“Em nossas vidas, a mudança é inevitável. A perda é inevitável. A felicidade reside na nossa adaptabilidade em sobreviver a tudo de ruim.”
Buda
As nuvens muito brancas cortavam o céu que aos poucos abandonava o tom róseo, abrindo espaço para o azul. Os primeiros raios de sol adentravam o quarto, arrastando-se preguiçosamente pelos metros que separavam a janela da cama para assim cumprir sua missão de acordar o seu ocupante. Isto é, se ele a estivesse ocupando. Além da habitual música clássica, o som do digitar furioso preenchia o ambiente. Haviam papéis espalhados, colados nas paredes, interligados com linhas vermelhas e entrecortados por várias fotografias granuladas.
O ocupante do quarto tinha os olhos vidrados na tela, devorando as palavras como se necessitasse delas para viver. Sua concentração era tanta que sequer notou o momento em que Izuku pulou do seu esconderijo no guarda-roupa e parou para olhar ao redor, confuso. Atravessou o quarto e pairou ao lado de Shouto que parecia alheio a sua presença, bem como ao restante do mundo.
Emburrado, Izuku deu a volta na escrivaninha e atravessou a tela, surgindo subitamente na frente do garoto como, bem, um fantasma. Shouto recuou de repente e encarou o olhar de censura que ele lhe lançava, piscando para a claridade repentina que invadia o quarto, só então se dando conta de que havia amanhecido.
— Você acordou. – Tecnicamente, fantasmas não dormiam, mas Shouto não sabia ainda como rotular o que acontecia sempre que ele entrava em seu guarda roupa.
Izuku balançou a cabeça e apontou da cama quase intocada para o verdadeiro antro de papéis que sua parede havia se tornado, fechando os olhos e colocando as mãos unidas sobre a cabeça inclinada. Talvez Shouto estivesse ficando bom em adivinhar essas mímicas ou era óbvio demais pelas olheiras fundas em seu rosto refletido pela tela, mas o fato é que ele sabia que o fantasma perguntava se ele havia dormido.
— Por que perguntar se você já sabe a resposta? – resmungou, de repente mal-humorado. Dado o que sabia do garoto, ele podia muito bem apostar que uma bela bronca estava a caminho e quase agradeceu pelo fato de não conseguir ouvir o que dizia. No entanto, para sua surpresa, Midoriya sorriu de um modo cúmplice e travesso. Shouto o encarou, estarrecido. — O quê? Sem discursos sobre como isso faz mal para a minha saúde ou como tomar tanto café a noite afeta o meu sono? Nenhuma bronca ou olhares de censura?
O fantasma estremeceu ao ouvir a palavra café sendo dita e lhe lançou um olhar saudoso. De algum modo, Shouto entendeu que ele sentia falta da bebida e, a ausência de uma bronca somada àquele sorrisinho, foi o suficiente para ele chutar com uma boa margem de certeza que passar noites em claro não era algo comum apenas para si. Não conseguiu evitar, aquele pequeno fragmento de informação sobre o outro preencheu seu peito com um sentimento quente, era uma prova de que ele havia estado ali, ocupado aquele mundo, que tinha preferências e hábitos ruins como qualquer outro. Em meio a névoa de cansaço que tomava seu corpo, ele sorriu.
O despertador ao lado da cama tocou nesse exato minuto, atrapalhando o momento de cumplicidade e dissipando o sentimento cálido que florescia em seu peito sem permissão. Izuku pulou no mesmo lugar e arregalou o olho ao conferir a hora, abanando as mãos em um claro comando para que Shouto se apressasse ou iria se atrasar. Lançando um último olhar para a parede repleta de informações, ele saltou da cadeira e se dirigiu até o banheiro.
O garoto tomou um banho rápido, arrumou suas coisas ainda espalhadas pela escrivaninha e vestiu o uniforme, enrolando o cachecol no pescoço, sentindo pela primeira vez em muito tempo um certo calor envolvê-lo. Desceu as escadas e encontrou a cozinha vazia. Sua mãe de certo já havia saído para trabalhar e Fuyumi dissera que passaria a noite na casa de uma colega para estudar para uma importante prova final que se aproximava. Ele não se importou, já estava habituado a ficar sozinho.
