♦ Capítulo X: Cordelia
SETE ANOS ATRÁS
O garoto observava do telhado de sua casa o dia amanhecer. Aquilo havia virado um hábito seu; passar as noites em claro e quando o dia estivesse prestes a nascer, observá-lo de perto, completamente sozinho. Bem, nem sempre sozinho. Sua mãe às vezes dava a graça de sua companhia, e justamente por isso, gostava tanto de olhar a paisagem, mesmo que lamentasse pelo dia começar, já que amava tanto o acolhimento da noite.
Estava frio. Ou pelo menos ele julgou que estava, já que o vento estava balançando as árvores vagarosamente. Não sabia a diferença de climas, e nem como deveria senti-los. Sua mãe sempre o diz que ele e seus irmãos são especiais, e desde cedo ensinou que o sangue humano era indispensável para a saúde de seus corpos. No começo... Achou que era maldade. Para quê tirar o sangue dos humanos, se na aparência e dentro deles, era do mesmo jeito que nele?
Porém, quando Ayato se negou a provar sangue em uma época, além de punido, ele enfrentou um sério abatimento e Kanato até mesmo pensou que ele iria morrer. Foi uma das primeiras vezes que presenciou a importância do sangue humano. O sangue animal era mais fraco, e para seu irmão sobreviver, precisou provar dos mais diversos tipos sanguíneos.
— Kanato? — ouviu a voz elegante e conhecida se tornar próxima assim que os passos dela se calaram. — Deveria estar em seu quarto. É mesmo muita falta de cuidado de Cordelia deixar seus filhos soltos por aí nesse horário — Beatrix, que por sinal era mãe de Shuu e Reiji, o encarava com desaprovação. Não era difícil notar que ela não gostava de nenhum dos filhos de Cordelia, mas Kanato não conseguia saber porquê ela sempre o olhava daquele jeito intimidador. — Vá dormir pelo menos um pouco. O dia já está começando e você não pregou os olhos, garoto encrenqueiro.
— É que estou sem sono — abriu um sorriso meigo, que conseguiria alegrar o dia de qualquer um que o recebesse. Exceto Beatrix, que não cedeu a sua doçura.
— Se não quer que eu mesma te leve à força, saia daqui imediatamente, eu não irei repetir!
O menino abaixou a cabeça deixando seus cabelos roxos cobrirem seu rosto, afastando-se ainda com a sensação de que a mulher o encarava em julgamento. Deveria ter feito algo muito errado para ela o desprezar assim.
Entrou para a mansão, e passando pela sala principal, conseguiu ver Shuu que já estava acordado; olhando para um quadro na parede e ignorando sua presença. Subiu as escadas pronto para ir ao seu quarto, e mesmo sem sono, deitar em sua cama e fechar os olhos. Tirando os empregados, que estavam reclusos em seus afazeres, Beatrix e Shuu eram os únicos que havia notado estarem acordados até então.
Enquanto caminhava pelos corredores, escutou gemidos que pensou ser de dor. Vinham do quarto de sua mãe, e isso fez com que tivesse uma preocupação imediata e corresse até a porta de madeira entreaberta. Através da pequena brecha da porta, avistou uma das cenas que ficaria em sua mente por um longo período. Sua mãe estava no colo de Richter, seu tio, sem vestes e trocando caricias mutuas. Os cabelos dela eram tão longos que chegavam a cair sobre as costas dele enquanto seus lábios paravam no pescoço da dama. Kanato não conseguia compreender o que faziam, toda aquela impureza ainda não havia contaminado a criança. E Cordelia não se importava nada em tirar proveito daquela mesma inocência.
— Kanato, sei que está aí — sua mãe o chamou, fazendo-o recuar ao ouvir sua voz. — Está tudo bem, querido. Vem aqui — pediu, fazendo com que seu filho levasse um tempo para saber o que fazer, colocando a mão sobre a porta e empurrando-a. — Kanato... Deveria estar na cama, não é?
— Sim, mamãe. Mas...
— Mas nada... — afastou-se de Richter que encarava o garoto, aproximando-se ainda nua do mais novo. — Você deve descansar, mais tarde terá aulas com seus irmãos... — agachou-se, mexendo nos cabelos dele. Kanato foi o único dos trigêmeos a ter nascido com os cabelos da mesma cor que os dela, e mesmo não sendo seu filho preferido, sabia que ele se orgulhava de ter puxado algo dela.
