O despertador do celular de Aomine começou a tocar, mas o garoto já estava acordado havia muito tempo. Seria correto dizer que tivera uma péssima noite. Dormira quase nada.
Logo ele, Aomine Daiki, com dificuldade para adormecer. Como? Em que realidade? Por quê?
Sem respostas para suas dúvidas, levantou-se. O quarto continuava razoavelmente arrumado. Desde que Kagami dera uma ajeitada ali, tentava mantê-la. Por isso pegou algumas peças de roupa do chão e levou consigo para o banheiro, onde havia um cesto.
A casa silenciosa não era uma surpresa de todo. Tanto seu pai quanto sua mãe costumavam sair muito cedo. Seu pai, porque deveria ser o exemplo para seus funcionários. E sua mãe, porque chegaram novos imigrantes em uma colônia e ela voltara a prestar ajuda ensinando japonês.
Esse último fato era bem complicado. Não que Aomine fosse contra sua mãe ajudar outras pessoas. Mas ela mergulhava tão a fundo nesse papel que do nada começava a falar no idioma dos imigrantes em casa! Dessa vez seria uma colonia francesa. Daiki já se preparava para ouvir as bizarras frases francesas intercaladas com o japonês quando fosse conversar com a mãe. Irritante.
Sentou-se a mesa para o asagohan. Sua mãe deixara arroz branco, tamagoyaki, salmão grelhado e chã verde. Comeu devagar, cansado. O sono atrasado deixava seus movimentos ainda mais preguiçosos. Sabia que chegaria atrasado para as aulas, não pela primeira vez. Nem pela última. Seu pai era um exemplo que não seguia.
Era fácil pular o muro e ir se refugiar no telhado. Complicado era driblar os professores.
Como sempre encontrou dinheiro no armário para o almoço. Em Touou era opcional: levar o bento ou comprar na cantina do colégio. Quando sua mãe estava muito ocupada lhe dava o dinheiro. Não reclamava, a comida do refeitório era excelente.
Havia um bilhete para que tirasse o resto do lixo e colocasse nas lixeiras recicláveis. Amassou o papel e enfiou no bolso do uniforme. Faria aquilo depois que voltasse da escola. Se conseguisse se lembrar, claro.
Cumprindo suas previsões chegou à escola e os portões já estavam fechados. Contornou o muro e saltou ligeiro.
Nenhum problema o impediu de chegar ao telhado. Deu a volta através do bloco de salas (teve a impressão de ver Satsuki olhando feio através de uma das janelas, mas fingiu que não a reconheceu), sem se preocupar em trocar os sapatos, no fim das contas. Se fosse à área dos armários corria um grande risco de encontrar um funcionário.
Finalmente deixou a mochila no chão e deitou-se, aspirando ar profundamente, deixando que a paz viesse a si e pudesse dormir um pouco.
Não deu certo.
Sentia-se cansado e letárgico, porém o sono não vinha. Sua mente, elétrica, parecia incapaz de desligar, apesar dos pensamentos dispersos, sem foco. Nem o céu azul, que em via de regra o ajudava a cochilar, parecia ter algum efeito.
Estava inquieto. E meio irritado, por não saber ao certo o que o deixava assim.
Se alimentara bem antes de sair de casa. Então por que aquela sensação de falta? Aquele vazio na boca do estomago. A fome? Sensação que, intuía, não seria saciada por qualquer tipo de comida.
Talvez fosse falta de basquete? Animou-se um pouco com o pensamento. Desde que experimentara jogar na zona contra Kagami os outros jogos não pareciam a mesma coisa. Quem sabe se chamasse o cara pra um jogo mais sério.
A revanche...?
Por algum motivo o pensamento o incomodou. Revanche significava a chance de Kagami conseguir vencer. Ah, três vezes consecutivas? Nem nos melhores sonhos do baka. Quanta inocência, acreditar que poderia mesmo conseguir tal proeza.
Mas Aomine não podia dizer que não gostava. Ele respeitava esse jeito determinado e sincero de ser. Justamente por tal personalidade Kagami conseguira jogar de igual para igual, ainda que apoiado pelo basquete dos companheiros de time.
Quando começara a brincadeira de “dono/escravo”, Daiki pretendia apenas ensinar uma lição, provar que estavam em um nível diferente se o assunto fosse basquete. Agora não tinha certeza disso. Não da diferença de níveis, claro. Mas de continuar com a lição. Kagami era cabeça dura demais para mudar de ideia. Cabeça dura, teimoso, dedicado, impetuoso...
Impetuoso? Impetuoso?!
Daiki ficou chocado consigo mesmo. Primeiro por pensar uma palavra tão empoada. Segundo por associar a palavra a outro cara!
Sua sorte foi que Satsuki invadiu o telhado com sua animação. A hora do almoço chegara, mas ele nem notara! A melhor amiga sentou-se ao seu lado, cobrando por sua ausência nas aulas, espantando para longe os pensamentos estranhos que Daiki estava tendo.
Recusou o bento que ela lhe oferecia. Nem na cantina quis comer. Não sentia fome, não de comida, pelo menos. Estava confuso. Já não sabia mais o que pensava.