Sobre a mesa, ao lado do seu café da manhã, havia um novo post-it colado que o lembrava da consulta marcada para o dia de hoje. Shouto o amassou e o atirou no canto da sala, sentando-se para comer com um pouco mais de brusquidão do que esperava. Ao seu lado, Midoriya o assistia comer com os lábios contraídos e as sobrancelhas franzidas em preocupação.
Cinco minutos depois, ele saia pela porta em direção a escola, mergulhado em um silêncio tenso e com passadas duras. Izuku o seguia, gesticulando animadamente pelo caminho e mantendo um tagarelar incessante que minava por completo sua confiança de realmente estar ficando péssimo em interpretar suas mímicas. O garoto suspeitava que se pudesse ouvi-lo, o efeito seria ainda mais intenso.
— Você não pode simplesmente escrever o que quer dizer em alguma superfície? – perguntou de repente, lembrando do ruído de arranhar que os espíritos em seu quarto eram mestres em reproduzir e as marcas que por vezes estes deixavam nas paredes.
Midoriya sacudiu a cabeça, os cachos saltando com o movimento, antes de se abaixar e enfiar o dedo na areia, tentando inutilmente escrever uma resposta. Shouto franziu a testa, pensativo com mais aquele mistério que se acumulava a lista para ser desvendado.
— Talvez – arriscou. —, você ainda não tenha se tornado um espírito vingador. – O olho verde o encarou confuso, e ele olhou em volta antes de explicar a teoria que juntara após debater em muitos sites online e assistir um número considerável de vídeos no YouTube. — É como o caso da garotinha de ontem. Ela não fazia mal aos outros como os demais fantasmas porque seu espírito ainda era muito recente. Quanto mais tempo um fantasma permanece nesse plano, maior é a probabilidade dele se tornar uma alma violenta, consumida demais pela sede de vingança para se importar com os obstáculos que se apresentam, como aqueles que vivem no meu quarto.
Midoriya balançou a cabeça novamente, o verde do orbe embaçado pelo que ele presumiu ser uma tentativa de segurar as lágrimas. Ele bateu o pé e apontou para o próprio peito, erguendo o queixo como se tentasse parecer forte. Shouto suspirou.
— Sim, eu sei que você acredita que todos têm bondade em si e que por isso merecem uma chance. Já falamos sobre isso, não é? Altruísmo crônico. Um mal terrível do qual se sofrer sendo ainda tão jovem. – Encobriu o sorriso que tremia em seus lábios ao ver a careta tomar o rosto dele, contando os pequenos pontinhos que se espalhavam por suas bochechas vermelhas.
Nesse momento, era quase fácil demais esquecer que ele não estava realmente ali. Izuku parecia real demais, presente demais, e Shouto inconscientemente estendeu a mão como se para tocá-lo e ter a certeza de que não passava um sonho. Tão rápido quanto o impulso havia sido, ele recolheu o braço, forçando os olhos a fitarem apenas o quadriculado sem graça da calçada e a ignorar os batimentos acelerados que estalavam em seus ouvidos.
Chegaram a escola alguns minutos antes do sinal tocar. A sala estava em sua balbúrdia comum quando ele atravessou a porta e se dirigiu ao seu lugar habitual. Mal havia sentado na cadeira quando Uraraka apareceu e saltou para a mesa com agilidade, onde permaneceu encarando o teto e sorrindo para o nada. Como sempre, Iida a acompanhava. Ele supôs que os dois estivessem tão habituados a companhia um do outro que sequer percebiam o quanto eram grudados.
— Eu adoro sextas-feiras! – Ela suspirou. — Nada como passar os próximos dois dias fazendo nada diante do ventilador sem se preocupar com trabalhos.
— Bom dia, Todoroki. – Iida, muito educado, cortou a conversa, lançando um olhar acusador para a amiga e censurando-a por seus modos. — Ochako, sabe que é contra as regras da escola sentar em cima das mesas. – Ela o ignorou e balançou os pés que estavam para fora alegremente.