— Mãe... Por que não posso estudar em uma escola como crianças normais? — piscou em confusão, virando seu rosto de lado.
— Quando você crescer um pouco mais e estiver preparado, você irá... Você e seus irmãos irão para uma escola feita para gente como nós — sorriu minimamente. — Você não está preparado para o mundo lá fora, meu filho. Há muitas pessoas más que não aprovariam nossa cultura... Não aprovaria quem somos. Não entenderiam porquê matamos e como sobrevivemos... Me parte o coração saber que um filho meu viverá em um lugar como esse.
— Mamãe... — passou a mão pela bochecha dela.
Depositou um beijo breve na testa do menino.
— Volte ao seu quarto, Kanato. Mamãe está ocupada agora. Se você for um bom menino, irei levá-lo para assistir a Ópera que você vem me pedindo.
Um brilho surgiu nas esferas lilases de seus olhos. Sua mãe sabia o quanto ele gostava de música. Principalmente óperas e música clássica em geral, já que sempre ouvia como rotina em sua casa, e acreditava que a música foi a maior criação. Além de que amava cantar, ainda mais pra sua mãe. Aquilo era algo que ele desejava imensamente, ainda mais se Cordelia o acompanhasse no espetáculo. Ele pedia há tanto tempo, e nunca davam bola.
— Você promete?
— Prometo.
Kanato se afastou imediatamente da porta e correu até seu quarto. Faria como sua mãe pediu, afinal, teria sua recompensa. Entrou em seu quarto e se jogou na cama, encarando o urso de pelúcia, que também havia ganhado de sua mãe após pedir e muito por um. Seus irmãos sempre tinham brinquedos mais legais, e eles sempre enjoavam rápido e não valorizavam seus pelúcias. Teddy, o nome que o foi dado, foi um dos poucos brinquedos que recebeu em muito tempo. Já tinha nove anos, e diferente de seus irmãos, ainda tinha hábitos muito mais infantis, e isso incluía sua inocência intacta e adoração por brinquedos. Naquela mansão, muitos amadureciam rápido demais, pois ele não.
Havia dormido pouco aquele dia, e durante o almoço encarava enojado o prato de sopa que tinha em sua frente. Já havia pedido doces, mas nada deles. Queriam que comesse aquela gororoba nojenta.
Vendo que não conseguiria colocar aquilo na boca tão cedo, se virou para Laito em seu lado, que comia normalmente sem complicação alguma. Kanato queria entrar em um assunto que estava em sua mente já fazia um tempo.
— Ei Laito, você sabe o que mamãe faz no quarto dela?
— Do que está falando, Kanato?
— Quando ela e o tio Richter estão se beijando sem roupas...
O garoto deixou cair a colher em sua mão ao ouvir aquilo.
— Não. Não sei de nada — negou. A verdade era que ele, o mais novo dos trigêmeos, tinha sido o primeiro a presenciar e viver aquilo. Mas ainda era extremamente delicado para ele falar a respeito. Ninguém se acostumaria tão rápido com o que Cordelia fazia.
— Tem certeza? Acho que você deve ter ouvido do seu quarto...
— Já disse que não sei de nada! — afastou-se da mesa, deixando sua refeição e também Kanato.
Observou o irmão se afastar até que ele não pudesse mais alcançá-lo com o olhar. Aquilo havia o deixado intrigado. Não entendeu o que fez de errado. Fez a pergunta na maior naturalidade do mundo, não havia enxergado nenhuma maldade através dela que o irritasse.
— Kanato — Cordelia chamou, fazendo o corpo do garoto se alarmar pensando se ela havia escutado sua conversa com Laito. O olhar duro da mãe se dirigiu ao prato de sopa que não havia sido tocado. — Vejo que nem tocou na sua sopa de legumes...
— O sabor é horrível. Por que só eu tenho que comer isso?
Ela puxou calmamente a cadeira ao lado esquerdo de Kanato e se sentou, pegando a colher ao lado do prato e pegando uma quantidade de sopa.
— Fará bem pra sua saúde...
— Mas mã-
Sua voz falhou quando a mulher colocou à força a colher em sua boca. Aquele sabor era tão ruim. Odiava legumes. Odiava qualquer coisa que não fosse exageradamente doce. E aquela colher estava cada vez mais funda em sua boca, quase como se fosse lhe dar ânsia a qualquer momento.
