Droga. Eu nem acredito que esta tempestade tá acontecendo bem diante dos meus olhos. O único motivo pelo qual arredei meu pé de casa foi pra reabastecer meu estoque de analgésicos e demais pílulas diárias que faço questão em tomar. Só ultimamente que não, pois com o desaparecimento do Murdoc, nem sequer precisei delas. Não tive razão pra ficar entristecido, tampouco dolorido. E agora com essa enxurrada de água que está passando, não consigo sair daqui e aproveitar o tempo em casa com as pessoas que eu mais gosto.
Fico aqui me questionando o que Russ e Noodle estariam fazendo, só que de uma coisa tenho certeza, ela foi dar um jeito de transparecer uma indiferença quanto à essa tempestade, apenas pra que o grandão fique tranquilo, quando EU sei que ela tem pavor desse tipo de clima. Ela fica toda nervosa, pensando um monte de bizarrices. Isso já aconteceu várias vezes, e eu sempre tive por perto pra, pelo menos confortá-la num abraço. Entretanto na minha situação atual, não tenho muito o que fazer. A menos é claro que eu deixe a água me levar. Sabe-se lá onde desagua esse alagamento da rua.
Ainda que fosse só com ela, mas eu mesmo também odeio essa história de água, porque tudo me reporta às baleias, à Plastic Beach, àquela imitação dela que o Murdoc teve audácia de construir. Um legítimo idiota substituiria a melhor pessoa que apareceu em nossas vidas por um cyborg sem emoção e que defendia os princípios cruéis do dono. Apesar de tudo, quando nos reencontramos, senti uma grande diferença nela, bem como o sentimento de uma chama que estava apagada voltou a acender dentro de mim. O que me deixou confuso e um tanto assustado.
Ultimamente, temos vivido de forma mais tranquila. E sem Murdoc pra inventar suas babaquices durante esses dias, um alívio repentino tomou forma na nossa casa. Juro que se não fosse por Russel e Noodle, eu já teria me mandado há tempos da vista dele. Nossa, ele já me causou cada dor e trauma insuperável, que não tenho a mínima vontade de ficar por perto. Claro, a ideia de ter uma banda e me tornar seu vocalista, até que foi uma boa, gosto de fazer isso, porém o restante que sucedeu e até que precedeu essa decisão, eu prefiro nem lembrar.
Antes de ontem, tive uma conversa bem séria com Russ, sobre essa coisa de ter que ficar aguentando coisas advindas do picles, sendo que tudo me desconforta e perturba. Eu lembro bem direitinho os argumentos dele.
- Olha D, às vezes, temos que pensar no bem maior – diz pacientemente.
- Que bem maior?! Nem bem saúde eu tenho direito – falo colocando a mão no bolso do casaco, mostrando à ele a imensa quantia de remédios que eu guardava.
- Pode parecer loucura, mas não estou falando de você – confessa com os olhos fechados, sem querer ver minha expressão.
- Tá falando de quem? Não tô te entendendo...
- Sério 2D? Você não tá me entendendo? – alterou o tom da voz.
- N-não! – entrelaço minhas mãos e arregalo os olhos.
- Faça-me o favor. É claro que você pode não ter percebido, mas eu sim. Não sou nenhum idiota. Acha que eu não sei o que anda acontecendo aqui (aponta o dedo na mesa, fazendo movimento circular), quer dizer, desde que vocês se reencontraram, algumas coisas mudaram muito...
- ... - fico em silêncio, em prol de esperar tudo que ele tinha pra falar. Eu realmente não estava entendendo.
- É a Noods, 2D. Eu vi o reencontro de vocês, o modo como se olharam, a forma como ela mesma fez questão de destruir a robô do Murdoc, assim que soube o mal que ela te fazia, o jeito que vocês estão próximos e compartilhando segredinhos.
- Noodle?
- Não, a minha vó! – cita já colocando uma das mãos na testa, encobrindo o rosto, demonstrando impaciência com a minha ingenuidade – Claro que é ela. Quem mais seria??
- Então você acha que ela...
- Tenho certeza. E você tem que pensar nela. Supomos que de repente você vai embora pra sua casa em Londres. Como vamos ficar?! Como ela vai ficar?? O sentimento que a menina tem por você é muito grande, se é que pode considerar apenas dessa forma. Eu acho, quer dizer, certamente sei que ela ia sofrer muito.
- Eu... N-nunca pensei por esse lado.
- Sim, está sendo egoísta. E se um dia alguém fizer minha ‘baby girl’ sofrer, eu irei atrás. E não garanto um fim muito belo pra tal pessoa, não me importando quem seja – muda pra uma feição raivosa, me fazendo tremer de medo.
- ... - nem o respondi mais.
- Fica tranquilo D, também sei que ficar aguentando aqueles infernos, não são o melhor tipo de vida, só que eu imagino que você precisa pensar na gente também. Estamos todos no mesmo barco.
E por ‘todos no mesmo barco’, decidi aguardar um pouco mais na minha pequena ideia de ir embora. Também não adianta nada sair de perto e repentinamente ser sequestrado pra voltar a cantar, como já me aconteceu uma vez. Russel meio que me assustou muito com suas palavras. Fiquei com muito medo de revidar, até porque eu nem sabia o que responder. Mas se ele acha tais coisas, deve ser verdade. Espero que sejamos os únicos que saibamos deste pressentimento dele.
Por mais que eu queira me enganar, ele tem uma parcela de razão. Eu gosto muito dela. Hora ou outra me pego pensando nela, no que pode estar fazendo, pensando, sentindo, afins. Algumas das suas mudanças foram muito repentinas, mas a que mais se torna notável é essa de confrontar, quando vê que alguém discorda do que ela quer. Sinceramente, precisamos ter uma conversa, colocar os pingos nos is e planejar como serão as coisas dali pra diante, pois haverão várias controversas caso a gente evolua isso. Fico com medo só de pensar.
No meio desse dilúvio, encontro um cara que está fazendo fretes de canoa. Pago por uma carona até em casa. Hora de acertar algumas coisas, enquanto há paz. As densas gotas nos molham bastante, apesar da capa de chuva. Preciso muito tomar uma pílula.
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