— Isso, mesmo, bom dia. Você está um caco – disse, notando as olheiras mais fundas e os ombros curvados. — O que houve? – Shouto resmungou algo incompreensível, pensando em um modo de fazer com que ela parasse de aparecer assim e agisse como se fosse absolutamente normal. Ele adotara a tática de ignorar e falar o mínimo possível da qual sempre se utilizava. Porém, se achava que essa tática iria funcionar, havia se enganado redondamente. — Imagino que sejam as muitas noites sem dormir bancando o detetive – ela comentou, despreocupada. Shouto se retraiu e encarou a garota que lhe sorria com os olhos díspares cintilando de modo acusador.
— Ochako! É falta de respeito se meter na vida dos outros. Até parece que sua mãe não te ensinou nada. – Iida suspirou. — Mas dessa vez, eu até preciso concordar com ela. Você parece mesmo muito cansado, Todoroki. Está tudo bem?
Ao seu lado, sentado no chão com as pernas cruzadas, o canto costumeiro esquecido, Midoriya assistia tudo rindo como ele nunca vira. Shouto lhe lançou um olhar mortal, mas este apenas riu mais ainda e acenou com os dedos em um gesto claro de “Te vira ”. Pela primeira ele se arrependeu de não poder tocá-lo e devolver a provocação com um empurrão como ele e Touya costumavam fazer. Por um instante, a saudade em seu peito apertou e a melancolia familiar se abateu sobre si.
Para sua sorte, a professora Nemuri adentrou a sala naquele exato momento, poupando-lhe do interrogatório.
— Muito bem, pessoal. Todos de volta para os seus lugares, por favor. – A professora bateu palmas de seu lugar à frente da turma.
Uraraka se inclinou para ele e continuou com um tom que não admitia discursão:
— Passaremos na sua casa amanhã. E então você poderá nos contar tudinho que descobriu, até os mínimos detalhes.
Absorta com as questões mais urgentes que rodavam em sua mente, ela não percebeu que a professora se encontrava de pé, bem as suas costas, mesmo com os gestos frenéticos de Iida, e pulou da cadeira ao ouvir a voz em seu ouvido.
— Por mais que me agrade ver Todoroki fazendo amigos, preciso de todos em seus lugares para poder começar a aula. A senhorita entende, não é, Uraraka? – A garota engoliu em seco, sabendo identificar que, apesar de Nemuri ser uma professora muito liberal, o tom utilizado agora era bastante sério.
— Sinto muito, professora, não vai se repetir.
— Muito bem – Ela sorriu, como se nada houvesse acontecido e acompanhou com os olhos azuis muito vivos os dois retomarem seus lugares no lado oposto da sala. Podia ter sido apenas impressão, ou mesmo sua paranoia alimentada com as suspeitas que criara enquanto pesquisava na noite anterior, mas aqueles olhos pareciam ter se detido sobre si, amenos e solidários, antes de ela dar as costas e caminhar para o quadro. —, vamos começar.
— Seus amigos são intensos demais – ele murmurou de canto para Izuku que acenou vigorosamente em resposta.
O serzinho de cabelos verdes lançou um braço para o alto como se comemorasse algo e Shouto revirou os olhos, um meio sorriso despontando nos lábios por mais que tentasse evitar. As emoções que vinha guardando em si durante tanto tempo pareciam agora decidas a transparecerem a todo custo e ele não sabia exatamente se isso era algo bom ou ruim. Por um lado, tinha medo do que isso poderia significar, o que poderia advir disso, ou que tipo de coisa ele encontraria se submergisse em anos de sentimentos reprimidos; por outro, parecia um alívio, uma onda de ar puro e fresco, se livrar de uma vez de todas as correntes e se tornar livre apenas para ser. Embora esperançosa, a ideia de ter uma vida normal lhe parecia pouco plausível.
Felizmente, foi poupado de remoer essa ideia pelo início da aula e a cadência suave que era a voz da professora enquanto ela apontava para imagem projetada na lousa.
— Após a introdução sobre o corpo humano que vimos nas aulas anteriores, hoje iremos começar a aprofundar cada um dos órgãos vitais a nossa integridade e sobrevivência. O primeiro que iremos estudar é o grande astro do nosso corpo, o responsável por controlar todos os movimentos e nos fazer tomar as decisões para as questões que são impostas a nós no dia a dia, o que não significa, entretanto, que sejam as melhores decisões.
Alguns alunos riram, enquanto os outros baixaram as cabeças em uma reflexão silenciosa.