Contrariado, engoliu com desgosto sentindo-a afastar a colher bem lentamente.
— Você não tem sido um bom menino, Kanato... Tem sido um desgosto pra mim como mãe — comentou mexendo na sopa. Aquilo havia causado grande impacto nele, que era tão apegado a ela. — Você não está merecendo ir para aquela Ópera. Não está pronto.
— Me desculpe...! Me desculpe, mãe. Eu não...
De ímpeto, novamente ela meteu-lhe a colher à boca. Controlava a ânsia de vômito sentindo o incômodo que era ser forçado a ter aquilo em sua língua. Mas o pior de tudo era como sua mãe parecia decepcionada com ele. O olhar frio dela tornando-o tão inferior só fazia algumas lágrimas se acumularem em seus olhos. Estava se sentindo tão culpado. E nem sabia o que tinha feito. Ela sempre fazia com que se sentisse assim, sempre.
— Você ainda não está pronto para entender... O que faço com seu tio. Esqueça essa história, meu menino — pediu, e ainda angustiado, ele concordou com a cabeça como uma criança obediente.
Depois daquele ocorrido sua mãe só havia se tornado mais distante. Os dias se passavam e a aproximação com ela se tornou cada vez mais difícil. Ela dizia que estava treinando Ayato para algo, e que precisaria de tempo para isso. Mas Kanato nunca acreditava e isso o deixava frustrado.
Por que ele? Por que sempre ele?
Havia algo nele que o tornava indesejado daquele jeito? Não era difícil notar que era o irmão mais esquecido na maioria das coisas.
Porém, com o tempo começou a encontrar consolo em vários passatempos. Em aproveitar os momentos com Teddy, capturar morcegos e tirar suas asas para depois tentar colocá-las no lugar de novo, roubar brinquedos de seus irmãos enquanto estavam tendo outras aulas, desenhar, e até mesmo ler alguns livros na biblioteca. Isso o distraía da rotina em sua casa e o tornava menos sozinho, como se os amigos que precisava, fossem os que estava criando em sua cabeça.
E não demorou pra isso evoluir muito e começar a ter amigos imaginários. Já havia tido quando mais novo, mas agora era tudo mais nítido. E eram bons amigos, podia dividir seus brinquedos e levá-los para seus lugares preferidos na mansão. Pena que eles eram tão feios, suas aparências não eram nada comparáveis a de humanos ou vampiros. Eram apenas estranhos. Mas Kanato também se sentia estranho, então pouco importava.
Os dias da semana estavam voando em meio a tudo o que acontecia. Foi quando Kanato descobriu, através do jornal de seu tio, que a ópera que tanto desejava assistir, sairia da cidade em breve, deixando o teatro. Não teria a oportunidade de ver tão cedo, e já havia combinado com Teddy que também o levaria para assistir.
Mais uma vez tentaria pedir para sua mãe, torcendo para que dessa vez ela considerasse. Bateu na porta do quarto e, sem resposta, percebeu que ela estava apenas encostada. Empurrou a maçaneta abrindo-a de vez, e a mesma cena, mas muito mais explicita se repetia naquela cama de casal.
Não saberia descrever mesmo depois de anos o que estava vendo. Sua mãe estava por baixo do corpo de Richter se envolvendo a ele de uma maneira que chegava a assustar o garoto. Ambos sabiam que ele assistia a cena, e nem por isso pararam, na verdade intensificaram os movimentos e toques tornando ainda mais difícil para Kanato assistir a relação sexual completamente explícita que faziam uma mera criança assistir.
Estava petrificado, e a única que o acordou em meio aquilo, foi se lembrar que ainda queria sair dali e ir assistir aquela bendita ópera que de tanto desejar, estava pegando raiva. Bateu a porta com força, correndo e tentando esquecer o que tinha visto. Com o choque havia até mesmo deixado Teddy para trás, logo seu fiel companheiro.
Chegou até o portão pronto para sair dali, quando Adele, que era uma das cozinheiras e tinha um grande apreço por Kanato, correu até ele tentando impedi-lo. Ela era humana. Sim, humana. Seu tio se divertia com algumas humanas que trazia para trabalhar para a mansão, elas sempre acabavam mortas em quinze dias, e jamais conseguiam fugir dali nesse meio tempo. Adele em seus oito dias de trabalho, havia se apegado a Kanato e se identificado pela falta de atenção dos pais, por isso sempre tentava ajudá-lo e até mesmo guardava alguns doces pra ele mesmo quando sua mãe não queria deixá-lo comer.
