosidade. Não saíra de Blanballyhaven desde aquele distante dia em que, Condor 0'Donnell, o gigante cocheiro irlandês de lorde Taisho, depositara seu corpinho cansado e magro sobre a mesa da cozinha, diante da mãe dele para que a alimentasse, agasalhasse e protegesse. Desde então, a bondosa Mattie era como uma segunda mãe para ela.
— É um lugar distante no alto das montanhas — disse ela, apanhando-lhe a escova da mão. Passou-a pelos cachos negros, encaracolando as mechas que iam secando com dos dedos. — Fui criada lá. Transformou-se num lugar miserável agora. Bom apenas para tentar criar cabras e procurar não morrer de fome. Foi o único local deixado para as pessoas quando os ingleses tiraram as terras dos 0'Donnell.
Kagome assentiu com a cabeça. Essa era uma outra história que já lhe era conhecida e que gostava de ouvir, com a diferença de que era real.
— Quanta crueldade! Tomar as terras dos outros.
— Foi, sim. Aconteceu depois da grande revolução. Os ingleses vieram para lutar e, ao vencerem, distribuíram todas as terras para os seus. Os irlandeses saíram de suas terras, com fome e desabrigados. Blanballyhaven sempre foi terra O'Donnell e, então, um dia disseram: "Vão embora. Isto não lhes pertence mais".
O coração de Kagome compadecia-se daquela gente bondosa que a havia acolhido de braços abertos, pois, afinal, não era inglesa? E deviam odiar os ingleses, não era mesmo?
— Mattie, como consegue ser tão boa para mim se sou uma inglesa?
— Essas coisas aconteceram há um longo, longo tempo — disse a mulher com a voz risonha. — E além do mais, você é uma coisinha doce que não faria mal a uma mosca.
— É terrível não ter um lar. E ficou tanto ódio entre irlandeses e ingleses...
— Sim. Há bandos de irlandeses revoltados vivendo no alto das montanhas, apenas à espera do momento de revidar. Nem todos perdoaram, nem se esqueceram da luta pela liberdade. Mas alguns, sim! O que me diz dos olhares que eu vejo o jovem Enus lançando na sua direção? Aquilo, por certo, não é ódio!
— Impressão sua — protestou Kagome, corando. — Além do mais, não vou querer ser cortejada por alguém como Enus O'Malley. Tenho um príncipe à minha espera. Algum dia serei uma dama de verdade...
— Oh, esqueça essas tolices, menina — aconselhou-a Mattie, com um suspiro. — Não passam de sonhos que nunca vão se realizar. A realidade são aquelas pilhas de pratos à sua espera. E melhor começar a lavá-los.
Kagome comprimiu os lábios cheios em determinação. Crescera aprendendo a ouvir os próprios conselhos sobre seus sonhos e as coisas que apenas ela acreditava serem verdade. Era uma dama nobre! E havia um príncipe que a amaria para sempre! Nunca antes conseguira imaginar um rosto para ele. Não até aquela tarde. Agora o conhecia. Era alto, moreno e bonito. Tinha os ombros largos... largos o bastante para carregar o mundo, pensou, romântica. A voz possante continha autoridade; o olhar era misterioso e o sorriso, cativante. Talvez não fosse a primeira a estar em seus braços no futuro, já que alguma outra mulher teria tido essa honra antes, mas seria a primeira em seu coração. Seu príncipe esperaria até que ela crescesse e, então, estaria a seu lado para sempre!
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