— Estou falando, é claro, do cérebro. – Ela passou o slide para um que mostrava o cérebro com suas partes legendadas e tingidas de cores diferentes para dar o devido destaque. — O cérebro é o principal órgão do sistema nervoso e funciona como uma grande empresa, onde os trabalhadores são as células nervosas, ou neurônios.
Shouto sentiu seu interesse ser sugado, a atenção presa a cada palavra enquanto ela explicava a função de cada uma das partes e como elas influenciavam em nosso comportamento. Era impossível não acompanhar, havia um magnetismo presente nela que acolhia naturalmente a atenção da turma e os prendia com explicações bem colocadas e humor.
— Estudos dizem que usamos apenas 10% da nossa capacidade cerebral, o que traz à tona o seguinte questionamento: o que aconteceria se usássemos 100% da capacidade? Que experiências poderíamos ter quando separados dos nossos sentidos e mergulharmos apenas no vasto universo desconhecido que mora em nossas próprias cabeças? Imaginem o avanço para a ciência que significaria caso essas questões fossem resolvidas.
— E há alguma chance de serem, professora? – Momo, como sempre muito aplicada em seus estudos, ergueu a mão para perguntar. Nemuri sorriu com suavidade, o brilho elétrico nos olhos azuis era contagiante. Ela piscou para a garota como se lhe contasse um segredo.
— Talvez, com o passo que vamos, não tardaremos muito a encontrar as respostas.
ᴥ
A sala não havia mudado em nada desde as consultas anteriores. As mesmas paredes em tons de bege intercalados com branco, a mesma poltrona de estofado vermelho e a mesma cadeira simplória na qual se encontrava Naomasa a encará-lo como se desejasse desvendar o que se passava em sua cabeça. Ele imaginou o que os seus divertidamentes estariam fazendo no momento e soube a resposta no mesmo minuto: caos. Seus pensamentos se sucediam sem nexo algum enquanto ele encarava o relógio na parede e torcia para o ponteiro andar mais rápido. Infelizmente, o tempo não acelera sua velocidade apenas por desejarmos isso, e os minutos se arrastaram em desafio.
Procurando um modo de se distrair e evitar aqueles olhos analíticos pousados em si, Shouto passou a examinar o ambiente, acompanhando Izuku caminhar até a estante e encarar os livros com grande interesse, suas lombadas voltadas para fora e seus títulos em letras douradas bem visíveis a luz natural que entrava pela ampla janela. Além disso, recortes de jornais se encontravam agrupados em um canto logo acima do balcão de madeira, as manchetes em letras garrafais anunciando desaparecimentos e mortes.
— Você é um psicólogo, não é? – A voz dele o surpreendeu. Depois de vários encontros e horas de silêncios tensos e desconfortáveis, acompanhados por olhares julgadores, Naomasa já se convencera de que ele nunca falaria. Porém, é como costumam dizer: às vezes, basta dar tempo ao tempo e ter muita, mas muita paciência.
— Bom – Ele riu, meio sem jeito. —, é o que diz a placa na porta.
— Hum – resmungou.
Sem querer perder aquela pequena brecha que se apresentava, Naomasa prosseguiu rapidamente.
— Mas por que a pergunta?
Shouto enfiou os dedos nas franjas desfiadas do cachecol e puxou mais algumas linhas soltas, perguntando-se o mesmo. Os olhos passaram novamente pelos recortes de jornais até Izuku que continuava absorto demais com os livros para dar atenção a conversa.
— Quero saber por que tem aquilo? – Apontou. Naomasa virou-se na cadeira para ver a que ele se referia.
— Ah, sim, está se referindo aos jornais, não é? – O médico se recostou mais da cadeira e puxou um lenço do bolso com o qual passou a limpar as lentes dos óculos de armação redonda que usava, sem pressa alguma, usando o tempo para ponderar qual seria a melhor resposta. — Antes de abrir esse consultório, eu costumava trabalhar como psicólogo criminal para a polícia do Estado. Basicamente, eu me ocupava da produção de conhecimento sobre o comportamento e os processos psicológicos ligados à orquestração e perpetração de atos criminais, e, assim, quem sabe, ajudar a prevenir crimes ou a reduzir os motivos que porventura levassem a eles.