— Senhor Kanato! Não faça isso, sabes que sua mãe irá puni-lo novamente... — ela se abaixou igualando-se a altura dele. Seu olhar era piedoso e queria de verdade ajudá-lo. — Você lembra do que aconteceu da última vez. Por favor, não passe por esse portão. Você é apenas um menino, não deve andar sozinho em uma cidade perigosa como essa... — tentou acariciá-lo, mas o mesmo recuou.
Já estava furioso com tudo que havia acontecido. De fato se lembrava que da última vez que tentou fugir, demorou a se recuperar das queimaduras e descamações na pele que sofreu como punição. Porém isso não importava mais!
— Não me venha com essa! — se virou, irreversível.
— Kanato... — colocou a mão em seu ombro... Um erro que fez o pouco de controle que ele tinha, ir por água abaixo.
— NÃO TOQUE EM MIM! — seus olhos encararam Adele de um jeito nunca antes visto. Suas presas inconscientemente se afiaram no momento em que rosnou jogando-se em cima da mulher que gritou em susto, tentando em vão afastá-lo. — Sabe por que minha mãe não me punirá?! Por que ela está ocupada na cama com outro, Adele! Mas você finge que não vê isso porque é uma humana idiota e hipócrita que finge que nada vê nessa casa cheia de problemáticos! — cuspia as palavras friamente tornando a feição da mulher a qual pressionava ao chão rudemente, ainda mais assustada. — Você não parece usar o sangue que têm no cérebro pra ser tão incrédula assim.
— Kanato... Por favor... Estou lhe pedindo... Por favor, pare!
— E do que adianta pedir?! Eu já pedi tantas vezes e nada acontece! — seu punho se fechou acertando em cheio o centro do rosto da mulher. E o que ele menos esperava ocorreu; seu soco havia saído em uma força monstruosa, cedendo o rosto da mulher completamente. Aquilo o deixou sem reação. Não achou que toda a sua raiva seria descontada em um golpe como aquele. Diferente de seus irmãos, não teve treinamento e nem consciência de sua força não-humana até agora. Kanato percebeu que tudo o que estava sentindo e descobrindo sobre si mesmo, era sua natureza falando mais alto. Ninguém mais o ajudaria a entender o que ele era. — Adele... Fala comigo... — pediu em vão. Sabia que não havia mais chances, e foi capaz de derramar lágrimas enquanto lambia seus dedos sujos pelo sangue de quem um dia tentou entendê-lo. — Sinto muito... Adele... Eu... Sinto muito mesmo...
Estava tendo um dos piores dias de sua vida. E a esse ponto, já se sentia um monstro irracional. Mas ainda tinha seu desejo em mente! Iria com certeza assistir aquela ópera e se deslumbrar como nunca antes. Essa era seu desejo, não esperaria por mais ninguém para realizá-lo. E deixando o corpo de Adele intacto, tratou de fugir enquanto não chamava mais atenção do que havia feito em meio aos seus gritos. Laito tentou impedi-lo, mas foi derrubado.
Não se importava se era seu irmão ou não. Se gostava tanto de ficar naquela mansão isolada, que ficasse sozinho! Ele iria... Iria assistir a última apresentação. Seria também a última vez em que estaria completamente em sã consciência.
Não foi difícil descobrir onde o teatro ficava. Havia passado tanto tempo lendo sobre ele, calculando ruas e roubado dinheiro de Beatrix — que agora sim teria motivos convictos para desprezá-lo —, que estava mais do que pronto. Desejou tanto aquilo. E embora quisesse que sua mãe estivesse ali, apenas tampou seus ouvidos a tudo em sua volta e fingiu que ela estava.
O garoto, de longe um dos mais novos e desacompanhados no local, passou por vários adultos que o olharam estranho, caminhando até o teatro. Enquanto andava ainda desnorteado, esbarrou em alguém, que por sinal tinha uma altura similar a sua.
— O que pensa que está fazendo? — a menina resmungou. Parecia ter pouco menos que a idade que ele tinha. — Assim você vai amassar a minha roupa nova...
— Desculpe — Kanato murmurou, tentando ignorar o quão o sangue dela cheirava bem.
— Qual o problema, querida? — Soran se abaixou ao lado de Lara, olhando para a filha.