A parte da tarde voou. Tinham o treino. Treino? Massacre, isso sim. Desde a derrota para Seirin os exercícios se intensificaram. Pouca coisa mudara no relacionamento com os outros colegas de time. Apesar de tudo não o culpavam da derrota, nem mesmo os terceiranistas.
Todos admitiam que vencia o melhor time. Durante a Winter Cup isso significava Seirin, não Touou. O sentimento era doloroso, mas não se podia mudar. Ou melhor, a única forma de mudá-lo era se tornando mais forte, treinando. Se superando, para superar Kagami Taiga e seu basquete.
Okay. Basquete e Kagami. Dois pensamentos recorrentes em sua mente.
Pensava muito em basquete porque amava o esporte. Pensava muito em Kagami porque o cara estava relacionado a algo com que gostava muito. Fazia sentido... não fazia?
Como o treino acabou excepcionalmente tarde, Daiki ficou em dúvida se devia passar pela casa de Kagami. Desistiu. Estava exausto, inferno. Mal se lembrava de como era treinar até chegar a tal ponto de cansaço. Culpa de Kagami, claro. Ano baka!! também dormira mal a noite. Decidiu ir direto para casa.
Assim que chegou soube que sua mãe já estava lá. Havia luz.
— Tadaima — resmungou ao tirar os tênis no genkan. Sentiu o cheiro delicioso de jantar sendo preparado. A fome apertou. Deu-se conta de que não comera nada o dia todo. Agora seu corpo cobrava o preço da inexplicável falta de apetite.
— Okaeri — a resposta veio da cozinha — Vous ne prenez pas à la poubelle, Daiki!
O garoto girou os olhos, fechando a porta e deixando a mochila no chão, de qualquer jeito.
— Em japonês, mulher. Você me pariu sem um tradutor embutido!
Então ela apareceu pela porta, segurava uma colher de pau na mão, tentando parecer ameaçadora. Por alguma razão Aomine lembrou-se de Kagami. Que bizarro.
Era uma mulher alta para os padrões japoneses, de cabelos longos e negros cujos fios grossos chegavam-lhe ao meio das costas. Os olhos, muito negros, estreitaram-se perigosamente e Daiki se arrepiou. Estava enganado. Definitivamente aquela pessoa era muito mais assustadora que Kagami.
— Você não tirou o lixo — acusou.
— Aa. Acabei de chegar da escola, não notou?
Ao ouvir aquilo sua mãe sorriu com um brilho assustador nos olhos negros.
— Por falar em escola, seu professor de inglês me ligou. Ele está muito preocupado com suas notas, Dai-chan...
Maldito Kagami! O colocara em mais uma enrascada! Mas como Aomine ia sequer imaginar que o idiota pudesse se sair tão mal no idioma? Fizera as suas notas piorarem mais.
— Vou dar um jeito nisso, não se preocupe.
— Bien sûr — o sorriso quase sádico aumentou — Se não melhorar suas notas vou te dar umas aulinhas particulares.
— Oe! Não precisa...
— Por hora vá tomar banho. Já deixei a banheira preparada e o jantar está quase pronto! — observou enquanto o rapaz obedecia. Ele chegava a escada, quando ela o impediu — Daiki, sua mochila. Não seja folgado.
Aomine respirou fundo e voltou atrás para pegar a mochila. Era difícil perder alguns hábitos quando se sentia tão em casa.
R&B
Os dois acabaram jantando sozinhos. Daiki descobriu que seu pai precisara viajar para Hokkaido, onde sua empresa iria implantar um plano de aceleração urbana nos subúrbios. Depois de comer o cansaço pesou sobre os ombros com força, fazendo-o querer deitar na cama e dormir. Ou, pelo menos, tentar adormecer. Recuperar-se.
Vestiu um pijama de flanela bem quentinho e foi escovar os dentes. Observou seu rosto cansado no espelho. Fazia tanto tempo que não tinha tal aparência que mal se recordava. Sensação que vinha experimentando muito desde que Kagami entrara em sua vida. Sentimentos antigos, desbotados. Coisas novas que nem associava a si próprio. Ciumes...? Ele? Aff! Nunca se conformaria com aquilo.
Mas ficou feliz por uma coisa: seu esforço o deixava cansado, uma recompensa meio distorcida por estar dando o melhor de si para voltar a vencer. Apenas vencer. Já vira aquela expressão no rosto de Kagami mais de uma vez. Taiga também passava os limites sempre que necessário.
Bochechou uma última vez antes de alcançar a caixinha de fio-dental.
Por que seus pensamentos sempre convergiam para Kagami Taiga? Que irritante! Ele, ultimamente, servia de parâmetro de comparação para quase tudo! As boas sensações (e as ruins) vinham associados ao jogador da Seirin! Tudo girava ao redor do cara!
Por quê, inferno? Era irritante, cansativo, sufocante!
Muito óbvio.
E ali, no banheiro de casa, com um fio preso ao dente, a resposta surgiu aos olhos de Daiki como um relâmpago iluminando a noite escura, revelando todos os monstros ocultos à espreita. Assustadores.
— Eu gosto dele.
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