— Então, digamos que existe um assassino a solta e o número de vítimas começa a subir, o que levou essa pessoa a matar? Ou melhor, como você desvendaria isso?
Naomasa franziu a testa e repôs os óculos.
— Ambiente, hábitos, manias, trejeitos da fala, você não pode entender os atos de uma pessoa até compreender tudo sobre ela. Mas preencher essas incógnitas demanda tempo e dedicação, não é algo que aconteça da noite para o dia, embora eu deva salientar que para alguns crimes existe um perfil dado a frequência que ocorrem. – Os olhos afiados perscrutaram os heterocromáticos, desconfiados. — Mas me conte, meu jovem, por que tanto interesse? Planeja seguir essa carreira ou é apenas por mera curiosidade?
Os dois se encararam e Shouto desviou os olhos novamente para onde se encontrava Midoriya, apontando entusiasmado para um dos livros e sorrindo abertamente. Ele se deu conta então que era o único que tinha alguma chance de descobrir o que acontecera com o garoto e que não descansaria enquanto não o fizesse. Quando ele ergueu os olhos, retomando o contato para responder, ambos sabiam que suas palavras seguintes não passavam de uma mentira.
— É apenas curiosidade.
ᴥ
O retorno para a casa dos Todoroki se deu a passos lentos e pensativos. Se Shouto quisesse realmente desvendar quem estava por trás de todas as mortes e assim dar a Midoriya a paz que merecia, ele precisava de uma estratégia e um ponto de partida. Pelo lado mais promissor, nas séries de detetive que já vira, eles sempre começavam com um suspeito. E Shouto já tinha um. Precisava apenas agora comprovar que suas suposições estavam certas.
Parou em uma esquina, observando os arredores e as pessoas que caminhavam tranquilamente para sus casas e afazeres após mais um dia de trabalho, totalmente alheias ao fato de que um assassino vivia em seu meio. Ou, ao menos, não dando a esse fato a importância devida enquanto não influenciasse diretamente suas vidinhas pacatas. Izuku voltou-se para trás curioso com o motivo que levara Shouto a parar tão de repente e então seus olhos se arregalaram, a órbita vazia se destacando grosseiramente ao ser iluminada pelos últimos raios de sol do dia que findava. Ele avançou, passos bambos em direção ao outro lado da rua, sem preocupação alguma sobre ser atropelado — era um fantasma no fim das contas, e estendeu a mão como se estivesse diante de algo que desejasse muito, mas não poderia alcançar. Sem entender o que o levara a tal reação, Shouto deu a volta em busca do lugar a que o fantasma se dirigia, procurando aquilo que poderia tê-lo abalado.
— Ah. – Suspirou ao se dar conta.
Do outro lado da rua havia uma mulher colando cartazes com uma dedicação invejável em um muro vazio, os cabelos verdes caindo pelas costas em uma bagunça desleixada e as roupas em tons de marrom e amarelo desbotado. Era óbvio que aquela era a mãe de Izuku. Ao se virar para a rua, expondo o rosto redondo de preocupação, Shouto notou que ela tinha os mesmos olhos estranhamente vulneráveis e o mesmo tom esverdeado que o prendia.
— Ela sente muito a sua falta – murmurou para ele que observava a mãe com um olhar de tristeza profunda. — E você a dela. – O outro assentiu. — É por isso que ainda está aqui? É esse o seu ressentimento? Abandoná-la?
Midoriya deu de ombros, sem saber ao certo, e caminhou até onde a mãe se encontrava parada. Balançou-se nos calcanhares por um momento, como uma criança indecisa de contar aos pais o resultado de sua travessura, e então estendeu os braços e os rodeou em seu pescoço. Izuku não tinha a habilidade de tocar pessoas e mover objetos, porém Shouto podia ver a tensão se dissipar dos ombros da mulher cansada enquanto durou o abraço ao invés de sentir os arrepios costumeiros que acometiam aqueles que eram tocados por fantasmas.
Com a promessa lhe pesando no peito e a dor pressente na cena, Shouto atravessou a rua até se aproximar da mulher. Ele sentiu os olhos verdes, idênticos aos do filho, pousaram sobre si como se avaliassem suas intenções. A postura era curva, seus ombros aparentando carregar um peso invisível. De perto, ele podia ver olheiras fundas e as roupas folgadas que indicavam uma perda rápida de peso e a ausência de noites plenas de sono.