— Esse garoto esbarrou em mim — ela falou, sorrindo inocentemente em seguida. — Mas ele já pediu desculpas, papai.
Soran o encarou. Era o olhar mais incomodativo que Kanato já havia visto. Ele parecia saber tudo sobre ele, mesmo sem nunca ter o visto antes. Era um olhar morto e analisador, tudo o que o garoto mais odiava.
— Se ele pediu desculpas, está tudo bem — disse pegando a garota no colo. — Você veio sozinho?
— Sim... Eu quero muito assistir a esse espetáculo! — respondeu suando frio.
Soran fechou os olhos, convencido. Não seria naquela noite que se informaria mais sobre a família já investigada de Kanato, apesar de não saber suas reais motivações, ele era apenas um pirralho perdido vivendo o inferno como todos os vampiros viviam.
— Muito bem... Aproveite, rapaz — se afastou, dando passagem para ele que se apressou ansioso.
Se sua ansiedade já era grande ao buscar um acento, o momento em que fitou as cortinas prestes a serem abertas, foi uma explosão de sensações. Começou a roer as unhas, olhando os cantores e artistas no palco. Esperou tanto por aquilo, e embora sozinho, rodeado por estranhos que o olhavam feio, teve o melhor espetáculo que poderia esperar. Conseguiu se lembrar do porquê ter esperado tanto por aquilo: a Ópera mostra um musical dramático, conta as mais melancólicas histórias em forma de arte, liga as pessoas as suas dores mais profundas. Poucos a apareciam, pois poucos a compreendem. A Ópera, assim como Kanato, era incompreendida. E em meio aos finos tons alcançados pela cantora, seu corpo conseguia tremer e quase transbordar em lágrimas. As piores lembranças o vinham em mente, e era como se pudesse sorrir ao assistir o espetáculo, e ao mesmo tempo, chorar por viver o lado mais dramático dele.
Quando as cortinas se fecharam, antes mesmo dos aplausos ganharem o local, uma risada foi escutada. A risada mais sincera e carregada de felicidade que Kanato já havia soltado. Não precisaria dizer que chamou atenção demais, mas não estava mais incomodado com olhares feios, estava se sentindo... Realizado. E completamente vazio por ter se permitido ao espetáculo inteiro sentir tudo o que havia prendido dentro de si até que não sobrasse mais nada.
Saiu da sala antes mesmo que o segundo ato da apresentação fosse feito. Já havia provado o bastante. Se horas haviam se passado lá dentro, sequer sabia. O tempo parou, e agora estava voltando completamente extasiado ao normal.
Qualquer apresentação com drama só era mais uma retratação fiel a vida de alguma pessoa espalhada pela sociedade. E poderia dizer que sua vida era o que mais havia de dramático. Só conseguia se perguntar o que seu pai, que não fazia ideia onde estaria agora, pensaria vendo aquela apresentação chocante.
Caminhava pelas ruas isoladas e escuras com os olhos roxos e cansados, mas um sorriso ladino no rosto. Seu fluxo de pensamento havia voltado ao normal, mas sua satisfação, não. Ela sim se mantinha intacta.
— Primeiro roubou dinheiro de Beatrix, e agora fugiu? — Richter chamou, fazendo Kanato parar de andar e escutar o que ele tinha a dizer. Não estavam distante de casa, mas não esperava vê-lo em meio ao caminho. — Sabia que sua irresponsabilidade poderia nos expor à cidade inteira, Kanato? Sempre achei que entre os filhos de Cordelia, você seria um dos mais difíceis de lidar. Mas não pensei que seria rebelde logo tão jovem...
— Não tenho nada a ver com o que você acha sobre mim, Richter — sorriu meigamente. Era uma das primeiras vezes que desafiava seu tio, mas tinha em mente que não se importava mais com nada. O que estava vivendo já era bom o suficiente, punição alguma tiraria isso dele. Foi o que pensou...
— Você precisa mesmo de uma lição, Kanato.
— E quem vai fazer isso? — riu cinicamente. — Você?
Richter fechou os olhos com a cara fechada, e em questão de segundos, sua velocidade o levou a perto do corpo do garoto, fincando uma faca em sua barriga fundamente. Kanato abriu a boca, esperando que soltasse o grito, mas o ar havia sido tirado dele. O sangue começou a sujar sua roupa, e assim que o homem se afastou tirando a facada dele, o desespero tomou conta do garoto.