— Sra. Midoriya?
— Sim? – Os olhos de Shouto passaram para os cartazes que ela estava pendurando nos quais estavam escrito: "Você viu este garoto?".
— Eu acredito em você – disse simplesmente. — E gostaria que soubesse que Izuku sente muito por toda a dor que a Senhora está passando e lhe dói vê-la assim e não poder ajudar. – Atrás dela, Izuku assentiu levemente, os olhos mais tristes que já havia visto. — E que se pudesse, ele faria de tudo para encontrá-la novamente, pois... – Ele hesitou. — Pois ele a ama muito.
Houve o silêncio enquanto ela absorvia suas palavras e então…
— Como… meu filho… como você sabe? – Ela avançou, os dedos agarrando sua manga com ansiedade e olhos verdes muito arregalados. — Você viu ele? Falou com ele?
— Não exatamente – o garoto murmurou, desconfortável com a proximidade e sentindo um nó se agarrar em sua garganta pela reação. — Eu o conheci de um jeito inusitado e prometi que lhe diria isso caso algo acontecesse com ele.
Ele sentiu sua manga ser solta e baixou os olhos para os próprios pés, dando a ela um tempo para lidar com os próprios sentimentos.
— Sinto muito por isso, querido. Você... você gostaria de tomar um chá?
Shouto pensou em sua casa e na mãe que o esperava com perguntas sobre a consulta, no olhar magoado presente no rosto da irmã que havia sido causado por ele, em Izuku ao seu lado, com os ombros caídos e olhos tão tristes quanto os da mãe. Talvez o cansaço aliado ao fato de já estar acordado há mais de 24h houvessem inutilizado seu cérebro. Fosse o que fosse, ele se surpreendeu ao se pegar dizendo:
— Seria um prazer.
ᴥ
A casa de Izuku era exatamente como Shouto havia imaginado. Agradável e simples, um lar. Tintura branca, um jardim agradável de flores banhado pelo cheiro de terra molhada, vários porta-retratos espalhados pela sala com fotos dos dois em várias fases ao longo da vida. O cheiro tranquilo de camomila subia em ondas de vapor da chaleira pousada na mesinha do centro ente as duas poltronas listradas que faziam parte do conjunto da sala. Na lateral, Izuku havia se esparramado de barriga no sofá de mesma estampa, os tênis vermelhos balançando no ar, como se aquele ritual já lhe fosse familiar.
— Por que exatamente vocês têm o cabelo verde? – perguntou, curioso, analisando uma das fotografias em que Izuku aparecia com os fios ainda escuros. No sofá, o fantasma fez uma careta de desagrado.
A Sra. Midoriya – Inko, ela se apresentara – riu ao encher sua xícara.
— Foi uma pegadinha que os amigos dele fizeram no acampamento da escola. Colocaram tinta no xampu. Tenho certeza de que já pode imaginar o resto. – Ela tocou os fios do próprio cabelo com carinho. — Ele estava tão chateado quando voltou para casa que eu acabei tingindo o meu também para combinar. Desde então virou uma tradição nossa.
Shouto sorriu para um Izuku muito indignado e se ocupou de beber seu chá. Agora que estava ali, desejava desesperadamente não ter aceito o convite. Desde quando fazia as coisas baseado apenas no impulso? Touya o havia ensinado a ser mais racional do que isso. Pensar no irmão o fez se apressar, mesmo com o líquido quente descendo por sua garganta e a vontade de tossir, ele não queria passar por aquela conversa. Inko pigarreou, a voz de repente vulnerável enquanto os olhos pousavam nas lembranças do filho, os últimos resquícios que ainda tinha dele.
— Você parece ter sido um bom amigo para o meu Izuku. Tenho certeza que se davam muito bem. – Ele não teve coragem de contradizê-la. No entanto, o fato era que eles se davam bem. Toda aquela mecânica esquisita de vida-após-a-morte-presa-a-terra e humano-que-podia-ver-espíritos apesar de estranha, funcionava para eles. Eram até que uma boa dupla, muito embora apenas uma parte pudesse falar na relação. — Agradeço pelo que me disse. Mais dois meses e então fará um ano desde que ele desapareceu. Eu… eu já não sei mais o que fazer – confessou, observando as próprias mãos fechadas em punhos no colo. —, além de continuar procurando mesmo quando todos me dizem que não há esperança.
— Poderia me dizer onde fica o banheiro? – Ele a interrompeu bruscamente.
— Ah, me desculpe, querido. – Ela limpou o canto dos olhos e sorriu para ele com falsa alegria. — É a segunda porta a esquerda no corredor.
Shouto assentiu e fugiu da sala como o diabo foge da cruz. No corredor, ele seguiu Izuku que o acompanhara desde o sofá e só então notou que o cômodo que adentravam não era o banheiro, e sim um quarto abafado cuja cada superfície possível estava coberta de pôsteres em tons de azul-marinho vibrante. Uma cama de solteiro e uma escrivaninha se localizavam ao canto, perto da janela entreaberta.
— Aqui era o seu quarto? – perguntou, mesmo sabendo que era desnecessário. As cores das roupas que ele usava combinavam perfeitamente com os pôsteres. Ele assentiu e olhou em volta com um sorriso saudoso.
A cena apertou seu coração, ainda que tenha jurado para si mesmo que não se deixaria abalar.
— Eu não consegui contar – murmurou. — Sinto muito.
Ele gesticulou com as mãos, a gentileza brilhando no verde de seu olho. "Não importa. Está tudo bem." Era o que dizia. Mas não estava, Shouto sabia que não estava. No andar de baixo, a mãe dele chorava por respostas, respostas que ele não podia fornecer. Não, a não ser…
Cerrou os dentes com força, preparando-se para o impacto e a dor que viriam, e estendeu a mão cobrindo a distância que sempre mantinha entre eles até tocá-lo no ombro. Viu o olho verde se voltar assustado para si, o choque súbito do contato após tanto tempo sem o sentir e então, tudo desapareceu. Havia apenas um vazio negro e interminável, sem som ou formas.
Um mundo solitário e desesperador.
Forçou a mão a sair do lugar que repousava e fitou o garoto tão confuso quando ele.
— Onde fica aquele lugar?
Mas Midoriya apenas balançou a cabeça e grunhiu de frustração. Se ao menos conseguisse lembrar, então seria de maior utilidade para Shouto. Se assim fosse, conseguiria descobrir onde seu corpo se encontrava e dar ao menos algum consolo para sua mãe que insista incessantemente em procurá-lo. Lágrimas se formaram, caindo como pequenos cristais por suas bochechas sardentas e ele as esfregou para longe, parecendo ainda mais frustrado.
— Não se preocupe, eu não vou abandonar você enquanto não chegar ao fundo disso.
Izuku voltou-se para o garoto que vinha se esforçando por si, ajudando-o, fazendo-lhe companhia naqueles momentos tão solitários e preenchendo o vazio em seu peito com aquele sentimento caloroso de derretimento que, àquele ponto, ele pensava ter esquecido. Isso o fazia se questionar: se era um fantasma, se seu corpo já se encontrava morto e abandonado em algum lugar do qual não conseguia lembrar, como era possível que ainda se sentisse assim?
Fitou aqueles olhos em suas cores diferentes, percebendo o sofrimento aprisionado neles contido, e esticou a mão para tocar a dele que continuava suspensa entre os dois. Shouto não se retraiu. A sensação de vazio voltou a lhe assolar, porém, não era nada comparada ao que já havia sentido ao longo da vida. O toque era surpreendentemente quente, tomava toda a sua palma e acolhia seus dedos. Não havia escuridão alguma a lhe cercar, apenas os olhos de Midoriya – tanto a órbita vazia, quanto o verde brilhante – lhe transmitindo a força que ele sentia esvair-se, mas que necessitava para continuar.
E assim, eles lá permaneceram: dois garotos, dois lados da balança entre a vida e a morte, de mãos dadas em um quarto abandonado e decorado com o zelo que apenas um fã pode ter, como se isso fosse tudo que os sustentasse na superfície de um profundo oceano que os ameaçava engolir.
Naquele momento, parecia ser o suficiente.
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