— Pensando bem... Deixarei que sua mãe lhe puna como achar mais conveniente — limpou a faca calmamente, ignorando a dor que ele sentia.
Kanato ao ouvir a palavra “mãe”, só conseguiu ter uma onda de adrenalina, tentando correr o quanto antes até a mansão. Era sua mãe! Ela iria salvá-lo! Ela iria... Curar esse ferimento. Não podia morrer! Não naquela noite. Não quando estava tão realizado e tinha tanto o que contar para seus amigos e Teddy!
Invadiu a mansão já sem saber mais o que sentia em seu corpo. Passou por seus irmãos que encararam curiosos, mas logo voltaram aos livros quando Beatrix chamou-os a atenção. Subiu as escadas o mais rápido possível, já visualizando o quarto de sua mãe.
Girou a maçaneta, percebendo que estava trancado.
Perfeito. O único momento em que precisava que aquela maldita porta estivesse aberta, ela não estava...
— Mãe! Por favor! — batia contra a porta, rangendo os dentes. — Eu preciso... Eu preciso muito de você, mamãe...
Quando estava batendo naquela porta pela sétima vez, quase desistindo, ela finalmente foi aberta. Entrou em desespero, tendo a visão de Teddy sentado no apoio da janela.
A porta atrás dele foi fechada, se virando e dando de cara com Cordelia.
— Mãe... Richter me feriu! Por favor, faça alguma coisa... Eu não quero morrer assim, por favor — seus olhos estavam lacrimejando sem parar, ardendo como nunca.
Foi naquele momento que Cordelia se recordou que Kanato não sabia que não poderia morrer tão fácil. Ele não entendia nem metade sobre o que era, e era em cima dessa inocência, que ela sempre tirava proveito.
— Deixe-me ver — disse a ajudando a se sentar na cama. Ergueu calmamente a camisa do garoto, analisando o ferimento que logo não estaria mais ali, mas que fingiu tratar. — Cante para mim, Kanato.
Aquele pedido havia o pego de surpresa.
— Cantar?
— Sim. Cante para mim, querido.
Mesmo não se sentindo bem para isso, ele cantou em baixo tom uma canção de ninar que gostava muito. Fazia tempo que sua mãe não fazia esse pedido... Talvez ela sentisse falta dele. No entanto, sua voz não saiu a das melhores, seu nervosismo ainda era evidente.
— Muito bem... — Cordelia elogiou, empurrando-o levemente até a cama. Kanato encarou surpreso e assustado, sem entender suas reais intenções. — Meu menininho... — acariciou seu rosto. — Você é mesmo diferente de seus irmãos — abaixou-se, lambendo o sangue em sua barriga. Aquilo havia o deixado mais desnorteado ainda. — Você já deve ter se dado conta que não pode morrer tão fácil. Há apenas uma arma que possa nos matar, e eu não permitirei que ela te leve de mim — começou a desabotoar completamente sua camisa.
— Eu não entendo o que está acontecendo comigo — virou seu rosto para o urso de pelúcia, ele parecia assistir a cena. Seria sua real testemunha. Kanato sorriu. — Teddy...
Cordelia começou a retirar o restante de suas roupas. Apesar de perdido e com uma tontura devido a dor de cabeça, ele acreditava que tudo o que sua mãe ali faria, seria para seu próprio bem. Estaria eternamente enganado, mas foi o mecanismo de defesa que sua mente criou para evitar que sofresse ainda mais com a dura realidade que estava tomando.
— Kanato... Espero que você seja tão doce quanto seus irmãos.
Aquela foi a última frase que ouviu aquela noite antes de ser completamente violado. Nunca pensou que sua mãe o tocaria como tocou aquela noite, que o forçaria a fazer coisas que até então o eram desconhecidas. Cordelia, mais que sua mãe, foi quem o mostrou sua pior realidade. Foi quem o tirou a inocência e fez sua mente conhecer finalmente a crueldade em ser ou se envolver com um vampiro.
Kanato estava certo, no fim das contas, que se tivesse morrido naquela facada como qualquer mortal... Seus próximos anos teriam sido melhores.
Aquele também se tornou o fim de seu espetáculo.
Muitos usuários deixam de postar por falta de comentários, estimule o trabalho deles, deixando um comentário.
Para comentar e incentivar o autor, Cadastre-se ou Acesse sua Conta.